
De um relato feito por Robson Scolarique
Chuva fina, às quatro da tarde, na esquina das ruas Major Lopes e Raul Pompéia, cruzamento do nome de um policial com o nome de um romancista, poeta e pensador, um absurdo, confesso que não conheço este militar, imagino-o apenas em sua farda e como um policial que não chegou ao comando da sua tropa.
Compenso minha ignorância, eu conheço o poeta
e o escritor, avesso ao militarismo.
Estio. A chuva para um pouco. Logo chega uma nova
levada de chuva fina. Entro e saio do carro.
A chuva dita o meu espaço e brinco com ela.
Divirto-me ao observar as pessoas. Muita gente, muitas crianças, muitas mulheres bonitas.
Aguardo a mulher Metáfora e, dentro do caro,
leio, ao ritmo da chuva, o conto de Borges,
estilo simples e profundo, uma metáfora da construção literária e da concepção
do mundo e do homem.
Uqbar, Uh! que bar!
Escrita simples, correndo leve, tão leve quanto esta chuvinha marota das quatro da tarde, à lás cinco de la tarde. Imagino que jamais escreverei uma página como Borges. Sou apenas um homem pronto para servir às mulheres, transportá-las, guardá-las, acariciá-las, ser motorista, ser companheiro, sempre pronto para todas as utilidades, futilidades e vontades da mulher que amo.
Elas se tornam seres importantes, enormes, às vezes me esmagam, transformam-me em verme e muitas, não entendendo nada do servilismo masculino, ousam pisar, esmagar e cuspir. Quando saio do outro lado da margem, do lado de cá umas choram, outras xingam, outras gritam, muitas se sentem aliviadas. Já estou na outra margem. Então mais adiante - eu não sei nadar nos rios de volta, principalmente no rio Letes.
Fácil, fácil, já estou do outro lado do rio profundo, do Letes. Letes, caro amigo, é aquele rio do inferno de Dante, introduzido pelo poeta como rio protagonista, como o rio do esquecimento.
Não esqueça, já contei esta história, Dante foi vital nos doze primeiros meses de prisão, principalmente na cadeia da Marechal Âncora, no Rio – olha outro milico aí. O Letes é um rio de mergulho profundo, mas não intransponível pelos que verdadeiramente sofrem depois do amor.
A chuva fina para, saio do carro mais uma vez e respiro fundo, ainda às 4 da tarde. Cheiro de terra, o cheiro de plantas molhadas, cheiro da chuva e de repente o perfume, suave e doce, da moça de seios apertados por panos e estética, mas mulher de muitas vontades, quem sabe um dia eu possa ser seu amigo, seu bom amigo. Ela caminha sem olhar para trás, passa e vai em frente. Deixou o perfume e o sonho de um dia encontrarmos de novo. Eu já posso dizer, eu te conheço, não sei de onde, nem de que ar, de que esquina, eu te conheço pelo cheiro do perfume. Ah! é um perfume doce. Ela atravessa a rua e, de muito longe, sorri.
E fecha a cara. Mulher brava - melhor,
todas as mulheres são bravas.
Na esquina, já temos uma geografia: duas ruas que se cortam, um homem estacionado e um perfume desaforado.
Como começar? Primeiro estabelecer as referências principais, identificar o coronel, que antes chamei de major, e fazer este mapa localizando todos os nossos protagonistas. Captar este instante em um século e em um local. Depois, pesquisar os fatos e buscar as suas expressões mais exatas possíveis. Adolfo Bioy Casares não poderá dialogar comigo, nem ajudar-me nas pesquisas, muito menos Borges. Preciso estabelecer pelo menos o básico desta história. E a mulher do perfume? E como chegar até ela? Não é nenhuma mulher misteriosa e nem mesmo será um complicador qualquer aproximação. Basta abordá-la, identificar-me, esclarecer o porquê da minha pesquisa e obter, se ela o permitir, o maior número de dados sobre ela - um ser no mundo.
Distraio em Uqbar. O perfume aproxima-se.
Não mais sinto seu cheiro forte.
- Com licença!
Todo o carro, toda a rua, toda a minha vida
ganhou um novo perfume.
E mudou-se, radicalmente, outras diriam, literalmente, o mapa daquela esquina.