A NÚBIA É
AZUL
Adriano
Augusto
Gringo
confirmou que ela realmente foi prisioneira em um campo de concentração.
Sei disso.
Eles mostram
o tempo todo que campo de concentração é criação e exclusividade dos alemães.
Não foi criação dos alemães. Nem foi obra exclusiva deles naquela guerra.
Diz o Gringo
que os campos de concentração de prisioneiros também foi obra dos
norte-americanos, uma ideia deles ainda na América. Diz ele que na biblioteca
tem duas obras que tratam desse assunto (*). É procurar depois o Mucuri.
Procuro. Podem deixar.
O Gringo
disse mais. Disse que os países são montados para dominar as populações, o
povo, e que por sua vezes os países são “protegidos”, dominados, por outros
países mais fortes e que a Itália tinha muitos países.
É isso
mesmo.
Como se
fossem fazendas, uma das fazendas da Itália era a Etiópia, outra era a Líbia.
Nesta época,
diz ele alguns países ganharam até sobrenome como o Congo Belga, onde houve um
dos genocídios no início do século passado.
Genocídio?
Ele me
explicou. É a matança de milhares, de milhões de pessoas, o extermínio de um
povo.É meu amigo, os homens sempre fizeram isto. Os homens esquecem que são
homens com muita facilidade.
O fato é que
a irmã esteve presa mesmo em um campo de concentração montado pelos
norte-americanos no norte da África, no Marrocos.
Foi em Adis
Abeba bombardeada com todo tipo de bombas, inclusive bombas incendiárias que
ela descobriu, segundo ela, a pureza.
Uma das
populações negras mais atingidas pela guerra, foram os núbios. Os núbios são negros tão negros que pareciam
seres azuis. Não existia beleza mais impressionante do que a beleza daquele povo.
Os militares alemães atendidos nos hospitais eram
muitos. A cidade virou um grande hospital. Estes militares alemães não
resistiram à beleza daquela raça.
Se eles eram puros seriam os mais belos e
diante daquele povo negro tinham que questionar a ideia da pureza da raça.
Em meio a
tanta dor e à precariedade da vida, muitos morriam a toda hora.
Ela conta
que entre os núbios havia uma negra, a mais bela mulher que a irmã Maria, viu
em toda a sua vida, que também pela beleza, era como uma deusa para aquele
povo. Uma menina. Uma moça. Uma deusa.
Em
determinadas noites, eles se reuniam em silêncio. Céu escuro, muito escuro.
Reuniam, como em uma missa, mas sem orações como as que fazemos. Sem palavras
como as nossas rezas. No silêncio ouvia-se apenas o canto dos ventos, das
árvores e dos animais da noite. Nada mais.
Era uma
orquestra e ao som desta orquestra, ela surgia sempre em um espaço mais alto.
Em pouco
tempo ela com seu corpo nu envolvia a todos com uma dança inexplicável como a
gente entende a dança. Não era sensual e era sensual.
Afinal, ela estava nua e
seu corpo suava.
O suor era o
espelho para as luzes que vinham da noite. Se era uma noite com as luzes das
estrelas, em que a claridade era total, maior era o silêncio e em noites de
lua, se percebia que a respiração humana também era um instrumento musical
nesta orquestra do silêncio.
Ela era para
aquele povo um ser precioso e, mesmo as pessoas feridas, exigiam participar
daquela grande missa, onde um corpo falava, rezava, com o próprio corpo. Dali,
eles saiam mais fortes, mais felizes, mais contentes, mais alegres.
Entre os
núbios se via alemães, italianos, que saiam da dança da deusa negra nua com uma
sensação de felicidade que só poderia ser explicada pela beleza, pela pureza
dos gestos e da compreensão de tudo o que ela disse sem ter tido nada nem com a
boca nem com palavras.
A notícia correu a madrugada. A enfermaria onde a deusa núbia trabalhava como
enfermeira foi bombardeada. Bomba incendiária. Ela fora atingida e ainda estava
viva. Toda a cidade hospital foi para a enfermaria onde ela era atendida e
agora quem era a enfermeira dela era a irmã Maria, que deixou a direção do
hospital para comandar todos os esforços para salvar, se fosse possível, aquela
mulher tão importante para toda aquela estranha comunidade de negros, núbios,
que era uma outra cor do preto, brancos alemães, italianos.
Ninguém se
afastou naqueles dois dias em que ela sobreviveu.
Não havia
lágrimas, não havia desespero, não havia marcas de dor. Em silêncio, milhares
de pessoas feridas e em recuperação acompanharam aqueles momentos.
Os núbios
buscaram o corpo queimado e, numa noite estrelada, choraram com as estrelas e
se despediram dela.
A irmã Maria
me disse que o homem que acha que se fala apenas com a boca é um ignorante. Nós
falamos com os olhos, com as mãos, com todo o nosso corpo, que cobrimos de
roupas para esconder o que queremos esconder, para calar.
(*) Uma obra
é o romance, A 25ª. Hora, de Constantin Virgil Georgiu, e a outra é “Os
Primeiros Modernos”, de William R. Everdell.