sexta-feira, 23 de outubro de 2009

UM MERGULHO NAS ESTRELAS



A. Arcanjo 


Para Matozinhos de Castro 


O lugar onde eu nasci não existe mais. 

São José das Tronqueiras está mergulhada debaixo das águas da usina. Volto lá de barco. Eu navego sobre a minha infância. 

 Minha terra, o meu berço, o lugar onde eu nasci, a pequena loja de meu pai, tudo agora está debaixo da água. 

No comércio de pai, ele vendia de tudo um pouco, tecidos, panelas, remédios, balas, cadernos, macarrão, farinha, lápis, bala, tudo e a regra era simples e direta: se ele vendia, ele também deveria comprar. 

E ele também comprava de tudo: frango, galinha, porco, caça, frutas. Chegou até a ser um respeitado comprador de café. 

A lojinha de paredes brancas, portas e janelas vermelhas, também está lá embaixo e eu acredito que navego em cima da rua da sua loja. 

Sozinho, no meio desta mundo de água, desligo o barco. Não sei quantos meninos como eu tiveram suas casas inundadas, colocadas debaixo da água para sempre. 

A verdade é que somos muitos com as nossas infâncias dentro de verdadeiros aquários. Parado na imensa represa da Usina de Tronqueiras, trago de volta o meu pai. Figura fantástica. 

Naqueles rincões do Vale do rio São Mateus, ele enfrentou um ditador que fechou as escolas primárias da zona rural. E toda aquela história acontecera ali. 

Estava ali, agora, debaixo de mim. 

Meu pai, meu herói, meu orgulho, não usou nenhuma arma nesta briga e nem foi violento. Foi inteligente. Jamais falou mal de ninguém, muito menos do ditador e dos amigos do ditador nas Tronqueiras. 

Calado, ele enfrentou o perigo. Sem medo. Existem homens que ensinam falando, são os mestres. 

Meu pai ensinava, em silêncio, ensinava com o que fazia. Era um homem. 

Vargas, o ditador, não fechou escolas nas cidades grandes porque os ditadores também têm medo e porque haveria muita briga, muita confusão. 

Nos grotões, ele fechou não só as escolas. Fechou também os pequenos engenhos que abastecia de açúcar toda a região dos vales. Naquela época, não havia açúcar suficiente para todos. O açúcar não chegava no grande interior. Era do nosso engenho da roça que saia a rapadura para o café e até mesmo para adoçar o mingau das crianças. 

Getúlio mandou lacrar estes engenhos com um selo semelhante a estes selos dos carros e ai daquele pequeno que violasse o lacre. 

Não chegava o açúcar para nós, mas a polícia especial de Getúlio andava por todos os lugares, prendia, batia, espancava mesmo e fazia tudo o mais. Nós tínhamos medo. Quando se fala de analfabetismo no Brasil, você pode estar certo que o grande índice de analfabetos está na minha idade, em torno dos 60 anos. A criança da minha geração se viu sem escola. 

O ditador mandara fechar as nossas escolas. Meu pai contratou uma professora formada, lá de Virginópolis, dona Sebastiana Campos de Almeida, dona Tianinha. Não fez alarde. Nem gritou contra a decisão do ditador. Trouxe a professora. Montou dentro de casa um cômodo que ele chamou de “lugar de estudo”. Não podia chamar de escola, muito menos de sala de aula. 

Dona Tianinha - a gente não esquece o nome dessas pessoas. Elas são muito importantes nas nossas vidas, preenchem todo o nosso tempo e a nossa imaginação. As crianças tinham um carinho todo especial por aquela mestra. 

Depois, meu pai contratou um outro professor. O professor Astor Alves Pinto, primo do doutor Ricardo Alves Pinto, um advogado famoso de Teófilo Otoni. Gostava de tocar violão e dizia que era mais fácil aprender com música. 

Nas festas, lá estava a bandinha, um violão e o resto da orquestra era improvisado, lata d’água, caixa de fósforo, pá de pedreiro, pedaços de pau, bambu e tudo o que desse som. Por que o segundo professor? Porque os pais, que não podiam contratar um professor, procuraram o meu pai e os quartos foram enchendo de meninos. Chegavam mais crianças. Meu pai autorizava. 

Era menino já na cozinha, no terreiro e até no depósito. Os dois professores dobraram turno e foram contratados mais outros dois. Mesmo assim, os quatro professores tiveram que dobrar turno para que a criançada fosse alfabetizada. A cada criança que chegava, papai observava que estávamos vencendo. 

No dia em que chegaram os filhos dos “amigos do ditador” e do pessoal da polícia, tivemos certeza de que tudo daria certo. Eles também precisavam estudar. Foi a grande vitória do meu grande herói. Assim, todos nós venceríamos o ditador. Era a nossa luta e que meu pai, os professores e a cidade transformaram numa grande batalha silenciosa mas cheia de brincadeiras e alegrias. 

A região era muito populosa. Não tinha diversão nenhuma comparada com as de agora. Cinema? Nem imaginávamos. Nem rádio tínhamos. A maior diversão dos adultos eram as conversas sem fim, naqueles fins de tarde, ora na porta de casa ora na porta da venda, ora na porteira. 

Para os meninos, todo o tempo e todos os lugares: o rio e as matas. Os fregueses do meu pai que mais mandavam meninos para o Lugar de Estudos eram o seu Joaquim Pereira e a dona Maria, dois mulatos, dois cablocões, cruzamento de preto com índio. Eu os conheci já envelhecidos. Ele, de cabelo seco, barbicha branca, muito simpático. 

Todas as vezes que vejo uma foto ou um desenho de um de um preto velho, escravo antigo, agachado ou sentado, fumando seu cachimbo, lá vejo de novo o seu Joaquim. Dona Maria, depois de 48 filhos, com 32 sobreviventes, ainda era uma fortaleza de mulher. 

Os 32 filhos criados, que casaram, constituíram família. Moças e rapazes a perder de vista, a esquecer a identidade e a confundir a idade. Todos criados lá nas Tronqueiras. Depois destes 48 filhos, dona Maria e seu Joaquim ajudaram na criação dos netos. Os berços andavam sempre ocupados. 

Uma vez por mês, num domingo, quando o padre de Coroaci ia celebrar a missa, eles transformavam sua caminhada até a igreja em uma grande aventura. Eles percorriam a pé uma distância de 18 quilômetros. Todos eles, com a dona Maria à frente, caminhavam, ocupando sempre um lado do caminho. Era a disciplina de todos que seguiam a caminhada firme de dona Maria, com a sua saia rodada, parecendo saia de espanhola ou de cigana. 

Aquele grupo, cheio de cores, impressiona, ainda hoje, estes olhos de menino pela sua pujança, pela pujança da força dela e pela beleza da sua gente, no sol de logo depois do amanhecer. Ela caminhava sempre na frente. Ela vinha, vinha se aproximando. 

Seus passos até hoje chegam firmes aos meus olhos. A poucos metros, corria para o alto de uma cerca e ficava observando-os passarem. Lá ia Izaltino, menino treiteiro, Bagão, ponta esquerda, Zé Leôncio, Cleiton, Rivaldaver, Nagib, Leonídio, Flora, Teca, meus colegas de matemática. Muitos outros. 

Confesso que, mesmo aqui sozinho no meio deste mar de água da represa, tenho vontade de chorar, de chorar de felicidade em ter conhecido todos eles. Dona Maria, comandava aquela caminhada, verdadeira procissão. Eram quase cem pessoas. 

Toda a sua família seguindo os seus passos, seguindo os passos firmes de dona Maria, passos que, naquela terra fofa, não levantavam poeira, como se fossem conduzidos pela leveza de uma santa. 

Em seguida, vestidos com suas melhores roupas, vinham as filhas, os filhos com suas calças de um tecido de brim caqui, calças e camisas bem passadas. Netos, genros e noras, uma multidão de pessoas que era a mais bela obra daquela vida. 

Lá atrás, fechando a procissão, vinha o velhinho. Ele já não mais caminhava um percurso daquele tamanho. Seu Joaquim montava um cavalo baio, de pouca crina, crina ruim, preta. Um cavalo baio de pouca cauda. Devagar, passo a passo. 

Sem pausa e sem pressa. 

Ele a cavalo era o último e levantava poeira. Todo aquele povo vinha para a missa. Na minha cabeça de menino, aquela era a mais longa de todas as missas, pois era uma missa que começava mesmo era na estrada. Depois da comunhão, com deus dentro de si, eles voltavam a pé. Era como se aquela missa não acabasse nunca. Continuaria na estrada. Na igreja, na fila da comunhão, olhos fechados, eles esperavam aquele grande momento em que teriam Cristo, através da hóstia, dentro de si. Grande era a fé e grande era a força destas pessoas. Todos de olhos fechados. 

Eu acreditava, piamente, que na comunhão eles recebiam deus e que deus jamais seria um só, deus se multiplicava e era tantos deuses quantos eles eram. Na caminhada até o altar, firmes, eles pareciam voar. Olhos fechados, o padre estendendo a hóstia consagrada, boca aberta, contritos, eles recebiam deus. O pão e o vinho, o corpo de deus, a hóstia consagrada e deus. 

Ao voltar para seus lugares, ajoelhados, cabeças baixas, eu tinha certeza, cada um deles era agora um homem e era também um deus. Três das filhas de dona Maria e de seu Joaquim casaram numa família de pessoas muito bravas, muito valentes. Eu me lembro dos nomes deles: Geraldo Catarino, Sebastião Catarino e um outro Catarino. Três irmãos casaram com três irmãs. Esse Geraldo e Zé Catarino, isto mesmo, eram Geraldo, José e Sebastião Catarino. Como o José e o Geraldo nunca se viu gente mais valente do que esses cabras. Eles eram produtores de café e também fregueses do meu pai. Vendiam café para o meu pai. 

Assim eram as relações, meu pai comprava e vendia, eles produziam e também compravam e vendiam. Assim também o velho Joaquim. Eram todos fregueses. Seu Joaquim e dona Maria, combinados com o meu pai, me levaram para as terras deles. Chegaram para entregar o café e eu acompanharia a tropa. Era a minha maior felicidade: conduzir uma tropa. Meu sonho, tudo o que eu queria ser era condutor de tropa. 

“O nosso principezinho tem que ir”. 

Eles me tratavam com carinho, gostavam do meu pai e, como eu os recebia quando vinham à loja, eles me tratavam como um igual e me chamavam sempre e a toda hora de “meu principezinho”. 

“Ô meu principezinho como vai?” 

Dona Maria, como as filhas, as filhas casadas e os genros me tratavam como um ser privilegiado pelo amor deles. Eu era o príncipe deles e, neste dia, me chamaram para acompanhá-los, introduzindo-me como condição para o fechamento do negócio. Os dois me proporcionariam a realização do meu grande sonho de menino. 

Ainda na frente da lojinha, assumi o comando da tropa. Um príncipe e um tropeiro, um condutor de tropa. Fui para a frente da tropa, ocupei meu lugar e dei o grito de largada. Puxei a tropa. Eu, na frente. Eu tinha nove anos, tínhamos poucos livros. Assim como com as pessoas grandes, a conversa, ouvir as pessoas era a nossa grande aventura. Naquela viagem, eu conduzindo a tropa, caminhávamos ouvindo dona Maria. 

Ela advertia. Não devíamos andar devagar, pois tínhamos que atravessar o cemitério ainda de dia. Não era medo. Ela não gostava. As lembranças eram muito tristes. Era por tristeza, não por medo. O medo sempre acaba, a tristeza nunca. Eu conhecia aquele cemitério. Estava, lá, perdido na montanha, de um lado da montanha com umas poucas cruzes e no meio de muito mato. Não podia ficar mais atento ao ritmo da tropa. Jamais iria desagradar dona Maria. 

Ela já falava sobre as estrelas e que aquela noite, sem lua, seria uma noite muito clara porque haveria um céu cheio de estrelas. 

“As estrelas são como as gentes” 

Soou limpa a voz suave daquela mulher. Ouvi que ela falava como se estivesse conversando com cada um de nós. Era como se ela estivesse ali ao meu lado, conduzindo os jumentos, os cavalos e os carros de bois comigo. Naquelas imensidões, se ela falasse mais baixo, seria ouvida do mesmo jeito. Sua voz era suave e forte. 

 “As estrelas e os homens são iguais”. “Você consegue imaginar uma estrela e um homem como iguais?” (Ninguém disse nada e ela continuou). 

O padre Miguel não aceita. Ele é novo, mas o padre Antônio, que já morreu, sabe. Aqui, morou um menino. Ali, bem ao lado da nascente do Tronqueiras. Eu não sei o nome dele. Nem sei se ele chegou a ter nome. 

Caburé

A gente o chamava de Caburé. Seus pais o abandonaram muito pequeno. Ou ele foi o único sobrevivente. Seus pais podiam ter morrido. Isto, Caburé jamais revelaria. Era seu trunfo, sua segurança. Ninguém sabe como, ele permaneceu na casa, sobreviveu e quem chegava na casa se espantava com a limpeza e com os cuidados de Caburé em deixar sempre frutas novas e um pouco de comida na casa. 

Ele acreditava que seus pais um dia voltariam e que, caso ele não estivesse na hora, encontrariam o que se alimentar. Menino ainda, Caburé sempre andava pelas terras e sempre arranjava um serviço, algo para fazer. Todos tinham alguma coisa para ele fazer. 

Seu Nestor da Andirana emprestou-lhe um cavalo e todas as manhãs, bem antes do dia clarear, os animais de pastoreio do seu Nestor já estavam presos no curral. Caburé não era menino de pouca conversa. 

 - Alegre, sempre muito alegre, mas sempre sozinho – seu Joaquim ajuntou. 

Aos poucos, o menino com o que ganhava já tinha em seu cercado alguns porcos, depois uma vaca. Um dia comprou uma mula que ele mesmo amansou. Era uma mula vermelha. Muito bonita. 

 Na nossa fazenda, Caburé sempre ajudou na colheita do café. Nos dias em que ele passou na nossa casa, Caburé contou que seus pais estavam viajando e que a viagem deles era uma viagem muito longa. 

 - Você era muito pequeno quando seus pais foram embora. 

- Eles me disseram que iam viajar e que depois voltariam. Eu deveria olhar sempre para o céu, quando tivesse muitas estrelas, pois eles chegariam de um lugar distante. 

O tempo passou e Caburé, em todas as noites estreladas, dormia no terreiro da casa. Um dia, ele percebeu que uma estrela lhe fazia sinais. Eram duas estrelas. O sono fora tão forte que ele não entendera direito aqueles sinais. Nas outras noites cheias de estrelas, Caburé não conseguia mais encontrar aquelas duas estrelas, até que uma noite, as duas aproximaram-se dele. A quantidade de luz era tão forte, que ele custou a dominar seus olhos e mantê-los abertos. Foi numa noite em que parecia dia de tanta luz que vinha das estrelas. Ele não teve medo. Eram os seus pais. Eles riram e se abraçaram tanto que, mais uma vez, o sono o dominou. 

Ao acordar, estava deitado em sua cama e não no terreiro. Estava coberto e a casa toda fechada. Dormira na cama e não lá fora. 

Tudo teria sido um sonho para ele 

Na cozinha, a surpresa, as frutas e a farinha com carne seca foram comidas. Comeram tudo e as cascas das frutas estavam do lado de fora da casa, dentro da vasilha da lavagem dos porcos. 

 Seu Nestor da Andirana contou a história para o padre Antônio. O padre Antônio falou na missa que todos nós devíamos estar junto com Caburé neste momento. 

Quem foi primeiro visitá-lo, seu Armindo, o sapateiro, voltou com toda a história da limpeza e da beleza da organização da casa. 

 “Os jardins estão cheio de flores e cada flor mais bonita do que a outra”. 

 - Um menino! Um menino sozinho? 

Ninguém conseguia entender e quem tinha suas casas sujas e desarrumadas, seus jardins mal cuidados ficaram com vergonha e se desdobraram. 

Nunca, em Tronqueiras, se teve tantas flores nos jardins. O pequeno Caburé nos dera uma lição e sua primeira lição fora o de que era capaz uma pessoa sozinha. Padre Antônio passou a visitar mais nosso povo. Ele que vinha rezar a nossa missa de quarenta em quarenta e cinco dias, ficou semanas inteiras em Tronqueiras e tivemos missas todos os sábados e todos os domingos. 

Caburé nos ensinou que quem não é preguiçoso faz florir um jardim. Mas por que fazer florir um jardim, por que aguar uma planta, por que cuidar da limpeza dos canteiros? 

Porque é a vida e ela deverá sempre estar pronta para florir. Caburé acredita que seus pais um dia voltariam e eles encontrariam um lugar feliz. Assim como cuidamos das plantas, devemos cuidar de nosso corpo e da nossa casa. A felicidade começa na entrada da nossa casa. 

Todos os dias em que esteve conversando com Caburé, o padre voltava para um sermão que enchia toda a igreja e as pessoas vinham de lugares cada vez mais distantes para ouvi-lo. O último sermão do padre foi sobre as estrelas e os homens. 

Foi ele que nos ensinou como as estrelas se tornam homens e como os homens se tornam estrelas. 

O padre dizia que aquilo era um exercício sobre o amor dos homens e que somente os homens que eram capazes de amor seriam capazes de entender, de compreender e de ouvir estrelas. Contou para nós que realmente os pais de Caburé se tornaram aquelas estrelas maravilhosas e cheias de luzes. 

E ele leu para nós uma poesia que falava de um poeta que conseguia também ouvir as estrelas. Um dia, Caburé voltava para casa com a sua mula, Vermelha. Era tardinha de um dia que prometia uma noite estrelada, quando, ali, na porteira do seu Quincas, um Tamanduá Bandeira atravessou na frente deles. 

Normalmente, o Tamanduá fugiria da mula e do menino. Eles ficaram, sem saída, frente a frente, e o Tamanduá bateu forte na barriga da mula que caiu no chão. Na luta, Caburé conseguiu matar o Tamanduá, mas também morreu. 

No outro dia, os três foram encontrados ao lado da porteira. Caburé abraçado com o Tamanduá, com quem lutara, tentando salvar a mula. Caburé está lá naquele cemitério. 

Dona Maria parou a história quando nos aproximávamos do cemitério. Muitas estrelas no céu e não era totalmente noite. Ou já era noite? Vi que havia uma estrela diferente e que ela nos ouvia. Pensei, se nós podemos ouvir as estrelas, as estrelas também nos ouviam. Assim, como na missa, quando caminhávamos em silêncio para a comunhão, fizemos todo aquele trajeto ouvindo nossos passos, o ranger das cordas e dos couros. Cansados, dormimos. Chegamos, dormimos. 

 No outro dia, um dos primeiros a acordar, tomei um susto quando olhei para o chão. O chão era de um branco tão branco que parecia não ter fim, pois continuava nas paredes. Nem o chão tinha fim e nem as paredes tinham fim. Aquela cor branca e forte assustou-me. Onde estava? Era a casa mais limpa que eu havia visto até então. 

Seu Joaquim me diz que posso pisar no chão. Paciente, ele me explica como se constroem aquelas casas. Não tem alicerce. É de pau a pique. Não é de tijolo. Finca-se quatro esteios. Na divisão põe-se uma madeira mais forte. No meio joga-se o adobe. O adobe é feito de barro e não é queimado. É seco, no tempo. 

Essa é a chamada casa de enchimento, porque faz-se as placas de barro, pega na mão e joga. Põe, primeiro, o pau a pique, abre o bambu ou taquara ou cipó e vai passando, deixando os intervalos, onde se joga o barro. O barro pegará naquele espaço. Com o barro, cobre a parede e fica até fazer o reboco, aparece a taquara, aparece o pau a pique, que usou como escoramento. Vi fazer tantas destas casas na região. São muitas as casas deste tipo. 

A base da casa fica quase nivelada ao chão. Os mais caprichosos com um aterro controlam a umidade e jogam uma terra mais dura. Nivelam aquilo de uma forma que se pode meter o nível e não se encontrará nenhuma diferença. Como naquele tempo era difícil encontrar o cal, nem tinha tampouco as tintas de caiar casas, como nas grandes cidades, então usava-se um barro que na roça dá-se o nome de tabatinga

Esse barro branco é que dá essa cor branca que deixa as pessoas impressionadas. A gente tira o barro tabatinga bruto lá no brejo, mistura e põe numa lata, mistura com água, mexe-se, vai mexendo até aquilo ficar com um caldo parecendo leite. Com a mão e um pano vai passando na parede e no piso da casa. 

Tabatinga no piso não é comum. Habitualmente, passa-se a tinta branca, feita com tabatinga, só nas paredes. 

Era uma pena pisar numa coisa tão limpa, quando deparávamos com os pisos pintados de branco da tabatinga. 

 No almoço, outra surpresa. Nunca vi tanta comida e nem tanta variedade. Carnes, mais de dez tipos. A farinha parecia feita para ter o sabor de alguma coisa inexplicável. Aquelas pessoas chegavam aos poucos, rezavam sempre sob o comando de dona Maria. Com os pratos se retiravam para os seus lugares e eu tive o meu ao lado do seu Joaquim. Depois do almoço e dos doces de goiaba, de coco, de manga, de banana, de laranja, de leite, de melancia, dona Maria mandou que uma de suas filhas lesse para nós a poesia que fala de um homem que ouvia as estrelas e do amor. 

“Ora (direis) ouvir estrelas! 
Certo Perdeste o senso!” 
E eu vos direi, no entanto 
Que, para ouvi-las, muita vez desperto 
E abro as janelas, pálido de espanto.... 

Quando caminhávamos, em silêncio, pelo cemitério, ouvíamos nossos passos, ouvíamos o ranger das cordas e dos couros, a respiração dos animais e também a respiração daqueles mais próximos. Eu caminhava sozinho na frente e tinha medo. Olhei para o céu

.... Direis agora: 
“Tresloucado, amigo! 
Que conversas com elas? 
Que sentido tem o que dizem, 
quando estão contigo?” 

 ...no céu, uma estrela brincava. Ou eram muitas? Ou eram todas? Uma correria de estrelas em todas as direções. Na roça, em lugares assim, mais altos, dizem, que o céu e as estrelas parecem cair sobre a terra. 

E eu vos direi: 
“Amai para entendê-las! 
Pois só quem ama pode ter ouvido 
Capaz de ouvir e de entender estrelas”. 

Vi lágrimas nos olhos da menina que leu aqueles versos de Olavo Bilac. Vi lágrimas nos olhos de seu Joaquim. Ela repetiu os últimos versos 

E eu vos direi: 
“Amai para entendê-las! 
Pois só quem ama pode ter ouvido 
Capaz de ouvir e de entender estrelas”. 

Fim