quinta-feira, 1 de agosto de 2013

EM MEMÓRIA DE GUIDO



O resgate 









Achei essa carta para o Guido(*). Não sei se você já a tem.
Prezado:
Retorno aos primeiros dias de Linhares e trato de extrair destes neurônios preguiçosos, tanto malte processaram, os rostos e nomes das Galerias “D” e “C”.
Na “D”, mencionei o Gringo (Márcio de Araújo Lacerda), o Tito (Tito Guimarães Filho), o Pimentel (Fernando da Mata Pimentel).
Lembro-me bem do Lúcio, que era de Lavras, se não me engano, e nos agravava o banzo com sua flauta doce e muito triste, a ecoar no silêncio da noite de Linhares. Mais tarde, por volta de 1995, quando trabalhei com o Gringo, ele me trouxe o Lúcio em casa, no Retiro, para dois dedos de prosa. Tempo depois, soube que ele tentara falar comigo na empresa e me deixara uma sugestão de ir tomar no cu, porque a secretaria lhe havia informado que eu não poderia atendê-lo naquele momento. Declinei - no meu estado hemorroidal, seguir-lhe a sugestão seria desastre certo. Coisas da vida.
Tinha o Zé Alfredo, o Matos, o Cabo ...... o Costinha (um da Colina, que foi preso porque o ônibus em que viajava caiu do Viaduto das Almas). Como era o nome do pretinho luzidio, que havia liderado greves em Contagem nos idos de 1968, que batia uma bola redonda e disputava com o Zé Alfredo no concurso de melhor risada da cadeia?
Tinha o Zé Adão, com seus óculos de lentas muito grossas, tinha o Afonso Celso Lanna Leite, bom de desenho, distraído a ponto de pitar cigarros apagados. Afonsinho fazia o prato e sentava conosco no refeitório; alguém puxava conversa, ele engrenava, concentradíssimo. O vizinho comia-lhe a refeição e deixava o prato vazio diante dele. Concluída a prosa, Afonsinho olhava o prato, cismava por fração de segundo, e cruzava os talheres, a sonhar com a sesta, de pança cheia.
Na galeria “C”, estavam os “irrecuperáveis”, a critério da administração (e/ou da ID4?). Gilney Amorim Vianna, Tonhão, Play (Marco Antônio Victória Barros, de quem fui depois muito próximo durante anos, no Rio). Acho que o Play foi para a “C” mais tarde, como também eu – no início, estaria na “B”. É isso mesmo: Play, Leovi , Miguel Pressburger e eu, pelo menos, fomos depois transferidos para a “C”, uma distinção inesquecível que nos outorgou um “tenente-velho” então diretor da cadeia, a quem chamávamos Belial(**), nome de um dos cães assassinos que guardam a porta do inferno, em Dante.
Percebo que minha memória está um lixo, porque são muito poucos os nomes e rostos que atendem ao meu chamado. Bom seria juntar você, o Tito, o Champs, o João eu e quem mais se dispusesse, para uma longa prosa diante de um gravador. Em grupo, penso que avançaríamos muito.
Bem, te mando mais estas linhas. Nas próximas, tentarei contar o que se passou com o coletivo dos presos de Linhares, fatos que ilustram quem éramos nós e de alguma forma ajudam a perceber como chegamos onde chegamos.
Abraço,
Álvaro


Cristo  - Escultura de Guido Rocha






(*) Guido Rocha, artista plástico

(**) Belial Waldelar de Almeida Petersen, militar reformado do Exército que assumiu a direção da Penitenciária de Linhares