
DO CIO
Todas as
coisas humanas possuem dois aspectos, à moda dos silenos de Alcibíades, que
tinham duas caras inteiramente opostas.
Por essa razão
é que, freqüentes vezes, o que ao primeiro golpe de vista parece a morte, na
realidade, observado atentamente, é vida.
E desse modo,
freqüentemente, o que parece a vida é a morte;
o que parece
belo é deformidade;
o que semelha
rico é pobre;
o infame parece
glorioso;
o que aparenta
ser douto é ignorante;
o robusto
parece fraco;
o que parece nobre
é ignóbil;
o que parece
alegre é triste;
o favorável é
contrário;
o que aparente
ser amigo é inimigo;
aquilo que
parece salutar é nocivo;
Em resultado,
virado o sileno em seguida muda a cena
Erasmo de Rotterdam, Elogios da Loucura
I
A estrada da pequena fazenda
de Dona Laurinha de Seu Rodrigo até a cidade era longa; cansava uma caminhada
por aquelas bandas; na volta terminada a entrega do leite, tudo era mais fácil
e sol não era tão quente, a estrada sempre bonita, acompanhava um brejo,
acompanhava um riacho e das margens da estrada e do riacho, limpas e abertas, escapuliam,
para os olhos enormes do que vêem a natureza, e mistura-a aos sonhos, os morros
cinzentos lembrando ao orgulhoso a força da terra, aos envelhecidos, um campo
arado, que apontavam as marcas da terra, as marcas dos escoadores artificais.
Estes morros não eram
cinzentos para os olhos de Tião Bagre que agora dizia que os morros eram
vermelhos.
As casinhas de velhos
agregados apareciam aos pedaços, ora um pedaço de parede branca, ora entre as
árvores e atrás de uma cerca as telhas vermelhas da casa de Joana, aquela que
viveu com Duda.
Ninguém sabe para onde o
Duda foi.
É comum aqui em nossas
terras as pessoas desaparecerem. Joana não se preocupou e a fumaça que sai de
suas chaminés corre em grossos volumes aos céus para, assumindo os formatos das
nuvens, transportar até o longe onde estiver o Duda as notícias de uma vida
alegre e de cinco filhos de Joana e do Zé da Venda, de Joana e do Seu Antenor,
como o pequeno que joga de ponteiro. Com o jogador, ela teve dois. Sua filhinha
nasceu depois do seu tempo com o homem de barbas grandes. Este homem chegou,
trabalhou apenas nas terras de Joana e nunca saiu das terras de Joana, a não
ser para seguir o mesmo caminho de Duda.
Seu Zé da Venda dizia que o
homem de barba era o próprio Duda, mas Dona Olímpia não acreditava. Duda era
forte, Seu Zé respondia, ele foi, ele era forte. Duda era magro não tinha aquele barrigão. Seu
Zé dizia que ele foi magro. Dona Olímpia se irritava. Duda! Duda nunca pôs um
pingo de cachaça na boca, Duda não era desses Conversador que a gente encontra
por aí, Duda tinha voz, sabia cantar, cantava mesmo trabalhando na roça.
Seu Zé da Venda calou, ele
entendeu quem Dona Olímpia podia estar descrevendo. Seu Zé lembrou que Duda
gostava de chupar cana. Para Dona Olímpia, em definitivo, o barbudo calado não
era Duda. Era apenas mais um e não seria o último. Chegara apenas depois do
jogador de futebol.
Tião seguia na estrada, e,
desde que Arlete voltou, a estrada mudou de cores, era como um pano molhado. Suas
cores apareciam para Tião Bagre.
O azul coloriu pela primeira vez
as suas faces. As nuvens que nunca lhe tinham dado atenção o convocavam para um
passeio ao sabor do vento, um passeio por aí a fora, á toa.
Tião Bagre completara 13 anos na
semana passada e ninguém lhe contara isso. Não havia ninguém para lhe lembrar a
sua idade, ele crescia sem saber que com o tempo se tornava mais velho, de uns
tempos para cá as fêmeas surgiram em seus sonhos, em tudo o que via, nas coisas
que ouvia.
Aprendera com o vaqueiro Jovino
que a fêmea pertence ao macho. Um ano passara com Tião trabalhando para Dona
Laurinha, em troca da sobrevivência. Trabalho pesado. Todo dia cedinho ajudava
a boa mulher, que surgia cercada e amarrada em panos, os olhos remelentos,
junto recolhiam o gado do pasto.
Dona Laurinha tirava o leite. Ele
fazia o trabalho mais pesado, rachava a lenha, e, por fim, arriava o animal.
Colocava nos tambores e ia para a cidade. Dona Laurinha proibiu Tião de tirar
leite, porque dele as vacas escondiam o leite. Os animais conhecem a intimidade
das pessoas. Dona Laurinha dizia que os seus animais a respeitavam e não
escondiam nada dela.
II
Hoje, Arlete desceria para a
cidade com Tião Bagre. Era dia de compras na feita. À noite anterior, Tião
acordara várias vezes pensando que já estava na hora de sair. Acabou dormindo
até depois da hora Acordou, o animal já estava arriado. Arlete veio
despertá-lo.
- Tião, venha me ajudar a pegar a
Lourinha.
Dia ainda escuro, Tião Bagre pulou.
Assustado, em sua frente, Arlete. Ali, ali, dentro do seu quarto, do quarto de
arreios.
Como ela era bonita! Ele sonhava
com ela. Um sonho que deixou-o com muita tesão. Ele tentou se cobrir. Arlete
não prestava atenção em nada e sequer viu o gesto de Tião.
Arlete ria constantemente, Tião
Bagre nunca a encontrou triste ou com a cara fechada.
- Levanta, Tião, preguiça de manhã é
um perigo, faz mal.
Tião ficou nervoso. Ninguém gosta
e Tião não gostava que rissem dele. Ao acompanhar os sons das gargalhadas de
Arlete sentiam como se aqueles risos o aquecessem e não sentiu mais o frio da
manhã. Jogou as cobertas no chão e saiu.
Lourinha era a égua de montar e
que servia para trazer as compras feitas na cidade.
No campo, molhado com o orvalho
depositado nas plantas, Tião Bagre andava como o dono da sabedoria, sentia-se o
senhor, o único dono da mata.
_Arlete, você vai por aí. Eu sei onde
Lourinha fica esta hora.
_Na chapada?
_Não.
_No brejo?
_Ignorante, onde já se viu...
_Por que não? Égua nunca vai ao brejo?
_Lourinha nunca foi ao brejo?
_Lourinha nunca foi ao brejo? Nunca –
afirmou Tião Bagre com medo de vacilar.
_E onde ela bebe água, seu bobo?
_No pé da serra.
Arlete e Tião avançavam pelo
campo. As tonalidades de azul do céu, a madrugada acabando, os cantos dos
pássaros, uma estrela esquecida de que a noite acabou, a tinta que o pintor
jogou de qualquer jeito nos prados, os animais despertando, no meio daquele
silêncio dos dois: Arlete e Tião, ali no
meio daquilo tudo.
_Preste atenção, Arlete.
Arlete não o ouvia.
_Ouça Arlete: eu vou pela porteirona,
você fica aqui. Eu subo a serra e volto tocando Lourinha.
A égua desce galopando. Atrás,
Tião corre aos pulos. Arlete jogou o laço. A corda descreveu um círculo no azul
e bateu como uma taca no pescoço de Lourinha, que aumentou sua velocidade, o
laço resvalou, subiu e caiu no chão preso a um arbusto. Arlete deixou a corda
no chão e procurou cercar a passagem da égua. Era a mulher contra o animal. A
égua voltou em sua direção. Arlete estendeu os braços, a égua se aproximava
devagar. Um metro do animal e o susto. A égua driblou Arlete e ganhou o campo
em um galope que parecia ser só chacota. Afinal estavam todos os três
brincando.
_Ah, ah, ah... Era o riso de Tião, que continuou rindo.
Arlete pôs as mãos na cintura,
empurrou os quadris para a frente, completou a mímica com um desafio.
_Vamos ver quem pega?
Aceito o desafio, os dois partiram
atrás de Lourinha, agora era cada um por si. Lourinha galopava, passou correndo
perto deles. Lourinha também aceitou o desafio. Arlete experimentou o laço mais
uma vez. Inútil.
Esta cena corria no cenário da
manha. Arlete levantava os braços, fazia girar o laço. Lourinha abaixava e
erguia o pescoço, cavalgava com garbo. Tião percorria com os olhos a distância
entre Arlete e Lourinha. Apenas a beleza importava. O mundo não podia acabar
nunca.
O rosto moreno de Arlete, onde
um gota de orvalho deslizava para cair tornando-se mancha em seus seios, a
roupa branca cobrindo a pele, o verde cobrindo o chão, os pés firmes de Tião
Bagre, um menino de treze anos, a carne musculosa da égua, a corrida no meio do
vento, a manhã, o frio do orvalho, a roupa molhada, a corrida envolvendo
Lourinha, o cerco apertando.
A égua parou.
Tião Bagre está próximo.
Parou também de correr. Aproxima-se
com cuidado. Afasta o mato, evita o barulho, tudo que atrapalhe a aproximação.
Procurou dar um outro tom à voz. Chamou a égua.
_Lourinha!
Ela atende ao chamado.
Tião concentra-se. Aproximavam-se.
Lourinha era dele. Ganharia o desafio. Pôs a mão sobre a crina e a acariciou.
_Lou ri nha, se ja boa zi nha.
Sílaba por sílaba.
Bruscamente a égua escapuliu. E
libertou-se na corrida. Tião Bagre deixou cair os braços.
Com um pedaço de pau, Arlete
afugentara o animal.
Dona Laurinha apareceu no alto
do terreno e gritou com os dois.
_ Vocês sabem quantas horas são. Arlete
deixe-o, você atrapalha mais do que ajuda.
III
Na cidade, Arlete foi até o
armazém do Seu Hernani.
_Eu conheci esta menina quando ela
nasceu. Ela era muito feia. Cresceu um pouco e ficou bonitinha. Cresceu mais e
ficou mais bonita. Hoje, ela é bela.
_Entre menina, cada vez mais bonita!
Seu Hernani, um bigodão, uma fala alta
e arrastada; ao lado disso tudo, ele tinha a convicção de que a cidade era um
único mercado e que este mercado possui um única venda e que esta venda lhe
pertencia. Ninguém seria capaz de tirar um freguês de sua casa.
_Sou respeitador.
Tanto era verdade que nunca
perdeu um freguês, quanto eram mentirosas suas histórias sobre o respeito às
famílias. Seu Hernani andava o tempo todo com as antenas ligada para saber quem
era quem e quem andava na vacilação para poder se dedicar a estas pessoas a sua
boníssima atenção e crédito.
Nos últimos anos, muitos
comerciantes vieram enfrentá-lo. Não houve propriamente uma competição. Os
comerciantes chegavam, instalavam com técnicas e artifícios seus negócios.
Faziam a secular propaganda. Pintavam frases nos muros, ofereciam preços
atraentes, traziam a última moda da capital. Tempos depois, procuravam ficar
num setor que Seu Hernani não explorava. Tempos depois como todos esperavam a
casa anunciava a sua transferência para outra localidade era falência,
abandono, concordata.
A loja do Seu Hernani tinha um
único balcão. Vinte metros de balcão, ali faziam os embrulhos, mostravam as
mercadorias, conversavam, liam os últimos jornais. Todas as manhas chegava o jornal
da capital. Virgulino era o único que lia alguma coisa. Andava muito
interessado em política internacional. Depois que saía o secretário da
prefeitura, Virgulino fazia ligeiras observações sobre a guerra no sudeste da
Ásia.
Seu Hernani, um dia, o pilhou
fazendo uma observação que o deixou seriamente preocupado e ansioso vários dias.
Qualquer homem que aparecia na cidade seria, para o Seu Hernani, um policial
que viria levá-lo sem nenhuma acusação e sem nenhuma defesa.
Seu Hernani dissera na roda de cerveja
que os viets eram o orgulho da humanidade e que, por isso, ele se sentia
contente por ser homem e de saber que nesta época trágica para a humanidade
existia um povo como aquele, do qual ele se sentia irmão por ser contemporâneo.
Foi o medo que despertou seu
Hernani para uma observação. Por que Virgulino não fazia nenhum comentário na
presença do secretário? Existiam homens perigosos. Três ajudantes de Seu
Hernani percorriam aqueles vinte metros de balcão vendendo latas de conserva,
que ficavam amontoadas numa prateleira pintada de amarelo, vendendo as
mercadorias de consumo que um armazém e armarinho possuíam
.
_O amarelo e o vermelho são cores
chocantes. Vocês não vêem que os grandes supermercados da capital estão coloridos
de vermelho e amarelo.
As disposições das latarias não
eram perfeitas, Antonio Doido, barbeiro estabelecido, não passava por ali de
jeito nenhum.
_ Qualquer dia: o desastre. O desastre.
Dona Jaci, a costureira, só comprava com
o seu Hernani. Dela diziam que costurava para fora e depois sorriam
maliciosamente. Quando falava sobre o armazém de Seu Hernani, dona Jaci dizia
que ali ela havia descoberto o maior estoque de linhas que conhecera em sua vida.
Botões, vestidos, artigos de
armarinho. Seu Hernani a princípio não quis negociar com roupas feitas, devida
a sua amizade com Dona Jaci, “ a excelente Dona Jaci, uma artista, uma mulher
competente”. Porém, como todos sabem, as roupas feitas se impuseram. Dona Jaci
se sentiu traída, mas mesmo assim ainda continua negociando com seu Hernani. A
seção de roupas feitas tornou-se o maior orgulho de seu Hernani. Encimando os
mostruários o cartaz.
ROUPAS PRET-A-PORTER
Cartaz desenhado pelo seu
sobrinho, desenhista da capital. Um crânio na publicidade. Seu Hernani muitas
vezes pensou naquele crânio.
_Se eu tivesse aquele crânio!
O armazém na rua Getúlio Vargas,
pintado de branco, as portas de vermelho, com luzes na calçada, placa, não era
bem iluminado no seu interior. Outro dia Seu Hernani bronqueou com Pedro, um
dos ajudantes.
_Sujeito aluado.
Pedro trocara uma lâmpada de 60 watts
por uma de 500.
_ Maluco, definitivamente maluco – Seu
Hernani erguia as mãos. Botem este doido num camburão e levem-no para
Barbacena.
Outro ajudante, o centro-avante
do Atlético local, Braga, no almoço, dizia para a família que o Seu Hernani era
um homem bom, de coração imenso. E depois de muita conversa, sem parar de comer
um segundo, dizia que não conseguia compreender porque, todas as noites, depois
de fazer o cais, Seu Hernani ficava contrariado e nervoso. Nessas ocasiões Seu
Hernani falava de planos de crescimento e empolgado ajuntava palavras
esquisitas extraídas de uma revista que ele assinara em São Paulo.
_O progresso exige homens com têmpera
de aço.
Seu Hernani soltava uma gargalhada
como crítica à frase que ele disse.
Depois de ter atendido Arlete, passou
alguns momentos falando sobre a família de Arlete, Dona Laurinha e do finado
Seu Rodrigo.
_Dona Arlete, desde que você deixou
aquele homem com quem se casou, aquele sujeito que não comia, observo que a
minha menina, pois eu te considero uma minha filha, anda meio vaga, como se
estivesse no ar.
_Ao contrário, seu Hernani, estou bem
no chão, terra- terra. Até logo.
_Até logo e dê as minhas lembranças a
Dona Laurinha. Que aqui não me esqueço do nosso bom Rodrigo, que Deus o tenha
em um bom lugar, ele merece.
Arlete caminhava. Ela vinha em
sua direção. A rua sumiu neste momento. Os postes desapareceram. No mundo, no
seu mundo, só tinha Arlete, ela era uma mulher imensa, linda, seus pés eram tão
perfeitos, e, em volta deles, a poeira subia como uma auréola. Aquela poeira transformava-se
numa imensa nuvem. Em Arlete, a nuvem vira um tapete mágico ou como as imagens
de santo que ele via na igreja.
Ele não sabia se Arlete
caminhava ou se ela se deixava levar. Tiao pensou se era só ele que percebia a
nuvem, o tapete.
Arlete mandou Tião Bagre de
volta para a fazenda, ela ficaria até mais tarde na cidade.
Arlete deixou Tião Bagre se
preparando para partir e foi à casa de Dona Maria, mãe de Druílio. Como sempre,
Druílio lá estava jogando paciência. Ele fora noivo de Arlete até o dia em que
apareceu o faquir, o homem magro que vivia de fome.
Druílio indicou a cozinha e
disse que sua mãe estava lá.
Arlete passou duas horas na casa
de Dona Maria, almoçou e tentou várias vezes falar com Druílio.
_Desculpe Arlete, vou aumentar o volume
do rádio, é o noticiário esportivo
Druílio não respondia às
perguntas e a ficava olhando diretamente nos lábios. Quando ficaram sozinhos,
Druílio disse-lhe que ela não devia aparecer mais lá, que o deixasse em paz,
que mesmo que ela fosse a mulher, a única mulher do mundo, ele não a queria.
Chamou-a de puta e desligou o rádio.
Arlete despediu de todos e
seguiu de volta à fazenda. Sua vontade era chorar. Tinha primeiro que dobrar a
esquina. Dobrou a esquina e não quis mais chorar. Passou na padaria. Conversou
com o novo padeiro, um rapaz novo na cidade que gostava de contar casos, que
ria muito e que se dizia amigo de Arlete. Arlete comprou algumas surpresas para
Tião Bagre e Dona Laurinha.
Era ainda um dia que começou
como uma manhã brumosa.
Dona Branca, mulher de seu
Argemiro, encontrou o cadáver de Arlete. Ela fora vítima de violências absurdas
e depois assassinada.
Seu assassino cumpriu um ritual
estúpido e macabro, durante vários dias mantivera Arlete com os pés e as mãos
amarradas antes de matá-la a golpes de porrete.
A polícia suspeitou do marido,
por ele ser faquir, segundo, por ser um faquir essencialmente um homem mal, nas
palavras textuais do Sargento, e terceiro devido ao ritual.
Nada foi apurado.