Para Gringo, que deixou a herança, e para Antônia Augusta, em Manchester, Inglaterra, em busca do seu paradeiro
Na cadeia, tive um pássaro preto
Ele caminhava em meu corpo
Muitos domingos passamos juntos
No laboratório, só nós dois
Na farmácia, só nós dois
O silêncio e os livros,
Alquimia misteriosa
O pássaro preto sanzava e eu lia
Lia, lia, palavras, palavras
Só palavras
Ao lado o pássaro preto pulava, silencioso,
Das prateleiras e dos vidros
para o meu ombro
Subia na minha cabeça
E me acariciava
No silêncio da prisão,
Eu e o pássaro preto
Meu pássaro preto respeitava
aquele doido silêncio
Quantas vezes, parado no meu ombro,
eu o observava como o corvo
em Poe, Pessoa e Machado
Assustava-me a sensação de que
ele não era analfabeto
Ficava ali, entretido com a página e
suas manchas pretas
Manchas e diálogos
universalmente silenciosos e intensos
seculares
Era carinhoso
Limpava o meu ouvido
Solenemente, delicadamente
Silenciosamente
Ali, ao meu lado
No meu ombro
O pássaro preto
Era a minha única chance de liberdade
E eu era ele