terça-feira, 29 de julho de 2014

TODA A BELEZA DA COR










A NÚBIA É AZUL




Adriano Augusto





Gringo confirmou que ela realmente foi prisioneira em um campo de concentração.

Sei disso.

Eles mostram o tempo todo que campo de concentração é criação e exclusividade dos alemães. Não foi criação dos alemães. Nem foi obra exclusiva deles naquela guerra.

Diz o Gringo que os campos de concentração de prisioneiros também foi obra dos norte-americanos, uma ideia deles ainda na América. Diz ele que na biblioteca tem duas obras que tratam desse assunto (*). É procurar depois o Mucuri. Procuro. Podem deixar.

O Gringo disse mais. Disse que os países são montados para dominar as populações, o povo, e que por sua vezes os países são “protegidos”, dominados, por outros países mais fortes e que a Itália tinha muitos países.

É isso mesmo.

Como se fossem fazendas, uma das fazendas da Itália era a Etiópia, outra era a Líbia.

Nesta época, diz ele alguns países ganharam até sobrenome como o Congo Belga, onde houve um dos genocídios no início do século passado.

Genocídio?

Ele me explicou. É a matança de milhares, de milhões de pessoas, o extermínio de um povo.É meu amigo, os homens sempre fizeram isto. Os homens esquecem que são homens com muita facilidade.

O fato é que a irmã esteve presa mesmo em um campo de concentração montado pelos norte-americanos no norte da África, no Marrocos.

Foi em Adis Abeba bombardeada com todo tipo de bombas, inclusive bombas incendiárias que ela descobriu, segundo ela, a pureza.

Uma das populações negras mais atingidas pela guerra, foram os núbios.  Os núbios são negros tão negros que pareciam seres azuis. Não existia beleza mais impressionante do que a beleza daquele povo.  

Os militares alemães atendidos nos hospitais eram muitos. A cidade virou um grande hospital. Estes militares alemães não resistiram à beleza daquela raça. 

Se eles eram puros seriam os mais belos e diante daquele povo negro tinham que questionar a ideia da pureza da raça.

Em meio a tanta dor e à precariedade da vida, muitos morriam a toda hora.

Ela conta que entre os núbios havia uma negra, a mais bela mulher que a irmã Maria, viu em toda a sua vida, que também pela beleza, era como uma deusa para aquele povo. Uma menina. Uma moça. Uma deusa.

Em determinadas noites, eles se reuniam em silêncio. Céu escuro, muito escuro. Reuniam, como em uma missa, mas sem orações como as que fazemos. Sem palavras como as nossas rezas. No silêncio ouvia-se apenas o canto dos ventos, das árvores e dos animais da noite. Nada mais.

Era uma orquestra e ao som desta orquestra, ela surgia sempre em um espaço mais alto.

Em pouco tempo ela com seu corpo nu envolvia a todos com uma dança inexplicável como a gente entende a dança. Não era sensual e era sensual. 

Afinal, ela estava nua e seu corpo suava.

O suor era o espelho para as luzes que vinham da noite. Se era uma noite com as luzes das estrelas, em que a claridade era total, maior era o silêncio e em noites de lua, se percebia que a respiração humana também era um instrumento musical nesta orquestra do silêncio.

Ela era para aquele povo um ser precioso e, mesmo as pessoas feridas, exigiam participar daquela grande missa, onde um corpo falava, rezava, com o próprio corpo. Dali, eles saiam mais fortes, mais felizes, mais contentes, mais alegres.

Entre os núbios se via alemães, italianos, que saiam da dança da deusa negra nua com uma sensação de felicidade que só poderia ser explicada pela beleza, pela pureza dos gestos e da compreensão de tudo o que ela disse sem ter tido nada nem com a boca nem com palavras.

A notícia correu a madrugada. A enfermaria onde a deusa núbia trabalhava como enfermeira foi bombardeada. Bomba incendiária. Ela fora atingida e ainda estava viva. Toda a cidade hospital foi para a enfermaria onde ela era atendida e agora quem era a enfermeira dela era a irmã Maria, que deixou a direção do hospital para comandar todos os esforços para salvar, se fosse possível, aquela mulher tão importante para toda aquela estranha comunidade de negros, núbios, que era uma outra cor do preto, brancos alemães, italianos.

Ninguém se afastou naqueles dois dias em que ela sobreviveu.

Não havia lágrimas, não havia desespero, não havia marcas de dor. Em silêncio, milhares de pessoas feridas e em recuperação acompanharam aqueles momentos.

Os núbios buscaram o corpo queimado e, numa noite estrelada, choraram com as estrelas e se despediram dela.

A irmã Maria me disse que o homem que acha que se fala apenas com a boca é um ignorante. Nós falamos com os olhos, com as mãos, com todo o nosso corpo, que cobrimos de roupas para esconder o que queremos esconder, para calar.    





(*) Uma obra é o romance, A 25ª. Hora, de Constantin Virgil Georgiu, e a outra é “Os Primeiros Modernos”, de William R. Everdell.