segunda-feira, 16 de julho de 2012

A CAPTURA




DO CIO



Todas as coisas humanas possuem dois aspectos, à moda dos silenos de Alcibíades, que tinham duas caras inteiramente opostas.

Por essa razão é que, freqüentes vezes, o que ao primeiro golpe de vista parece a morte, na realidade, observado atentamente, é vida.

E desse modo, freqüentemente, o que parece a vida é a morte;

o que parece belo é deformidade;

o que semelha rico é pobre;

o infame parece glorioso;

o que aparenta ser douto é ignorante;

o robusto parece fraco;

o que parece nobre é ignóbil;

o que parece alegre é triste;

o favorável é contrário;

o que aparente ser amigo é inimigo;

aquilo que parece salutar é nocivo;

Em resultado, virado o sileno em seguida muda a cena


Erasmo de Rotterdam, Elogios da Loucura


    
I   


A estrada da pequena fazenda de Dona Laurinha de Seu Rodrigo até a cidade era longa; cansava uma caminhada por aquelas bandas; na volta terminada a entrega do leite, tudo era mais fácil e sol não era tão quente, a estrada sempre bonita, acompanhava um brejo, acompanhava um riacho e das margens da estrada e do riacho, limpas e abertas, escapuliam, para os olhos enormes do que vêem a natureza, e mistura-a aos sonhos, os morros cinzentos lembrando ao orgulhoso a força da terra, aos envelhecidos, um campo arado, que apontavam as marcas da terra, as marcas dos escoadores artificais.

Estes morros não eram cinzentos para os olhos de Tião Bagre que agora dizia que os morros eram vermelhos.

As casinhas de velhos agregados apareciam aos pedaços, ora um pedaço de parede branca, ora entre as árvores e atrás de uma cerca as telhas vermelhas da casa de Joana, aquela que viveu com Duda.

Ninguém sabe para onde o Duda foi.

É comum aqui em nossas terras as pessoas desaparecerem. Joana não se preocupou e a fumaça que sai de suas chaminés corre em grossos volumes aos céus para, assumindo os formatos das nuvens, transportar até o longe onde estiver o Duda as notícias de uma vida alegre e de cinco filhos de Joana e do Zé da Venda, de Joana e do Seu Antenor, como o pequeno que joga de ponteiro. Com o jogador, ela teve dois. Sua filhinha nasceu depois do seu tempo com o homem de barbas grandes. Este homem chegou, trabalhou apenas nas terras de Joana e nunca saiu das terras de Joana, a não ser para seguir o mesmo caminho de Duda.

Seu Zé da Venda dizia que o homem de barba era o próprio Duda, mas Dona Olímpia não acreditava. Duda era forte, Seu Zé respondia, ele foi, ele era forte.  Duda era magro não tinha aquele barrigão. Seu Zé dizia que ele foi magro. Dona Olímpia se irritava. Duda! Duda nunca pôs um pingo de cachaça na boca, Duda não era desses Conversador que a gente encontra por aí, Duda tinha voz, sabia cantar, cantava mesmo trabalhando na roça.

Seu Zé da Venda calou, ele entendeu quem Dona Olímpia podia estar descrevendo. Seu Zé lembrou que Duda gostava de chupar cana. Para Dona Olímpia, em definitivo, o barbudo calado não era Duda. Era apenas mais um e não seria o último. Chegara apenas depois do jogador de futebol.

Tião seguia na estrada, e, desde que Arlete voltou, a estrada mudou de cores, era como um pano molhado. Suas cores apareciam para Tião Bagre.
        

O azul coloriu pela primeira vez as suas faces. As nuvens que nunca lhe tinham dado atenção o convocavam para um passeio ao sabor do vento, um passeio por aí a fora, á toa.

Tião Bagre completara 13 anos na semana passada e ninguém lhe contara isso. Não havia ninguém para lhe lembrar a sua idade, ele crescia sem saber que com o tempo se tornava mais velho, de uns tempos para cá as fêmeas surgiram em seus sonhos, em tudo o que via, nas coisas que ouvia.

Aprendera com o vaqueiro Jovino que a fêmea pertence ao macho. Um ano passara com Tião trabalhando para Dona Laurinha, em troca da sobrevivência. Trabalho pesado. Todo dia cedinho ajudava a boa mulher, que surgia cercada e amarrada em panos, os olhos remelentos, junto recolhiam o gado do pasto.

Dona Laurinha tirava o leite. Ele fazia o trabalho mais pesado, rachava a lenha, e, por fim, arriava o animal. Colocava nos tambores e ia para a cidade. Dona Laurinha proibiu Tião de tirar leite, porque dele as vacas escondiam o leite. Os animais conhecem a intimidade das pessoas. Dona Laurinha dizia que os seus animais a respeitavam e não escondiam nada dela.
        

II  


Hoje, Arlete desceria para a cidade com Tião Bagre. Era dia de compras na feita. À noite anterior, Tião acordara várias vezes pensando que já estava na hora de sair. Acabou dormindo até depois da hora Acordou, o animal já estava arriado. Arlete veio despertá-lo.

        - Tião, venha me ajudar a pegar a Lourinha.

        
Dia ainda escuro, Tião Bagre pulou. Assustado, em sua frente, Arlete. Ali, ali, dentro do seu quarto, do quarto de arreios.

Como ela era bonita! Ele sonhava com ela. Um sonho que deixou-o com muita tesão. Ele tentou se cobrir. Arlete não prestava atenção em nada e sequer viu o gesto de Tião.

Arlete ria constantemente, Tião Bagre nunca a encontrou triste ou com a cara fechada.

         - Levanta, Tião, preguiça de manhã é um perigo, faz mal.

        
Tião ficou nervoso. Ninguém gosta e Tião não gostava que rissem dele. Ao acompanhar os sons das gargalhadas de Arlete sentiam como se aqueles risos o aquecessem e não sentiu mais o frio da manhã. Jogou as cobertas no chão e saiu.
      
Lourinha era a égua de montar e que servia para trazer as compras feitas na cidade.

No campo, molhado com o orvalho depositado nas plantas, Tião Bagre andava como o dono da sabedoria, sentia-se o senhor, o único dono da mata.

       _Arlete, você vai por aí. Eu sei onde Lourinha fica esta hora.

       _Na chapada?

       _Não.

      _No brejo?

      _Ignorante, onde já se viu...

      _Por que não? Égua nunca vai ao brejo?

      _Lourinha nunca foi ao brejo?

      _Lourinha nunca foi ao brejo? Nunca – afirmou Tião Bagre com medo de vacilar.

      _E onde ela bebe água, seu bobo?

      _No pé da serra.
      
Arlete e Tião avançavam pelo campo. As tonalidades de azul do céu, a madrugada acabando, os cantos dos pássaros, uma estrela esquecida de que a noite acabou, a tinta que o pintor jogou de qualquer jeito nos prados, os animais despertando, no meio daquele silêncio dos dois: Arlete e Tião, ali no meio daquilo tudo.
    

       _Preste atenção, Arlete.

        Arlete não o ouvia.
     
       _Ouça Arlete: eu vou pela porteirona, você fica aqui. Eu subo a serra e volto tocando Lourinha.

A égua desce galopando. Atrás, Tião corre aos pulos. Arlete jogou o laço. A corda descreveu um círculo no azul e bateu como uma taca no pescoço de Lourinha, que aumentou sua velocidade, o laço resvalou, subiu e caiu no chão preso a um arbusto. Arlete deixou a corda no chão e procurou cercar a passagem da égua. Era a mulher contra o animal. A égua voltou em sua direção. Arlete estendeu os braços, a égua se aproximava devagar. Um metro do animal e o susto. A égua driblou Arlete e ganhou o campo em um galope que parecia ser só chacota. Afinal estavam todos os três brincando.

      _Ah, ah, ah... Era o riso de Tião, que continuou rindo.

Arlete pôs as mãos na cintura, empurrou os quadris para a frente, completou a mímica com um desafio.

      _Vamos ver quem pega?

     
Aceito o desafio, os dois partiram atrás de Lourinha, agora era cada um por si. Lourinha galopava, passou correndo perto deles. Lourinha também aceitou o desafio. Arlete experimentou o laço mais uma vez. Inútil. 

Esta cena corria no cenário da manha. Arlete levantava os braços, fazia girar o laço. Lourinha abaixava e erguia o pescoço, cavalgava com garbo. Tião percorria com os olhos a distância entre Arlete e Lourinha. Apenas a beleza importava. O mundo não podia acabar nunca.
       
O rosto moreno de Arlete, onde um gota de orvalho deslizava para cair tornando-se mancha em seus seios, a roupa branca cobrindo a pele, o verde cobrindo o chão, os pés firmes de Tião Bagre, um menino de treze anos, a carne musculosa da égua, a corrida no meio do vento, a manhã, o frio do orvalho, a roupa molhada, a corrida envolvendo Lourinha, o cerco apertando.
        
A égua parou.

Tião Bagre está próximo.

Parou também de correr. Aproxima-se com cuidado. Afasta o mato, evita o barulho, tudo que atrapalhe a aproximação. Procurou dar um outro tom à voz. Chamou a égua.

        _Lourinha!
       
Ela atende ao chamado.

Tião concentra-se. Aproximavam-se. Lourinha era dele. Ganharia o desafio. Pôs a mão sobre a crina e a acariciou.

      _Lou ri nha, se ja boa zi nha.

Sílaba por sílaba.

Bruscamente a égua escapuliu. E libertou-se na corrida. Tião Bagre deixou cair os braços.
Com um pedaço de pau, Arlete afugentara o animal.
     
Dona Laurinha apareceu no alto do terreno e gritou com os dois.

      _ Vocês sabem quantas horas são. Arlete deixe-o, você atrapalha mais do que ajuda.


III   


Na cidade, Arlete foi até o armazém do Seu Hernani.

       _Eu conheci esta menina quando ela nasceu. Ela era muito feia. Cresceu um pouco e ficou bonitinha. Cresceu mais e ficou mais bonita. Hoje, ela é bela.

       _Entre menina, cada vez mais bonita!

        Seu Hernani, um bigodão, uma fala alta e arrastada; ao lado disso tudo, ele tinha a convicção de que a cidade era um único mercado e que este mercado possui um única venda e que esta venda lhe pertencia. Ninguém seria capaz de tirar um freguês de sua casa.

       _Sou respeitador.

     
Tanto era verdade que nunca perdeu um freguês, quanto eram mentirosas suas histórias sobre o respeito às famílias. Seu Hernani andava o tempo todo com as antenas ligada para saber quem era quem e quem andava na vacilação para poder se dedicar a estas pessoas a sua boníssima atenção e crédito.

        
Nos últimos anos, muitos comerciantes vieram enfrentá-lo. Não houve propriamente uma competição. Os comerciantes chegavam, instalavam com técnicas e artifícios seus negócios. Faziam a secular propaganda. Pintavam frases nos muros, ofereciam preços atraentes, traziam a última moda da capital. Tempos depois, procuravam ficar num setor que Seu Hernani não explorava. Tempos depois como todos esperavam a casa anunciava a sua transferência para outra localidade era falência, abandono, concordata.
       
A loja do Seu Hernani tinha um único balcão. Vinte metros de balcão, ali faziam os embrulhos, mostravam as mercadorias, conversavam, liam os últimos jornais. Todas as manhas chegava o jornal da capital. Virgulino era o único que lia alguma coisa. Andava muito interessado em política internacional. Depois que saía o secretário da prefeitura, Virgulino fazia ligeiras observações sobre a guerra no sudeste da Ásia.
      
Seu Hernani, um dia, o pilhou fazendo uma observação que o deixou seriamente preocupado e ansioso vários dias. Qualquer homem que aparecia na cidade seria, para o Seu Hernani, um policial que viria levá-lo sem nenhuma acusação e sem nenhuma defesa.

Seu Hernani dissera na roda de cerveja que os viets eram o orgulho da humanidade e que, por isso, ele se sentia contente por ser homem e de saber que nesta época trágica para a humanidade existia um povo como aquele, do qual ele se sentia irmão por ser contemporâneo.

Foi o medo que despertou seu Hernani para uma observação. Por que Virgulino não fazia nenhum comentário na presença do secretário? Existiam homens perigosos. Três ajudantes de Seu Hernani percorriam aqueles vinte metros de balcão vendendo latas de conserva, que ficavam amontoadas numa prateleira pintada de amarelo, vendendo as mercadorias de consumo que um armazém e armarinho possuíam
.
       _O amarelo e o vermelho são cores chocantes. Vocês não vêem que os grandes supermercados da capital estão coloridos de vermelho e amarelo.
       
As disposições das latarias não eram perfeitas, Antonio Doido, barbeiro estabelecido, não passava por ali de jeito nenhum.

       _ Qualquer dia: o desastre. O desastre.

       Dona Jaci, a costureira, só comprava com o seu Hernani. Dela diziam que costurava para fora e depois sorriam maliciosamente. Quando falava sobre o armazém de Seu Hernani, dona Jaci dizia que ali ela havia descoberto o maior estoque de linhas que conhecera em sua vida.   
        
Botões, vestidos, artigos de armarinho. Seu Hernani a princípio não quis negociar com roupas feitas, devida a sua amizade com Dona Jaci, “ a excelente Dona Jaci, uma artista, uma mulher competente”. Porém, como todos sabem, as roupas feitas se impuseram. Dona Jaci se sentiu traída, mas mesmo assim ainda continua negociando com seu Hernani. A seção de roupas feitas tornou-se o maior orgulho de seu Hernani. Encimando os mostruários o cartaz.

                                               ROUPAS PRET-A-PORTER

       
Cartaz desenhado pelo seu sobrinho, desenhista da capital. Um crânio na publicidade. Seu Hernani muitas vezes pensou naquele crânio.

       _Se eu tivesse aquele crânio!

      
O armazém na rua Getúlio Vargas, pintado de branco, as portas de vermelho, com luzes na calçada, placa, não era bem iluminado no seu interior. Outro dia Seu Hernani bronqueou com Pedro, um dos ajudantes.

       _Sujeito aluado.

        Pedro trocara uma lâmpada de 60 watts por uma de 500.

       _ Maluco, definitivamente maluco – Seu Hernani erguia as mãos. Botem este doido num camburão e levem-no para Barbacena.

       
Outro ajudante, o centro-avante do Atlético local, Braga, no almoço, dizia para a família que o Seu Hernani era um homem bom, de coração imenso. E depois de muita conversa, sem parar de comer um segundo, dizia que não conseguia compreender porque, todas as noites, depois de fazer o cais, Seu Hernani ficava contrariado e nervoso. Nessas ocasiões Seu Hernani falava de planos de crescimento e empolgado ajuntava palavras esquisitas extraídas de uma revista que ele assinara em São Paulo.

         _O progresso exige homens com têmpera de aço.

          Seu Hernani soltava uma gargalhada como crítica à frase que ele disse.

         Depois de ter atendido Arlete, passou alguns momentos falando sobre a família de Arlete, Dona Laurinha e do finado Seu Rodrigo.

         _Dona Arlete, desde que você deixou aquele homem com quem se casou, aquele sujeito que não comia, observo que a minha menina, pois eu te considero uma minha filha, anda meio vaga, como se estivesse no ar.

          _Ao contrário, seu Hernani, estou bem no chão, terra- terra. Até logo.

          _Até logo e dê as minhas lembranças a Dona Laurinha. Que aqui não me esqueço do nosso bom Rodrigo, que Deus o tenha em um bom lugar, ele merece.
         
Arlete caminhava. Ela vinha em sua direção. A rua sumiu neste momento. Os postes desapareceram. No mundo, no seu mundo, só tinha Arlete, ela era uma mulher imensa, linda, seus pés eram tão perfeitos, e, em volta deles, a poeira subia como uma auréola. Aquela poeira transformava-se numa imensa nuvem. Em Arlete, a nuvem vira um tapete mágico ou como as imagens de santo que ele via na igreja.

Ele não sabia se Arlete caminhava ou se ela se deixava levar. Tiao pensou se era só ele que percebia a nuvem, o tapete.
       
        
Arlete mandou Tião Bagre de volta para a fazenda, ela ficaria até mais tarde na cidade.
        
Arlete deixou Tião Bagre se preparando para partir e foi à casa de Dona Maria, mãe de Druílio. Como sempre, Druílio lá estava jogando paciência. Ele fora noivo de Arlete até o dia em que apareceu o faquir, o homem magro que vivia de fome.
       
Druílio indicou a cozinha e disse que sua mãe estava lá.


       
Arlete passou duas horas na casa de Dona Maria, almoçou e tentou várias vezes falar com Druílio.
       _Desculpe Arlete, vou aumentar o volume do rádio, é o noticiário esportivo

      
Druílio não respondia às perguntas e a ficava olhando diretamente nos lábios. Quando ficaram sozinhos, Druílio disse-lhe que ela não devia aparecer mais lá, que o deixasse em paz, que mesmo que ela fosse a mulher, a única mulher do mundo, ele não a queria. Chamou-a de puta e desligou o rádio.

       
Arlete despediu de todos e seguiu de volta à fazenda. Sua vontade era chorar. Tinha primeiro que dobrar a esquina. Dobrou a esquina e não quis mais chorar. Passou na padaria. Conversou com o novo padeiro, um rapaz novo na cidade que gostava de contar casos, que ria muito e que se dizia amigo de Arlete. Arlete comprou algumas surpresas para Tião Bagre e Dona Laurinha.
       
Era ainda um dia que começou como uma manhã brumosa.

Dona Branca, mulher de seu Argemiro, encontrou o cadáver de Arlete. Ela fora vítima de violências absurdas e depois assassinada.

Seu assassino cumpriu um ritual estúpido e macabro, durante vários dias mantivera Arlete com os pés e as mãos amarradas antes de matá-la a golpes de porrete.

A polícia suspeitou do marido, por ele ser faquir, segundo, por ser um faquir essencialmente um homem mal, nas palavras textuais do Sargento, e terceiro devido ao ritual.

Nada foi apurado.