Pleno Inverno na estrada rumo ao Sul
Pleno Inverno
Cinco horas perdidas no caminho gelado dos
lagos do Sul
Chove no Rio Grande do Sul. A Notícia me
interessava. Ainda na estrada de São Paulo a Porto Alegre com o carro
estourando de tanta estrada, saíra de Minas Gerais no dia anterior. Comparava a
minha resistência, horas sem dormir, com a do carro.
Da mesa do restaurante, observava os
mecânicos a gesticular em torno do carro que revisavam. Mesmo com os vidros
embasados, com a neblina e o nevoeiro da manhã fria, já perto de Santa
Catarina, via tudo com nitidez até uns vinte metros.
O resto na distância era só
imaginação. Chuva forte. Julho. No relógio, quase 6 horas. Pouco movimento no
restaurante, um e outro motorista. Chegam e saem. Rápidos.
A garçonete, inexperiente, serve e faz
perguntas, conta casos de acidentes. Diz conhecer bem a estrada, indica os
pontos perigosos. Ela é uma garota nova. Talvez 16 anos. Filha daquele
bigodudo, gerente ou dono da menina. Talvez. Ela se afasta e o barulho dos
copos e pratos continua. Nada má, cheia de proporções. A revisão e o conserto
do carro demorarão algumas horas. Aceito a cama oferecida pela garçonete. Seis
e cinco. Amanhece. O despertar numa manhã tão cedo, na estrada, um pouco
sonolento, com aquela neblina, com o nevoeiro, ativa o tesão. A garota
inquieta.
- Açúcar?
O gerente e/ou o dono da menina
olha-me. Oferece mercadorias. Bom dia, senhor cafetão. Olhos falam. Denunciam
intenções. Ele aprovou-me e saiu para a frente do restaurante.
- Quero me lavar. Onde é o quarto?
- Providenciarei a água quente.
Indicou o banheiro.
- Não se preocupe, eu faço tudo.
*
Apanhou o jornal, os cigarros e dobrou
a japona nos braços. Sorriu. Vitoriosa ou feliz ou satisfeita. Decidi almoçar
no restaurante. Sem pressa, sem correria, aberto às surpresas que a estrada
oferece ao que viaja com segurança. Ela não aceitou dinheiro.
Ao manobrar de volta para a estrada,
parei o carro, numa freada forte. Lá dentro do restaurante, atrás da janela
ainda ofuscada pela neblina, a garçonete chorava. Não era mais a garota que
amanhecia, já uma mulher e seus cabelos não estavam mais louros. Via os cabelos
pretos da minha mulher. Com a freada, o carro desligou. Abri a porta do
restaurante. Ela estava parada no salão. Ninguém mais ali por perto. Seus
cabelos voltaram a ser louros e ela, uma menina de 16 anos. Uma mulher. Ela
chorava.
Nós nos conhecemos há cinco horas ou
pouco mais.
- Não era minha intenção fazê-lo
voltar. Pode ir. Cuidado com a estrada, daqui a dois quilômetros, o asfalto
partiu. Cuidado e calma. Passe na volta, estarei aqui.
Irrequieta? Não. Calma. Tranquila. Ela
tinha razão, conhecêramos há cinco ou seis horas. Foram apenas 5 ou 6 horas.
Como um simples viajante, deveria continuar o caminho. Seguir. De que
adiantaria qualquer outra decisão. Foram apenas cinco horas entre um homem e
uma mulher, uma menina, numa parada de beira de estrada. Continuaria, pelo
menos aí, na estrada, sabia qual era o meu destino. Devia seguir em frente.
Refiz meus cálculos computei cinco horas perdidas. Cinco horas de atraso.
Sem pressa e nem hora marcada, rumo a
Montevidéu, onde, depois de 20 meses, um ano e oito meses, reencontraria com
minha mulher.
Quase quebro o carro no asfalto
partido. Ah! Garota.
Minha mulher sorri. As duas tem o
mesmo sorriso.
Na escola, ela se distinguia das
colegas pelo sorriso, tímido, lábios fechados. Um sorriso misterioso, quase
imperceptível.
Retomei a estrada mais seguro. As duas
me acompanhavam com suas imagens em rápidas misturas, ora os cabelos eram
louros, ora, negros.
Barbara
Bárbara, os colegas a criticam. Poucas
palavras. Voz frágil. Infantil. Ninguém conhecia aquela que para todos era
fria, pelo silêncio era "uma crítica".
O nosso casamento foi discutido, muito
discutido. A saúde precária do pai impôs o adiamento. Ela controlava a casa,
administrava o dia a dia.
Bárbara me apresentou Madalena e as
suas maravilhosas "bolachas com recheio doce".
Atração total pelo paladar. Em um mês,
Madalena já era a noiva. Bárbara controlava as paixões também. Se ela se
assustou, nunca ninguém soube. Era uma mulher fria. Mais um episódio a
confirmar aquela impressão. Pai, mãe, mais duas irmãs menores, todos mudaram
para o Uruguai. Mudou mais uma vez a data do casamento.
Éramos três alegres camaradas que se
divertiam com tudo. Passeios em parques de diversão, no Parque Rodô, praia de
Pocitos, praia de Ramirez, caminhávamos por Montevidéu.
CÂNTICO NEGRO
José Régio
"Vem por aqui" - dizem-me
alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por
aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e
cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
- Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós
responde
Por que me repetis: "vem por
aqui!"?
Prefiro escorregar nos becos
lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés
sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia
inexplorada!
O mais que faço não vale nada.
Como, pois sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e
coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho
dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os
desertos...
Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e
filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na
noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos
nos lábios...
Deus e o Diabo é que guiam, mais
ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o
Diabo.
Ah, que ninguém me dê piedosas
intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por
aqui"!
A minha vida é um vendaval que se
soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
- Sei que não vou por aí!