A última
avenida
Agostinho Miranda
I
Naquela
tarde, o céu escureceu muito rápido. A noite caiu dentro do dia.
Ainda na
tarde, a chuva teve momentos de forte pancada. O vento açoitava. Os pingos iam
de encontro aos vidros, às janelas fechadas.
Nos
edifícios, as luzes já estavam acesas desde cedo. Pouco depois, já é noite. E,
na noite, o céu limpou-se.
Estrelas e
luas refletem-se nas poças do asfalto. Dentro da noite, dentro da cidade, entre
os edifícios, dentro da madrugada, um homem e os seus gestos rápidos.
Na verdade, um homem correndo. Seu rosto é de confiança na corrida
e em si mesmo. Sóbrio, sem pavor e sem medo. Salta uma poça. Escorrega.
Transforma a aparente queda em vantagem.
A cidade inteira exala em seu suor úmido o cheiro de eucalipto, de
mato molhado, de asfalto lavado. As luzes de néon refletem-se na água
competindo com as luzes das estrelas e da lua.
Os carros, que a essa hora passam
na cidade, deslizam vagarosos. Pneus molhados e o chão molhado. A borracha
grita dos pneus e do asfalto.
Os sapatos de salto de borracha e
solado de couro pisam no cimento das calçadas. Batem ritmados contra o
tambor-chão. Os sapatos estão molhados, pesados. A roupa encharcada.
O homem entrou em outra rua.
Passou debaixo de um poste iluminado. Esta maldita luz! Fugia também da
claridade. Calculou. Para sair da cidade eram inevitáveis de qualquer maneira
três avenidas. Três espaços bastante iluminados. Onde atravessaria correndo em
velocidade ou calmamente sem correrias, evitando dar na cara a sua fuga se
viesse a ser visto? O relógio fatal indo e vindo no movimento do braço registra
tudo. Os primeiros momentos.
A corrida
começou cedo, logo depois de marcar o cartão de ponto. Em sua primeira parte
foi um zanzar daqui para ali na procura de um lugar para ficar. E, depois na
certeza de que teria de sair da cidade, a corrida ininterrupta.
Esta começou agora, tinha cinco
minutos. Levava boa frente. Talvez nem o estivessem perseguindo. Talvez nem o
tivessem identificado. Mas e se houvessem fechado a cidade para a hecatombe?
Era fundamental apressar-se. Vencer a distância. O corpo aumenta a
velocidade, aumenta o ritmo. O peito sente o esforço. A respiração é intensa. O
barulho do ar entrando e saindo. Na corrida, o corpo se inclina. O rosto
quente, banhado de suor ainda é o mesmo. Tranqüilo e sem medo. Os cabelos
úmidos sobre a testa, pregados na pele.
Lembra dos filmes de maratonas, os atletas coordenam os movimentos
e os gestos, aparentemente cômicos, fundamentais para se cumprir o percurso.
Imaginando, tentou aquela postura dos corredores. A posição não dava certo. Ele
agora devia coordenar velocidade e resistência para uma longa corrida, umas
tantas maratonas. Jamais imaginara-se numa situação dessas, tendo que
empreender uma corrida louca e absurda.
Quando, quem e por que decidiram o fim dos homens que usam relógio?
Ele não tinha certeza se estava sendo perseguido ou não. Certeza tinha de que
precisava fugir, escapar.
Aquilo começou antes da chuva, antes do céu escurecer
inesperadamente naquela tarde. A certeza era de que não podia parar senão o
pegavam. Não sabia se vinha alguém atrás dele. Apenas devia correr. Não podia
parar até o fim da cidade.
Indagando-se, na corrida, lembrou que não se preparara para uma
fuga, uma fuga física, uma fuga em que poria em cheque sua resistência física.
Conseguiria? Não haveria outras formas de fuga? Mais inteligentes e sem tanto
esforço. Há fugas mais fáceis. Com certeza. E esta fuga era absurda pelo seu
tipo de vida: um cidadão pacato, nunca saiu da rotina como funcionário público,
esperava há algum tempo uma promoção e já exercia cargo de responsabilidade em
chefia.
Era um homem formado por aquele Estado, estudou em escolas públicas, era cínico e dentro do cinismo um homem honesto. Nada lhe explicaria nada. Unicamente, ele não sabia raciocinar. Nunca lhe foram dados elementos para isso. Nem tempo e nem razões.
Era um homem formado por aquele Estado, estudou em escolas públicas, era cínico e dentro do cinismo um homem honesto. Nada lhe explicaria nada. Unicamente, ele não sabia raciocinar. Nunca lhe foram dados elementos para isso. Nem tempo e nem razões.
Pensou na excelência para esta hora, na boa coisa que era a
ginástica e a bola de fim de semana. Se não fosse o inesperado, o absurdo – ele
faz questão dessa palavra que desencadeou a correria, hoje, ele estaria no
ônibus para sua pequena cidade.
Horas de fuga, sem saber porque fugir mas fugindo por ser vital. Seguia uma rua reta e de subida. Princípio necessário: não correr mais de três quarteirões em uma só rua. Ele perde espaço, mas isso desnorteia os perseguidores - e os impedem de adivinhar para onde o fugitivo se dirige.
Horas de fuga, sem saber porque fugir mas fugindo por ser vital. Seguia uma rua reta e de subida. Princípio necessário: não correr mais de três quarteirões em uma só rua. Ele perde espaço, mas isso desnorteia os perseguidores - e os impedem de adivinhar para onde o fugitivo se dirige.
No fim, concluía, saia com vantagem se somasse os quarteirões
porque a cidade está dentro de um círculo, que não é perfeito. Até este momento
não havia ninguém na rua. Contou isso como sorte. Ninguém para apontar-lhe aos
perseguidores. Ou para ajudá-lo. Iludiu-se? Dobra uma das ruas transversais no
momento em que uma dor nos ombros assusta-o. Hesitou em tirar o paletó molhado.
Massageou um ombro, depois o outro. Os pés batem firmes no chão. No seu rastro
segue um som seco. A respiração cadenciada e controlada é a mesma dos
exercícios no clube. Os músculos doíam e tremiam.
Do alto de dois edifícios duas pessoas que não se vêem acompanham
aquela corrida por um momento. Uma mulher da noite, ainda com a cabeça tonta de
álcool, ainda com o corpo desocupado por outro corpo, chega à janela. O vento
frio abraça-a alegremente. Nela o cansaço corre pelo corpo agasalhado. Viu
quando o homem dobrou a esquina massageando-se como se tivesse recebido uma
pancada. Parou na janela e ali quis ficar. Acompanhou a corrida do homem em seu
espaço de visão.
A noite e aquela mulher eram muito íntimas e, pela primeira vez, um homem corrompia sua inteligência. Por que em vez de correr não toma um táxi? A pressa é a inimiga da perfeição. Observa: É um homem bonito. Decerto algum marido vem aí atrás. Coitado, correr depois de trepar!
A noite e aquela mulher eram muito íntimas e, pela primeira vez, um homem corrompia sua inteligência. Por que em vez de correr não toma um táxi? A pressa é a inimiga da perfeição. Observa: É um homem bonito. Decerto algum marido vem aí atrás. Coitado, correr depois de trepar!
No outro edifício, um homem também vê a fuga daquele homem. O
homem do edifício é um poeta que justamente agora deixou as palavras do seu
poema preparadas para se tornarem versos. O poeta viu quando o homem dobrou a
esquina massageando os ombros como se os músculos estivessem exaustos. Por que
este homem corre? Quem será? Um assassino ainda no calor do crime? Não. Não
parece.
Quem é o homem que corre nas ruas em plena madrugada? Pés ensopados, paletó molhado, um rosto tranqüilo e além disso? Este não é tranqüilo, ele apenas nunca soube sentir, por isso não expressa medo além de uma face que só se transforma com a idade. Por que esse homem corre? Pergunta o poeta. Não chove mais. Nada me explica porque esse homem corre. Seu rosto não diz nada. Vejamos seu corpo, está cansado, sua respiração é de quem realiza um esforço extremo. Por que não para? Em minutos se recuperaria. O poeta agora apenas focaliza o vulto e a sombra. O poeta acende um cigarro de palha. Sopra o fósforo e joga o palito na rua. A mulher aperta seus seios doloridos. E o homem desaparece na outra esquina. A subida terminava. Terminava a cidade.
Quem é o homem que corre nas ruas em plena madrugada? Pés ensopados, paletó molhado, um rosto tranqüilo e além disso? Este não é tranqüilo, ele apenas nunca soube sentir, por isso não expressa medo além de uma face que só se transforma com a idade. Por que esse homem corre? Pergunta o poeta. Não chove mais. Nada me explica porque esse homem corre. Seu rosto não diz nada. Vejamos seu corpo, está cansado, sua respiração é de quem realiza um esforço extremo. Por que não para? Em minutos se recuperaria. O poeta agora apenas focaliza o vulto e a sombra. O poeta acende um cigarro de palha. Sopra o fósforo e joga o palito na rua. A mulher aperta seus seios doloridos. E o homem desaparece na outra esquina. A subida terminava. Terminava a cidade.
Chegava à última avenida. Seu problema agora era o controle da
respiração. Tira o paletó que esvaziou de papéis e deixa-o numa lixeira. Entrou
na última avenida. A gravata caiu num jardim. Uma gravata que ele prezava.
Vermelha e grossa, quando usou-a pela primeira vez foi um sucesso entre os
colegas. Onde você comprou esta gravata? Veio da Itália para mim. Quem trouxe-a
foi a Judith. A gravata caiu sobre o pequeno pé de mamona.
Na última avenida. Um carro escuro de passeio se aproxima devagar.
Passa e, bruscamente, para. Os freios gritaram. As portas abrem e fecham
estrepitosamente. O homem olha perplexo. Os perseguidores existem. O homem
olha-os e vê monstros de rostos insensíveis. O homem tenta atravessar a
avenida. Soa o primeiro tiro. O segundo. O terceiro. A corrida continua. O
homem conseguiu atravessar a última avenida. Ele entra em um beco.
Pula um muro, pula a cerca de madeira. Suas forças se esgotam. Seus olhos revistam tudo à procura de um lugar onde possa se esconder. Tenta em vão não fazer barulho. Suas apneias são inevitáveis. Os pulmões enchem-se e esvaziam-se tonteando-o. Todo o ar em sua volta é quente e sua pele lateja como se os poros estivessem angustiados por mais oxigênio. Suas pernas inúmeras vezes desobedecem-no. O corpo está pesado. A cabeça dolorida, os braços saem enfraquecidos de um peito arfante e ele se conduz para uma porta que deixa escapar uma luz nas quinas mal ajustadas. Força a porta. A cabeça tonteia e ele quase cai.
A dor de cabeça é insuportável. Os cabelos doem. Aperta as têmporas, aperta toda a testa. A porta forçada abre-se. Ele vê-se diante de uma mulher. Tapa-lhe a boca antes do grito. Ela porém não iria gritar. Entra, fecha a porta, encosta-se na porta segurando a mulher. Olha todo o quarto, não há ninguém mais. E se houvesse? Teria que sair em fuga novamente, pois não está armado. A mulher não reage. Ele fala, não vou lhe fazer mal. Não grite. Não tente sair. Passarei aqui apenas alguns minutos. Não lhe causarei nenhum mal.
Pula um muro, pula a cerca de madeira. Suas forças se esgotam. Seus olhos revistam tudo à procura de um lugar onde possa se esconder. Tenta em vão não fazer barulho. Suas apneias são inevitáveis. Os pulmões enchem-se e esvaziam-se tonteando-o. Todo o ar em sua volta é quente e sua pele lateja como se os poros estivessem angustiados por mais oxigênio. Suas pernas inúmeras vezes desobedecem-no. O corpo está pesado. A cabeça dolorida, os braços saem enfraquecidos de um peito arfante e ele se conduz para uma porta que deixa escapar uma luz nas quinas mal ajustadas. Força a porta. A cabeça tonteia e ele quase cai.
A dor de cabeça é insuportável. Os cabelos doem. Aperta as têmporas, aperta toda a testa. A porta forçada abre-se. Ele vê-se diante de uma mulher. Tapa-lhe a boca antes do grito. Ela porém não iria gritar. Entra, fecha a porta, encosta-se na porta segurando a mulher. Olha todo o quarto, não há ninguém mais. E se houvesse? Teria que sair em fuga novamente, pois não está armado. A mulher não reage. Ele fala, não vou lhe fazer mal. Não grite. Não tente sair. Passarei aqui apenas alguns minutos. Não lhe causarei nenhum mal.
Ele largou-a e ela o olhava. Assustou-se a princípio com a
presença daquele homem ali. Era um homem diferente, um corpo limpo apesar da
lama e da roupa molhada. Ela deduzia isto pelos perfumes que conhecia. O que
estaria fazendo aquele homem ali no fim da cidade, fora da cidade? Ali,
justamente ali? Ela não se assustou com o fato de um homem a ter quase
sufocado, invadindo seu quarto, apertando sua boca com tanta força e trêmulo.
Ela deixou-o entender que não gritaria. O quarto pobre abrigava naquele momento
dois seres assustados.
O homem deitou na cama vigiando todos os movimentos da mulher. Ela
parecia-se emudecida pelos olhos de um basilisco, o lagarto assassino. Estava
petrificada. A camisola cheia de corpo redondo caia de lado. O seio direito de
fora. O homem consertou a camisola. Tolice. Este gesto, entretanto, quebrou
toda a magia que a havia petrificado. Ele escuta os movimentos lá fora mas não
tira os olhos da moça.
Lá fora o silêncio. Nada de passos. Haviam perdido-o quando quase o devolveram. De repente, os passos de um indivíduo começam a matraquear, dois indivíduos, três sujeitos correndo, quatro, cinco, vinte, milhares de passos. O homem ergueu-se assustado. Abre os olhos. Era um sonho. Era um pesadelo. Aquela mulher estava parada na mesma posição com a camisola transparente. Mamilos. Olhou em volta. Via um quarto de mulher que vivia sozinha. A máquina de costura. O teto de telha-vã. Ela morava naquele quarto há muito tempo. A mulher trouxe-lhe água. Deitou na cama pequena e única. Suas costas estavam doloridas. Relembrou o momento em que começou a perseguição.
Lá fora o silêncio. Nada de passos. Haviam perdido-o quando quase o devolveram. De repente, os passos de um indivíduo começam a matraquear, dois indivíduos, três sujeitos correndo, quatro, cinco, vinte, milhares de passos. O homem ergueu-se assustado. Abre os olhos. Era um sonho. Era um pesadelo. Aquela mulher estava parada na mesma posição com a camisola transparente. Mamilos. Olhou em volta. Via um quarto de mulher que vivia sozinha. A máquina de costura. O teto de telha-vã. Ela morava naquele quarto há muito tempo. A mulher trouxe-lhe água. Deitou na cama pequena e única. Suas costas estavam doloridas. Relembrou o momento em que começou a perseguição.
Tinha sido noticiado o fim dos homens que usavam relógio. E o seu
era parte do seu corpo. Tentou arrancá-lo. Foi duro e dolorido. Via o começo da
hecatombe e sem ser percebido tentou sair da cidade. Olhou as horas. O relógio
marcava 15h e 55m, início da noite naquela tarde.
II
A respiração se
normalizava. Desviou os olhos fixos na moça e pensou em sair logo,
imediatamente. Esquecia-se da moça e isto o assustou. Ela continuava imóvel,
sentada num banco. De pele morena, ela tinha a testa toda machucada pelos
cravos. Olha-a. Frágil e feia. A boca de batráquio caindo aberta à fantasia
erótica. Enquanto olhava-a, identificava os objetos daquele pequeno cômodo. Viu
a bacia. Voltou-se para a mulher. Ela trazia de dentro de suas histórias um
sorriso que ele não chegou a perceber. Ele espichou-se e os pés sobraram de
fora da cama. Sentiu dores nas costas. Foi ao pular o muro. Apanhou uma toalha
de rosto. Enxugou-se. A toalha fedia porra. Ele jogou-a no chão. O sorriso dela
chegou até ele.
III
O barulho dos
passos. Dois homens correndo. Quatro pernas. O barulho ensurdecedor. O barulho
crescendo. O pano das calças se esfregando nas coxas. Pés contra o chão. Quatro
pés. Pés de monstros que cresciam a cada passo. Monstros enormes, pisando sobre
um mundo oco.
IV
Ele voltou a correr.
Corria com dificuldades. Os pés doíam. O peito estourava. Saiam do chão
arrancados. Seria esmagado.
V
A mulher do edifício
apagou a luz e continua na janela. Em outro edifício, o poeta ainda contempla o
céu estrelado e o chão molhado. Uma brisa vinha espreitando a noite. Aurora,
linda amante, já tinha deixado o orvalho. O dia entrava certeiro na noite.
VI
Dois homens. Não. Não dois homens. Dois vultos de homens que
sorriam. Atravessaram a cidade, transpuseram a cidade, deixaram a cidade.
Continuavam na corrida louca. Capacidade de mil quilômetros, gestos treinados e
belos, tronco alto, cabeça levantada, mantêm o passo cômico dos atletas de
olimpíadas. O dia rompeu. Nos morros, pelas encostas indiferentes e tudo, dois
vultos de bailarinos correm enlouquecidos.
VII
Na última avenida, os meninos aproximam-se do carro de passeio
escuro. Abandonado. Os meninos brincam. Riem. Os adultos telefonam. Pode muito
bem ser um carro roubado.
