terça-feira, 10 de janeiro de 2012

UMA AVE UMA VIDA


Para Gringo, que deixou a herança, e para Antônia Augusta, em Manchester, Inglaterra, em busca do seu paradeiro



Na cadeia, tive um pássaro preto


Ele caminhava em meu corpo

Muitos domingos passamos juntos

No laboratório, só nós dois

Na farmácia, só nós dois


O silêncio e os livros,
Alquimia misteriosa

O pássaro preto sanzava e eu lia
Lia, lia, palavras, palavras
Só palavras

Ao lado o pássaro preto pulava, silencioso,
Das prateleiras e dos vidros 
para o meu ombro
Subia na minha cabeça
E me acariciava

No silêncio da prisão,
Eu e o pássaro preto


Meu pássaro preto respeitava 
aquele doido silêncio

Quantas vezes, parado no meu ombro, 
eu o observava como o corvo 
em Poe, Pessoa e Machado


Assustava-me a sensação de que 
ele não era analfabeto

Ficava ali, entretido com a página e 
suas manchas pretas
Manchas e diálogos
universalmente silenciosos e intensos
seculares


Era carinhoso

Limpava o meu ouvido

Solenemente, delicadamente

Silenciosamente


Ali, ao meu lado
No meu ombro
O pássaro preto

Era a minha única chance de liberdade

E eu era ele