segunda-feira, 19 de abril de 2010

DOIS HOMENS




Florença no tempo de Savonarola/Maquiavel

Uma mulher chamada Florença



A Lição do Prior







Parte do diálogo travado durante o curto estio da manhã do dia 23 de maio de 1496 (1), na Piazza della Signoria, entre o prior Dominicano Girolano Savonarola, então com 44 anos, e Nicoló Machiavelli, 27 anos, dois anos antes da execução de Savonarola e da nomeação de Machiavelli como secretário dos Dieci della Guerra. Neste cargo, Machiavelli permaneceu 14 anos (2).




















































Maquiavel - Prior, por que o senhor insiste em permanecer, aqui, em Florença, sabendo dos perigos que corre? A cada palavra, a cada sermão cresce o perigo?





Savonarola - O papa também me quer fora de Florença e, de preferência, em Roma, preso, pronto para ser executado, assassinado ou queimado numa fogueira, depois de formalmente julgado e condenado. Ou o que mais quer agora: imediatamente eliminado. Os riscos são maiores fora de Florença.





M - Uma cidade não é uma trincheira.





S - Florença, no final do século XV, governa o mundo por intermédio de seus bancos. A força da cidade é a sua maior trincheira, o grande escudo protetor dos cidadãos.





M - A sua força é a palavra. Em qualquer lugar encontrarás bons amigos. Saindo de Florença jamais será isolado, limitado e surpreendido.





S - Fico pela própria cidade. Aqui, com os amigos no poder, com a república, eu me sinto mais seguro, em condições de falar e com as garantias que só Florença, hoje, dá a um cidadão. É uma característica permanente da nossa cidade. É única. É uma bela cidade e, na primavera que começa em meio a toda esta chuva, a beleza de Florença explode em cores nas suas flores, nas suas casas, nos seus barcos, explode em cheiros nos perfumes de suas rosas.





M - Com o chão ainda molhado e com as nossas roupas úmidas, eu me pergunto prior, da grandeza de nossa Florença; por que tudo isto em meio à agitação do mundo? Que cidade temos para viver? É uma bela cidade, sim. Um belo rio, sim. O Arno corre sempre tranqüilo.





S - Uma bela história! Um belo povo! Alguns nem tanto.





M - Quais são os caminhos dos nossos banqueiros e dos nossos mercadores? São os caminhos do mundo, prior!





S - Não seriam os caminhos de Deus?





M - Os caminhos do mundo são incomensuráveis e Florença se repartirá em outras cidades e vilas pelos continentes. Certamente, ela se multiplicará pelos novos mundos.





S - Florença traduz a força das formas que traz o mármore. Florença tem todas as máscaras que o homem ousou imaginar. A minha, por exemplo. Onde me forjei senão nas ruas de Florença? Quais são as máscaras do orador? Não é a erudição pura, não é a eloqüência do jogo moral?





M - Prior Girolano Savonarola, o senhor é um profeta desarmado. Um cidadão na linha de risco. A qualquer momento, o poder lhe escapará e será a sua perdição. Hoje, podemos conversar, aqui, neste praça, protegido do chuva nesta curta estiagem. Eu, apenas um cidadão, e Savonarola, o grande orador e o líder de um novo concílio.





S - Amanhã, também, poderemos conversar. A conversa talvez não terá você diante de mim. Certamente, eu estarei em silêncio e distante. Você poderá me observar aqui nesta praça. Reproduzir todas as nossas palavras, me avaliar, me julgar. Eu serei a ação. Quem sabe a vocação desta cidade de banqueiros, comerciantes será também abrigar profetas?





M - Banqueiros jamais serão profetas, jamais permitirão a existência de profetas entre suas fileiras, a não ser os profetas dos azares e do jogo da vida mal construída, daqueles que acreditam e que acreditarão sempre, com ou sem profeta, no livre curso do destino e no jogo da multiplicação do dinheiro que jamais existirá.





S - É a vocação de toda cidade tornar-se ou buscar ser o abrigo da riqueza, do poder e dos sonhos e esta é a vocação de Florença em especial. Por que? Porque Florença é feminina. É uma cidade mulher e a sua beleza não está nas suas praças e ruas, apenas. Não está no adorno. Assim, como bela é a mulher feliz, a mulher cheia de vida, Florença é, essencialmente, uma cidade feliz. Ela seduz até pelo vento e seus sons, pelo clima de fé, de crença na vida e no homem.





M - As ruas cortam, rasgam o corpo desta mulher e a expõem...





S - O diálogo, a certeza da convicção.





M - Certo, Florença pode ser esta mulher. Uma cidade feminina, como você diz. Mas como dominá-la (3)?





S - A mulher só se deixa vencer pelos que ousam e não pelos que agem friamente. A mulher, por esta razão, é sempre amiga dos jovens - eles são mais bravos, menos cuidadosos, prontos a dominá-la com maior audácia.





M - O domínio de uma cidade, antes do saque, está na sua abordagem, no domínio de todos os seus esconderijos e de todos os seus contornos.





S - Maquiavel, você compreenderá melhor sua cidade percebendo seu ar feminino (4).





M - Concordo, Florença é mulher, uma cidade feminina, assim como a sorte é mulher. É e será, por isso mesmo, sempre muito bela, muito bela. Conquistável?









Outros trechos deste diálogo estão sendo compilados pelos pesquisadores que trabalham sobre os livros da biblioteca de Florença, em meio aos quais foram encontradas as anotações feitas por Machiavelli.


Primeiro, a fogueira






O Mármore, uma homenagem?





Cinco observações



(1) Choveu quase diariamente durante 11 meses, em 1496, o que arruinou as colheitas - e as possibilidades de vitória de Savonarola.



No dia 23 de maio de 1496, primavera no hemisfério norte, Savonarora tinha 44 anos e Maquiavel 27.





(2) Em 1498, aos 29 anos, Maquiavel foi nomeado secretário dos Dieci della Guerra, cargo ocupou por 14 anos, até os 43 anos, quando começa seu exílio e ostracismo.





(3) Trecho de onde se extraiu esta parte do diálogo: “Conclui-se, portanto, que como a sorte varia e os homens permanecem fiéis a seus caminhos, só conseguem ter êxito na medida em que tais caminhos se ajustam às circunstâncias; quando se opõem a elas, o resultado é infeliz. Acredito seguramente que é melhor ser impetuoso do que cauteloso, pois a sorte é uma mulher, sendo necessário para dominá-la, empregar a força; pode-se ver que ela se deixa vencer pelos que ousam, e não pelos que agem friamente. Como mulher, é sempre amiga dos jovens - mais bravos, menos cuidadosos, prontos a dominá-la com maior audácia”.





(4) A grandeza de Savonarola estava em seu esforço por conseguir uma revolução moral, tornando os homens honestos, bons e justos.







(5) Na Florença de Maquiavel, o monge Savonarola fazia sua luta com discursos violentos contra Roma e seus descalabros.

Savonarola, o monge, comandou uma das mais impressionantes resistência aos papas.

Era um fiscal das leis cristãs, um promotor duro e com discurso direto, denunciava em seus sermões, a vida desregrada dos bispos de Roma, denunciava a imoralidade dominante, a corrupção desenfreada.

Maquiavel tudo observava e foi um dos florentinos que assistiu à execução de Savonarola
na praça dos Doge.

Mais tarde, refletindo sobre aquele episódio, Maquiavel resumiu a situação a que são, dramaticamente condenados todos aqueles que têm apenas o poder da palavra e da lei:  são profetas desarmados.