quinta-feira, 13 de novembro de 2025

A VIDA SEM QUALIDADE

 





 

 

Só me resta a felicidade

 

Rufino Fialho Filho

 

[...] nenhuma coisa, nenhum eu, nenhuma forma, nenhum princípio são certos, tudo se encontra numa transformação invisível e incessante. No instável há mais futuro do que no estável. O          presente não é senão uma hipótese que ainda não superamos. O que [Ulrich] poderia fazer de melhor senão manter-se livre desse mundo, naquele bom sentido com que um pesquisador se mantém livre diante dos fatos que o querem seduzir e fazer acreditar neles precipitadamente?!

 

A exatidão será, paradoxalmente, o reconhecimento da imprecisão dos fatos e da impossibilidade de verdades definitivas. (*)

 

 

 

 Quem sou eu?

 

O que serei?

 

O que posso ser?

 

 A identidade me foge e é onde me perco?

 

O que o passado impõe e limita?

 

O que serei?

 

É uma pergunta que pretende uma resposta acabada? Serei Y, algo que me contenta e me faz feliz e livre.

 

O que serei? Indaga possibilidades. Pressupõe alternativas. Serei o que posso ser ou poderei ser além do que posso ser? 

 

(E o aquém? Serei aquém das minhas possibilidades de homem, de ser humano?)

 

A um homem que só lhe restar a felicidade, responderia positivamente?

 

- Só me resta a felicidade.

 

Soa como uma condenação.

 

- O homem está condenado à liberdade - diz o francês.

 

O que posso ser? É a indagação que sugere a elaboração de uma lista de possibilidade e de possibilidades relacionadas a oportunidades.

 

Na coluna de possibilidades, a felicidade. Na coluna de oportunidades ser feliz, total. As oportunidades são amplas e percorrem todas as coordenadas, todos os pontos e momentos de uma vida.

 

Ao longo da vida, o homem sempre desperta com este tipo de questionamento. Nem sempre dá importância.

 

Há a possibilidade de mudanças e de aprimoramento. Não respondem, de imediato, ao questionamento. 

 

Aos oitenta anos quem ainda pode questionar-se, ainda lhe restará algumas possibilidades, às vezes radicais.

 

Em cada tempo, este questionar-se traduz-se pelo, permanente, avolumar-se, do crescer. Chega a tornar-se maior do que a vida, dominar a vida, impedir a vida, paralisar a vida.

 

“Eu preciso responder e andar. Fazer alguma coisa”.

 

O que o passado impõe? Está na feitura da lista das possibilidades. Há uma “riqueza” construída, há um caminho feito e que indica um caminho a fazer. Há relações construídas e há uma malha tecida. Aí as limitações e/ou as fabulosas aberturas liberadas pelo passado. Serão limitações e elas, certamente, existem, quando consideradas impeditivas do crescimento e/ou destruidoras de qualquer futuro...

 

- “Eu posso ir embora. O senhor não pode. Eu tenho o mundo, o senhor tem aquela mesa pesada. Para sair, o senhor teria que se desfazer dela ou arrastá-la sempre. Eu sou um homem leve e o senhor é um homem pesado. Preso naquele pé de abiu, que alimentou suas fantasias de menino e a sua juventude. Eu estou leve e nenhuma árvore de frutas me prende porque eu não tenho e nunca tive um pé de abiu e nem uma mesa. O mundo todo é meu, o senhor tem apenas esta fazenda e por ela o senhor perde a vida”

 

(O empregado da fazenda do tio da Áurea, ao ser despedido)

 

... ou poderão metamorfosear-se, de limitações passarem a ser trampolins para maiores e mais distantes saltos, fabulosas aberturas - é a aventura do intelecto, do espírito em crescimento permanente, mesmo na mais profunda obscuridade, mesmo nas limitações do apenas registrar, registrar, acumular, acumular. É a grande aventura, a fabulosa aventura do crescimento vertiginoso do espírito e de sua história e de um homem só.

 

 

O que um homem mais velho, tendo ultrapassado etapas de iniciação e de produção, avaliaria, em função de permitir a outros reduzir etapas, eliminar volteios e tempos perdidos?

 

- Digamos, eu me assusto com a quantidade de pessoas atrás de uma profissão, de um documento profissional, de uma definição de atividade.

 

- De uma qualidade. Um carimbo. Identidade.

 

Outra questão:

 

A declaração de amor. Por que declarar amor? A pessoa precisa dizer o amor que sente?

 

Há quem conta histórias de pessoas que tiveram a experiência de sobreviver depois de um período entre a vida e a morte. Um programa de tv mostra uma mulher no CTI que percebe o que acontece em volta do seu leito, o drama dos outros pacientes, cenas que apenas ela assiste, que mais tarde checou. O episódio do seu grande amor pela “vó Gorda”. A família não havia avisado o que acontecera com a neta, preocupados com a saúde da avó. Ela imagina-se e se vê indo até a avó, vê a avó e ela a ouve chamá-la. Em seguida, quase instantaneamente, a avó liga procurando saber notícias.

 

- Indago: o amor deve ser declarado?

 

Já imaginou, você que vive um grande amor por outra pessoa e que nunca se revela, nunca se declara?

 

Os amores de Dante e de outros grandes apaixonados, que sempre viveram apaixonados e que jamais declararam, em tempo útil, o amor amado à pessoa amada.

 

 

(*) Ulrich é matemático, tem 32 anos, vive em Viena em plena eclosão da I Guerra (1914-1918. Homem comum, desprovido de ambições, despreocupado com a simbologia da ostentação da riqueza. Ulrich não se destaca pela beleza ou pela feiura.

 

Esse é o personagem principal do romance O homem sem qualidades, de Robert Musil. Uma das principais obras da literatura do século XX e seu autor é colocado ao lado de nomes como Marcel Proust, James Joyce, Stefan Zweig e Thomas Mann. 

 

 


terça-feira, 21 de outubro de 2025

Horas Perdidas?










Pleno Inverno 


na estrada rumo ao Sul

 


 

Chove no Rio Grande do Sul. A Notícia me interessava. Ainda na estrada de São Paulo a Porto Alegre com o carro estourando de tanta estrada, saíra de Minas Gerais no dia anterior. Comparava a minha resistência, horas sem dormir, com a do carro.

 

Da mesa do restaurante, observava os mecânicos a gesticular em torno do carro que revisavam. Mesmo com os vidros embasados, com a neblina e o nevoeiro da manhã fria, já perto de Santa Catarina, via tudo com nitidez até uns vinte metros.

 

O resto na distância era só imaginação. Chuva forte. Julho. No relógio, quase 6 horas. Pouco movimento no restaurante, um e outro motorista. Chegam e saem. Rápidos.

 

A garçonete, inexperiente, serve e faz perguntas, conta casos de acidentes. Diz conhecer bem a estrada, indica os pontos perigosos. Ela é uma garota nova. Talvez 16 anos. Filha daquele bigodudo, gerente ou dono da menina. Talvez. Ela se afasta e o barulho dos copos e pratos continua. Nada má, cheia de proporções. A revisão e o conserto do carro demorarão algumas horas. Aceito a cama oferecida pela garçonete. Seis e cinco. Amanhece. O despertar numa manhã tão cedo, na estrada, um pouco sonolento, com aquela neblina, com o nevoeiro, ativa o tesão. A garota inquieta.

 

- Açúcar?

 

O gerente e/ou o dono da menina olha-me. Oferece mercadorias. Bom dia, senhor cafetão. Olhos falam. Denunciam intenções. Ele aprovou-me e saiu para a frente do restaurante.

 

- Quero me lavar. Onde é o quarto?

 

- Providenciarei a água quente.

 

Indicou o banheiro.

 

- Não se preocupe, eu faço tudo.

 

*

 

Apanhou o jornal, os cigarros e dobrou a japona nos braços. Sorriu. Vitoriosa ou feliz ou satisfeita. Decidi almoçar no restaurante. Sem pressa, sem correria, aberto às surpresas que a estrada oferece ao que viaja com segurança. Ela não aceitou dinheiro.

 

Ao manobrar de volta para a estrada, parei o carro, numa freada forte. Lá dentro do restaurante, atrás da janela ainda ofuscada pela neblina, a garçonete chorava. Não era mais a garota que amanhecia, já uma mulher e seus cabelos não estavam mais louros. Via os cabelos pretos da minha mulher. Com a freada, o carro desligou. Abri a porta do restaurante. Ela estava parada no salão. Ninguém mais ali por perto. Seus cabelos voltaram a ser louros e ela, uma menina de 16 anos. Uma mulher. Ela chorava.

 

Nós nos conhecemos há cinco horas ou pouco mais.

 

- Não era minha intenção fazê-lo voltar. Pode ir. Cuidado com a estrada, daqui a dois quilômetros, o asfalto partiu. Cuidado e calma. Passe na volta, estarei aqui.

 

Irrequieta? Não. Calma. Tranquila. Ela tinha razão, conhecêramos há cinco ou seis horas. Foram apenas 5 ou 6 horas. Como um simples viajante, deveria continuar o caminho. Seguir. De que adiantaria qualquer outra decisão. Foram apenas cinco horas entre um homem e uma mulher, uma menina, numa parada de beira de estrada. Continuaria, pelo menos aí, na estrada, sabia qual era o meu destino. Devia seguir em frente. Refiz meus cálculos computei cinco horas perdidas. Cinco horas de atraso.

 

Sem pressa e nem hora marcada, rumo a Montevidéu, onde, depois de 20 meses, um ano e oito meses, reencontraria com minha mulher.

 

Quase quebro o carro no asfalto partido. Ah! Garota.

 

Minha mulher sorri. As duas tem o mesmo sorriso.

 

Na escola, ela se distinguia das colegas pelo sorriso, tímido, lábios fechados. Um sorriso misterioso, quase imperceptível.

 

Retomei a estrada mais seguro. As duas me acompanhavam com suas imagens em rápidas misturas, ora os cabelos eram louros, ora, negros.

 

Barbara

 

Bárbara, os colegas a criticam. Poucas palavras. Voz frágil. Infantil. Ninguém conhecia aquela que para todos era fria, pelo silêncio era "uma crítica".

 

O nosso casamento foi discutido, muito discutido. A saúde precária do pai impôs o adiamento. Ela controlava a casa, administrava o dia a dia.

 

Bárbara me apresentou Madalena e as suas maravilhosas "bolachas com recheio doce".

 

Atração total pelo paladar. Em um mês, Madalena já era a noiva. Bárbara controlava as paixões também. Se ela se assustou, nunca ninguém soube. Era uma mulher fria. Mais um episódio a confirmar aquela impressão. Pai, mãe, mais duas irmãs menores, todos mudaram para o Uruguai. Mudou mais uma vez a data do casamento. 

 

Éramos três alegres camaradas que se divertiam com tudo. Passeios em parques de diversão, no Parque Rodô, praia de Pocitos, praia de Ramirez, caminhávamos por Montevidéu.

 

                       

 

  

 

CÂNTICO NEGRO

 

José Régio

 

"Vem por aqui" - dizem-me alguns com os olhos doces

Estendendo-me os braços, e seguros

De que seria bom que eu os ouvisse

Quando me dizem: "vem por aqui!"

Eu olho-os com olhos lassos,

(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)

E cruzo os braços,

E nunca vou por ali...

 

A minha glória é esta:

Criar desumanidade!

Não acompanhar ninguém.

- Que eu vivo com o mesmo sem-vontade

Com que rasguei o ventre à minha mãe

 

Não, não vou por aí! Só vou por onde

Me levam meus próprios passos...

 

Se ao que busco saber nenhum de vós responde

Por que me repetis: "vem por aqui!"?

 

Prefiro escorregar nos becos lamacentos,

Redemoinhar aos ventos,

Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,

A ir por aí...

 

Se vim ao mundo, foi

Só para desflorar florestas virgens,

E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!

O mais que faço não vale nada.

 

Como, pois sereis vós

Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem

Para eu derrubar os meus obstáculos?...

Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,

E vós amais o que é fácil!

Eu amo o Longe e a Miragem,

Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

 

Ide! Tendes estradas,

Tendes jardins, tendes canteiros,

Tendes pátria, tendes tectos,

E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...

Eu tenho a minha Loucura !

Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,

E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...

 

Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém.

Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;

Mas eu, que nunca principio nem acabo,

Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

 

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!

Ninguém me peça definições!

Ninguém me diga: "vem por aqui"!

A minha vida é um vendaval que se soltou.

É uma onda que se alevantou.

É um átomo a mais que se animou...

Não sei por onde vou,

Não sei para onde vou

- Sei que não vou por aí!