quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

MOMENTO DA FUGA




A última 

avenida







Agostinho Miranda




I

Naquela tarde, o céu escureceu muito rápido. A noite caiu dentro do dia.

Ainda na tarde, a chuva teve momentos de forte pancada. O vento açoitava. Os pingos iam de encontro aos vidros, às janelas fechadas.

Nos edifícios, as luzes já estavam acesas desde cedo. Pouco depois, já é noite. E, na noite, o céu limpou-se.

Estrelas e luas refletem-se nas poças do asfalto. Dentro da noite, dentro da cidade, entre os edifícios, dentro da madrugada, um homem e os seus gestos rápidos.

Na verdade, um homem correndo. Seu rosto é de confiança na corrida e em si mesmo. Sóbrio, sem pavor e sem medo. Salta uma poça. Escorrega. Transforma a aparente queda em vantagem.

A cidade inteira exala em seu suor úmido o cheiro de eucalipto, de mato molhado, de asfalto lavado. As luzes de néon refletem-se na água competindo com as luzes das estrelas e da lua.

Os carros, que a essa hora passam na cidade, deslizam vagarosos. Pneus molhados e o chão molhado. A borracha grita dos pneus e do asfalto.

Os sapatos de salto de borracha e solado de couro pisam no cimento das calçadas. Batem ritmados contra o tambor-chão. Os sapatos estão molhados, pesados. A roupa encharcada.

O homem entrou em outra rua. Passou debaixo de um poste iluminado. Esta maldita luz! Fugia também da claridade. Calculou. Para sair da cidade eram inevitáveis de qualquer maneira três avenidas. Três espaços bastante iluminados. Onde atravessaria correndo em velocidade ou calmamente sem correrias, evitando dar na cara a sua fuga se viesse a ser visto? O relógio fatal indo e vindo no movimento do braço registra tudo. Os primeiros momentos.
        
A corrida começou cedo, logo depois de marcar o cartão de ponto. Em sua primeira parte foi um zanzar daqui para ali na procura de um lugar para ficar. E, depois na certeza de que teria de sair da cidade, a corrida ininterrupta.
        
Esta começou agora, tinha cinco minutos. Levava boa frente. Talvez nem o estivessem perseguindo. Talvez nem o tivessem identificado. Mas e se houvessem fechado a cidade para a hecatombe?
        
Era fundamental apressar-se. Vencer a distância. O corpo aumenta a velocidade, aumenta o ritmo. O peito sente o esforço. A respiração é intensa. O barulho do ar entrando e saindo. Na corrida, o corpo se inclina. O rosto quente, banhado de suor ainda é o mesmo. Tranqüilo e sem medo. Os cabelos úmidos sobre a testa, pregados na pele.

Lembra dos filmes de maratonas, os atletas coordenam os movimentos e os gestos, aparentemente cômicos, fundamentais para se cumprir o percurso. Imaginando, tentou aquela postura dos corredores. A posição não dava certo. Ele agora devia coordenar velocidade e resistência para uma longa corrida, umas tantas maratonas. Jamais imaginara-se numa situação dessas, tendo que empreender uma corrida louca e absurda.
            
Quando, quem e por que decidiram o fim dos homens que usam relógio? Ele não tinha certeza se estava sendo perseguido ou não. Certeza tinha de que precisava fugir, escapar.
            
Aquilo começou antes da chuva, antes do céu escurecer inesperadamente naquela tarde. A certeza era de que não podia parar senão o pegavam. Não sabia se vinha alguém atrás dele. Apenas devia correr. Não podia parar até o fim da cidade.
            
Indagando-se, na corrida, lembrou que não se preparara para uma fuga, uma fuga física, uma fuga em que poria em cheque sua resistência física. Conseguiria? Não haveria outras formas de fuga? Mais inteligentes e sem tanto esforço. Há fugas mais fáceis. Com certeza. E esta fuga era absurda pelo seu tipo de vida: um cidadão pacato, nunca saiu da rotina como funcionário público, esperava há algum tempo uma promoção e já exercia cargo de responsabilidade em chefia. 

Era um homem formado por aquele Estado, estudou em escolas públicas, era cínico e dentro do cinismo um homem honesto. Nada lhe explicaria nada. Unicamente, ele não sabia raciocinar. Nunca lhe foram dados elementos para isso. Nem tempo e nem razões.
            
Pensou na excelência para esta hora, na boa coisa que era a ginástica e a bola de fim de semana. Se não fosse o inesperado, o absurdo – ele faz questão dessa palavra que desencadeou a correria, hoje, ele estaria no ônibus para sua pequena cidade. 

Horas de fuga, sem saber porque fugir mas fugindo por ser vital. Seguia uma rua reta e de subida. Princípio necessário: não correr mais de três quarteirões em uma só rua. Ele perde espaço, mas isso desnorteia os perseguidores  - e os impedem de adivinhar para onde o fugitivo se dirige.
      
No fim, concluía, saia com vantagem se somasse os quarteirões porque a cidade está dentro de um círculo, que não é perfeito. Até este momento não havia ninguém na rua. Contou isso como sorte. Ninguém para apontar-lhe aos perseguidores. Ou para ajudá-lo. Iludiu-se? Dobra uma das ruas transversais no momento em que uma dor nos ombros assusta-o. Hesitou em tirar o paletó molhado. Massageou um ombro, depois o outro. Os pés batem firmes no chão. No seu rastro segue um som seco. A respiração cadenciada e controlada é a mesma dos exercícios no clube. Os músculos doíam e tremiam.
              
Do alto de dois edifícios duas pessoas que não se vêem acompanham aquela corrida por um momento. Uma mulher da noite, ainda com a cabeça tonta de álcool, ainda com o corpo desocupado por outro corpo, chega à janela. O vento frio abraça-a alegremente. Nela o cansaço corre pelo corpo agasalhado. Viu quando o homem dobrou a esquina massageando-se como se tivesse recebido uma pancada. Parou na janela e ali quis ficar. Acompanhou a corrida do homem em seu espaço de visão. 

A noite e aquela mulher eram muito íntimas e, pela primeira vez, um homem corrompia sua inteligência. Por que em vez de correr não toma um táxi? A pressa é a inimiga da perfeição. Observa: É um homem bonito. Decerto algum marido vem aí atrás. Coitado, correr depois de trepar!
          

No outro edifício, um homem também vê a fuga daquele homem. O homem do edifício é um poeta que justamente agora deixou as palavras do seu poema preparadas para se tornarem versos. O poeta viu quando o homem dobrou a esquina massageando os ombros como se os músculos estivessem exaustos. Por que este homem corre? Quem será? Um assassino ainda no calor do crime? Não. Não parece. 

Quem é o homem que corre nas ruas em plena madrugada? Pés ensopados, paletó molhado, um rosto tranqüilo e além disso? Este não é tranqüilo, ele apenas nunca soube sentir, por isso não expressa medo além de uma face que só se transforma com a idade. Por que esse homem corre? Pergunta o poeta. Não chove mais. Nada me explica porque esse homem corre. Seu rosto não diz nada. Vejamos seu corpo, está cansado, sua respiração é de quem realiza um esforço extremo. Por que não para? Em minutos se recuperaria. O poeta agora apenas focaliza o vulto e a sombra. O poeta acende um cigarro de palha. Sopra o fósforo e joga o palito na rua. A mulher aperta seus seios doloridos. E o homem desaparece na outra esquina. A subida terminava. Terminava a cidade.
         
Chegava à última avenida. Seu problema agora era o controle da respiração. Tira o paletó que esvaziou de papéis e deixa-o numa lixeira. Entrou na última avenida. A gravata caiu num jardim. Uma gravata que ele prezava. Vermelha e grossa, quando usou-a pela primeira vez foi um sucesso entre os colegas. Onde você comprou esta gravata? Veio da Itália para mim. Quem trouxe-a foi a Judith. A gravata caiu sobre o pequeno pé de mamona.
          
Na última avenida. Um carro escuro de passeio se aproxima devagar. Passa e, bruscamente, para. Os freios gritaram. As portas abrem e fecham estrepitosamente. O homem olha perplexo. Os perseguidores existem. O homem olha-os e vê monstros de rostos insensíveis. O homem tenta atravessar a avenida. Soa o primeiro tiro. O segundo. O terceiro. A corrida continua. O homem conseguiu atravessar a última avenida. Ele entra em um beco. 

Pula um muro, pula a cerca de madeira. Suas forças se esgotam. Seus olhos revistam tudo à procura de um lugar onde possa se esconder. Tenta em vão não fazer barulho. Suas apneias são inevitáveis. Os pulmões enchem-se e esvaziam-se tonteando-o. Todo o ar em sua volta é quente e sua pele lateja como se os poros estivessem angustiados por mais oxigênio. Suas pernas inúmeras vezes desobedecem-no. O corpo está pesado. A cabeça dolorida, os braços saem enfraquecidos de um peito arfante e ele se conduz para uma porta que deixa escapar uma luz nas quinas mal ajustadas. Força a porta. A cabeça tonteia e ele quase cai. 

A dor de cabeça é insuportável. Os cabelos doem. Aperta as têmporas, aperta toda a testa. A porta forçada abre-se. Ele vê-se diante de uma mulher. Tapa-lhe a boca antes do grito. Ela porém não iria gritar. Entra, fecha a porta, encosta-se na porta segurando a mulher. Olha todo o quarto, não há ninguém mais. E se houvesse? Teria que sair em fuga novamente, pois não está armado. A mulher não reage. Ele fala, não vou lhe fazer mal. Não grite. Não tente sair. Passarei aqui apenas alguns minutos. Não lhe causarei nenhum mal.
             
Ele largou-a e ela o olhava. Assustou-se a princípio com a presença daquele homem ali. Era um homem diferente, um corpo limpo apesar da lama e da roupa molhada. Ela deduzia isto pelos perfumes que conhecia. O que estaria fazendo aquele homem ali no fim da cidade, fora da cidade? Ali, justamente ali? Ela não se assustou com o fato de um homem a ter quase sufocado, invadindo seu quarto, apertando sua boca com tanta força e trêmulo. Ela deixou-o entender que não gritaria. O quarto pobre abrigava naquele momento dois seres assustados.
                
O homem deitou na cama vigiando todos os movimentos da mulher. Ela parecia-se emudecida pelos olhos de um basilisco, o lagarto assassino. Estava petrificada. A camisola cheia de corpo redondo caia de lado. O seio direito de fora. O homem consertou a camisola. Tolice. Este gesto, entretanto, quebrou toda a magia que a havia petrificado. Ele escuta os movimentos lá fora mas não tira os olhos da moça. 

Lá fora o silêncio. Nada de passos. Haviam perdido-o quando quase o devolveram. De repente, os passos de um indivíduo começam a matraquear, dois indivíduos, três sujeitos correndo, quatro, cinco, vinte, milhares de passos. O homem ergueu-se assustado. Abre os olhos. Era um sonho. Era um pesadelo. Aquela mulher estava parada na mesma posição com a camisola transparente. Mamilos. Olhou em volta. Via um quarto de mulher que vivia sozinha. A máquina de costura. O teto de telha-vã. Ela morava naquele quarto há muito tempo. A mulher trouxe-lhe água. Deitou na cama pequena e única. Suas costas estavam doloridas. Relembrou o momento em que começou a perseguição.
        
Tinha sido noticiado o fim dos homens que usavam relógio. E o seu era parte do seu corpo. Tentou arrancá-lo. Foi duro e dolorido. Via o começo da hecatombe e sem ser percebido tentou sair da cidade. Olhou as horas. O relógio marcava 15h e 55m, início da noite naquela tarde. 


II


A respiração se normalizava. Desviou os olhos fixos na moça e pensou em sair logo, imediatamente. Esquecia-se da moça e isto o assustou. Ela continuava imóvel, sentada num banco. De pele morena, ela tinha a testa toda machucada pelos cravos. Olha-a. Frágil e feia. A boca de batráquio caindo aberta à fantasia erótica. Enquanto olhava-a, identificava os objetos daquele pequeno cômodo. Viu a bacia. Voltou-se para a mulher. Ela trazia de dentro de suas histórias um sorriso que ele não chegou a perceber. Ele espichou-se e os pés sobraram de fora da cama. Sentiu dores nas costas. Foi ao pular o muro. Apanhou uma toalha de rosto. Enxugou-se. A toalha fedia porra. Ele jogou-a no chão. O sorriso dela chegou até ele.


III

        
O barulho dos passos. Dois homens correndo. Quatro pernas. O barulho ensurdecedor. O barulho crescendo. O pano das calças se esfregando nas coxas. Pés contra o chão. Quatro pés. Pés de monstros que cresciam a cada passo. Monstros enormes, pisando sobre um mundo oco.


IV


Ele voltou a correr. Corria com dificuldades. Os pés doíam. O peito estourava. Saiam do chão arrancados. Seria esmagado.


V

A mulher do edifício apagou a luz e continua na janela. Em outro edifício, o poeta ainda contempla o céu estrelado e o chão molhado. Uma brisa vinha espreitando a noite. Aurora, linda amante, já tinha deixado o orvalho. O dia entrava certeiro na noite.


VI

       
Dois homens. Não. Não dois homens. Dois vultos de homens que sorriam. Atravessaram a cidade, transpuseram a cidade, deixaram a cidade. Continuavam na corrida louca. Capacidade de mil quilômetros, gestos treinados e belos, tronco alto, cabeça levantada, mantêm o passo cômico dos atletas de olimpíadas. O dia rompeu. Nos morros, pelas encostas indiferentes e tudo, dois vultos de bailarinos correm enlouquecidos.


VII



        
Na última avenida, os meninos aproximam-se do carro de passeio escuro. Abandonado. Os meninos brincam. Riem. Os adultos telefonam. Pode muito bem ser um carro roubado.