Só me resta a felicidade
Rufino Fialho Filho
[...] nenhuma coisa, nenhum eu, nenhuma forma,
nenhum princípio são certos, tudo se encontra numa transformação invisível e
incessante. No instável há mais futuro do que no estável. O presente não é senão uma hipótese que
ainda não superamos. O que [Ulrich] poderia fazer de melhor senão manter-se
livre desse mundo, naquele bom sentido com que um pesquisador se mantém livre
diante dos fatos que o querem seduzir e fazer acreditar neles
precipitadamente?!
A exatidão será, paradoxalmente, o reconhecimento
da imprecisão dos fatos e da impossibilidade
de verdades definitivas. (*)
Quem sou
eu?
O que serei?
O que posso
ser?
A
identidade me foge e é onde me perco?
O que o
passado impõe e limita?
O que serei?
É uma pergunta
que pretende uma resposta acabada? Serei Y, algo que me contenta e me faz feliz
e livre.
O que serei?
Indaga possibilidades. Pressupõe alternativas. Serei o que posso ser ou poderei
ser além do que posso ser?
(E o aquém?
Serei aquém das minhas possibilidades de homem, de ser humano?)
A um homem que
só lhe restar a felicidade, responderia positivamente?
- Só me resta
a felicidade.
Soa como uma
condenação.
- O homem está
condenado à liberdade - diz o francês.
O que posso
ser? É a indagação que sugere a elaboração de uma lista de possibilidade e de
possibilidades relacionadas a oportunidades.
Na coluna de
possibilidades, a felicidade. Na coluna de oportunidades ser feliz, total. As
oportunidades são amplas e percorrem todas as coordenadas, todos os pontos e
momentos de uma vida.
Ao longo da
vida, o homem sempre desperta com este tipo de questionamento. Nem sempre dá
importância.
Há a
possibilidade de mudanças e de aprimoramento. Não respondem, de imediato, ao
questionamento.
Aos oitenta
anos quem ainda pode questionar-se, ainda lhe restará algumas possibilidades,
às vezes radicais.
Em cada tempo,
este questionar-se traduz-se pelo, permanente, avolumar-se, do crescer. Chega a
tornar-se maior do que a vida, dominar a vida, impedir a vida, paralisar a
vida.
“Eu preciso
responder e andar. Fazer alguma coisa”.
O que o
passado impõe? Está na feitura da lista das possibilidades. Há uma “riqueza”
construída, há um caminho feito e que indica um caminho a fazer. Há relações
construídas e há uma malha tecida. Aí as limitações e/ou as fabulosas aberturas
liberadas pelo passado. Serão limitações e elas, certamente, existem, quando
consideradas impeditivas do crescimento e/ou destruidoras de qualquer futuro...
- “Eu posso ir
embora. O senhor não pode. Eu tenho o mundo, o senhor tem aquela mesa pesada.
Para sair, o senhor teria que se desfazer dela ou arrastá-la sempre. Eu sou um
homem leve e o senhor é um homem pesado. Preso naquele pé de abiu, que
alimentou suas fantasias de menino e a sua juventude. Eu estou leve e nenhuma
árvore de frutas me prende porque eu não tenho e nunca tive um pé de abiu e nem
uma mesa. O mundo todo é meu, o senhor tem apenas esta fazenda e por ela o
senhor perde a vida”
(O empregado
da fazenda do tio da Áurea, ao ser despedido)
... ou poderão
metamorfosear-se, de limitações passarem a ser trampolins para maiores e mais
distantes saltos, fabulosas aberturas - é a aventura do intelecto, do espírito
em crescimento permanente, mesmo na mais profunda obscuridade, mesmo nas
limitações do apenas registrar, registrar, acumular, acumular. É a grande
aventura, a fabulosa aventura do crescimento vertiginoso do espírito e de sua
história e de um homem só.
O que um homem
mais velho, tendo ultrapassado etapas de iniciação e de produção, avaliaria, em
função de permitir a outros reduzir etapas, eliminar volteios e tempos
perdidos?
- Digamos, eu
me assusto com a quantidade de pessoas atrás de uma profissão, de um documento
profissional, de uma definição de atividade.
- De uma
qualidade. Um carimbo. Identidade.
Outra questão:
A declaração
de amor. Por que declarar amor? A pessoa precisa dizer o amor que sente?
Há quem conta
histórias de pessoas que tiveram a experiência de sobreviver depois de um
período entre a vida e a morte. Um programa de tv mostra uma mulher no CTI
que percebe o que acontece em volta do seu leito, o drama dos outros pacientes,
cenas que apenas ela assiste, que mais tarde checou. O episódio do seu grande
amor pela “vó Gorda”. A família não havia avisado o que acontecera com a neta,
preocupados com a saúde da avó. Ela imagina-se e se vê indo até a avó, vê a avó
e ela a ouve chamá-la. Em seguida, quase instantaneamente, a avó liga procurando
saber notícias.
- Indago: o
amor deve ser declarado?
Já imaginou,
você que vive um grande amor por outra pessoa e que nunca se revela, nunca se
declara?
Os amores de
Dante e de outros grandes apaixonados, que sempre viveram apaixonados e que
jamais declararam, em tempo útil, o amor amado à pessoa amada.
(*) Ulrich é matemático, tem 32 anos,
vive em Viena em plena eclosão da I Guerra (1914-1918. Homem comum, desprovido
de ambições, despreocupado com a simbologia da ostentação da riqueza. Ulrich
não se destaca pela beleza ou pela feiura.
Esse é o personagem principal do
romance O
homem sem qualidades, de Robert Musil. Uma das principais obras da
literatura do século XX e seu autor é colocado ao lado de nomes como Marcel
Proust, James Joyce, Stefan Zweig e Thomas Mann.