Tcioran e eu
Apud Borges
Gabriel Conroy
“Uma obra consumada não seria
necessariamente
acabada e uma obra acabada
não seria necessariamente consumada”.
Baudelaire citado por Malraux,
citado por Merleau-Ponty
v
Eu conheci Tcioran menino, um menino preto queimado de sol. Ele
corria descalço pelas ruas de chão quente da cidade do Mucuri. Via aquele
menino de longe, quase sempre de muito longe, onde distante sempre esteve. São
esparsas as notícias que eu tenho dele.
v
Lembro dele deitado no chão da varanda em conversas demoradas com
as nuvens. Lia no céu gente e animais em formas e composições às vezes belas,
outras monstruosas em um tempo em que não se tinha medo de monstros, em que o
feio era igual ao belo.
v
Outras vezes, deitado sobre a mesa enorme no terreiro de secar
café, à noite, segurando uma montoeira imensa de estrelas no céu, até se fixar
em uma e era difícil. Lia naquele céu imenso e iluminado pelas estrelas
histórias fantásticas e deliciosas. E sua platéia aumentava todos os dias.
v
Lembro do menino do porão e de suas muitas fantasias em cada canto
do porão, organizando os espaços, limitado pela altura tendo que deslizar
agachado. Debaixo da casa real uma casa iria surgir para amar e para guerrear.
v
Aquele menino e suas amizades com os gatos, cachorros, cavalos e
bois. A tragédia do enterro do gato, quando os atores levavam a sério a
história e o gato reagiu apavorado. O gato não topou ser defunto e muito menos
ser enterrado vivo.
v
O crime do menino: a divisão do cágado. Uma longa e deplorável história
para depois de um presente dado a duas crianças.
v
O menino negocia com os ciganos e parte para explorar as
redondezas da cidade, as proximidades da casa, as proximidades do colégio até a
grande aventura da estrada.
v
O menino e o cinema, com os seriados semanais no cine Poeira, Roy
Roges, Ulysses, Zorro, Super Homem. Depois do filme, o seriado e a continuação
na próxima semana com o artista principal ou um seu aliado correndo risco.
v
Lembro do menino na rua das Putas e comendo as putas
v
Acompanhei este menino pelas estradas e rios do Mucuri.
·
Com Tcioran aconteceram muitas coisas, muitas aventuras, muitas
paixões e mais do que tudo uma fabulosa aventura na imaginação, além do mais
complicado uma persistente e dolorosa interrogação de si e de ideias, de
pessoas e de sonhos. Pude acompanhar alguma coisa de perto.
v
Vou falar do que vi e dos nossos diálogos, conversei algumas vezes
com Tcioran, do que anotei tenho memória, do que apenas falamos em nossas
muitas caminhadas não tenho mais nada.
·
Eu caminhei Belo Horizonte milhares de vezes, mil ruas e avenidas,
subi e desci muitos morros, ainda não conheço cada canto da cidade, se me
surpreendo dentro de uma casa, cuja fachada sei de cor, seria capaz, como um
bom detetive, de falar sobre a estrutura da casa, disposição dos quartos, da
sala, aventurando-me sobre seus primeiros donos, seus primeiros inquilinos e
até mesmo passar a mão em uma parede onde uma mocinha deu seu primeiro beijo na
boca de um namorado perfumado e suado.
v
Estou perdido e distribuído por toda a cidade, se meu perder não
for total é porque a própria cidade me acha e me recolhe ou acolhe. Se reclamo
das minhas caminhadas repetidas, mil vezes, para lá e para cá na mesma avenida
dos Andradas, eu dou o troco e falo de cada milímetro do seu chão, de cada
perspectiva do seu vale, de todas as frases de seus imensos cartazes, ditos
inteligentes e bons de venda porque se vê e se lê.
·
De Tcioran tenho notícias constantemente são os amigos comuns e
suas ex-mulheres (ele não chamava-as de ex-mulheres, dizia minha mulher Isabel
de Teófilo Otoni, minha mulher Isabel de 68, minha mulher Isabel de Belém, não
existia ex- ou passado para ele em se tratando de amor e de vida).
v
Vejo seu nome sendo discutido em rodas de políticos, uns a favor
falando com euforia e alegria, outros contra, outros detratores, outros
inimigos elogiando para fazer aparecer o ridículo das posições de Tcioran ou as
suas contradições, apontando com fúria seus pés de barro.
v
Vejo seu nome em uma lista de professores ou em um dicionário
biográfico de jornalista.
v
Eu e Tcioran.
v
Agradam-me uma boa conversa, um bom amigo, ouvir relatos dos
antigos e as experiências dos jovens, a coragem e a audácia dos jovens, os
erros e a visão que os jovens têm de seus erros, principalmente as bem
humoradas, os livros de aventura e os livros dos filósofos; Tcioran compartilha essas preferências, mas de um
modo vaidoso que as transforma em atributos de um ator.
v
Qual seria a nossa relação? Eu acompanho a vida de Tcioran e
sempre estive com ele em muitos momento. Não há nem conflito e nem hostilidade,
como não há acordo e nem desacordo. Nossa relação se pauta, da minha parte,
pela observação, e o que se pode dizer de alguém e o que se pode conhecer
alguém pela observação, por uma e outra conversa, por um e outro encontro, em
sua maioria, ocasionais.
v
Observo essa obsessão de Tcioran pela palavra, sua insistência em
escrever, em se dizer, intimamente, poeta, e em usar da poesia para apenas
sobreviver.
v
Observo e leio tudo o que ele escreve, porque ele insiste em me
mostrar, mas ainda não posso avaliar. Em permanente intervenções em tudo o que
pensa, fala e escreve, reavalia o feito e reinterpreta cada fato, ato ou
pessoa. Reescreve permanentemente, ele é só um reescrevedor em busca da clareza
e da síntese, da pouca palavra. Essa vulcanização do seu viver e fazer é que me
empolga e me justifica.
v
Ele ainda não publicou, nem pensa concretamente nesta hipótese,
nem teme o que possa acontecer caso tudo venha a se perder. Não porque não
considere válidas as suas páginas. Não fechou nenhuma avaliação e teme, treme,
ainda diante do universo planejado, das ideias concebidas e dos sonhos
anotados.
v
Eu
estou destinado a perder-me, definitivamente, e só algum instante de mim poderá
sobreviver em Tcioran.
v
Tcioran desenvolveu elementos de sobrevivência nos relacionamentos
e, embora não concorde com nenhum deles, eles devem ser melhor examinados, como
por exemplo “seu perverso costume de falsear e magnificar”
v
“Spinoza entendeu que todas as coisas querem perseverar em seu
ser; a pedra eternamente quer ser pedra e o tigre um tigre”.
v
Tcioran não, ele quer ser Borges, ele quer ser Shakespeare, ele
quer ser Marx, quer ser Sartre, quer ser Kierkegaard, quer ser Heráclito e
Heidegger, quer ser Mao e Che, quer ser sempre o outro, está sempre copiando,
como faz agora, quer ser a pedra e/ou o tigre, mas sobretudo quer ser Espinosa.
v
Querer perseverar em seu ser, ele entendeu em ser depois dos
diálogos com aquelas inteligências, com aqueles espíritos, com aquelas
consciências e com aqueles seres fundadores do homem que se constrói aos
poucos, muito aos poucos nestes longos tempos de se ser e de se fazer o homem.
v
Eu permanecerei eu e jamais serei Tcioran. Sei que sou alguém.
Reconheço eu e ele, minha participação no seu trabalho, minha estreita
colaboração com o seu pensar e ser. Eu me encontro em muitas de suas palavras,
em quase todos os seus gestos. A identificação é maior do que imagino, pois me
percebo até no seu olhar e quando compõe seu melhor poema. Nunca tentei
livrar-me dele. Muitas vezes nos afastamos mas a troca de correspondência era
mais do que diária, era um escrever contínuo, um entender-se pela razão sem a
razão. Muitas vezes percebi que Tcioran tinha muito mais domínio sobre mim do
que eu poderia aceitar, assim pude perceber que muitas das minhas análises e
visões de sua vida na realidade eram visões e análises produzidas e estimuladas
a partir dele. Decodifiquei isto. Tranqüilizei-me.
v
“A minha vida é uma fuga e tudo eu perco e tudo é do esquecimento,
ou do outro”.
v
Conto de “O fazedor” , JLB Obras Completas Volume II, Editora
Globo
v
Borges
e eu
v
Ao outro, a Borges, é que sucedem as coisas. Eu caminho por Buenos
Aires e me demoro, talvez já mecanicamente, para olhar o arco de um vestíbulo e
o portão gradeado; de Borges tenho notícias pelo correio e vejo seu nome em uma
lista tríplice de professores ou em um dicionário biográfico.
v
Agradam-me os relógios de areia, os mapas, a tipografia do século
XVIII, as etimologias, o gosto do café e a prosa de Stevenson; o outro
compartilha essas preferências, mas de um modo vaidoso que as transforma em
atributos de um ator.
v
Seria exagerado afirmar que nossa relação é hostil; eu vivo, eu me
deixo viver, para que Borges possa tramar sua literatura, e essa literatura me
justifica. Não me custa nada confessar que alcançou certas páginas válidas, mas
estas páginas não podem salvar-me, talvez porque o bom já não seja de ninguém,
nem mesmo do outro, mas da linguagem ou da tradição.
v
Além disso, eu estou destinado a perder-me, definitivamente. Só
algum instante de mim poderá sobreviver no outro. Pouco a pouco vou cedendo-lhe
tudo, embora conheça seu perverso costume de falsear e magnificar.
v
Spinoza entendeu que todas as coisas querem perseverar em seu ser;
a pedra eternamente quer ser pedra e o tigre um tigre. Eu permanecerei em
Borges, não em mim (se é que sou alguém), mas me reconheço menos em meus livros
do que em muitos outros ou do que no laborioso rasqueado de uma guitarra.
v
Há alguns anos tentei livrar-me dele e passei das mitologias do arrabalde
aos jogos com o tempo e com o infinito, mas esses jogos agora são de Borges e
terei que imaginar outras coisas. Assim minha vida é uma fuga e tudo eu perco e
tudo é do esquecimento, ou do outro.
v
Não sei qual dos dois escreve (ou escreveu) tudo isto.
“Como sempre em arte, fingir para tornar
verdadeiro”.
Sartre citado por Merleau-Ponty