terça-feira, 23 de março de 2010

A ORAÇÃO DO ATEU


É só um nome de mulher



Para João Cabral






Ouço falarem do poeta que morreu



Dizem que agora o poeta será lido



Dizem que é o maior de todos



O poeta morto aparece



Nariz imenso



Olhos tristes



Dizem que o poeta morto



não mais enxergava



Dizem que deprimido,



triste,



o poeta morto sofria



sofria muito



Não mais podia ler



Não mais podia escrever




Cinco anos



na prisão de si



Uma triste sina



a sina do poeta morto




Cinco anos sem ler e sem escrever



(A terrível prisão)



O poeta sofreu cinco anos



uma longa e triste depressão





Um dia, uma manhã, sentado,



ao lado da mulher,



a sua última mulher,



dizem que também poeta,



o poeta morreu





Morreu rezando



(revelou a mulher



que se diz poeta)



O poeta era ateu



O que rezava o poeta?



- Ateu também reza



Reza?



Reza, certamente,



a oração poema



(Todo poema é



um poema, uma oração.



É, pois é,



é também oração)





O poeta morto



reza ao lado da mulher



que só sabe rezar.



Reza o nome da mulher



o poeta que ama,


que somente ama


(e um nome de mulher é,



muitas vezes,


uma só oração)





A mulher em cujo lado se senta



cuja mão segura a mão do poeta



que não mais escreve versos



que não mais passa páginas



dos versos que o poeta escreve



Escreve e escreve,



limpa, reescreve, lapida, arquiteta


 Dizem que



aquele poeta era



um poeta matemático



porque o poeta dizia



que fazia poesia como engenheiro



Era construtor



fazia poesia como pedreiro



pedra sobre pedra



seus versos teriam assim



a consistência da terra



tornada tijolo



pedra terra tijolo








Pedra




Pedra



Nada mais,



never more.



Nunca mais poeta