Ouvir os bois
Adriano Augusto
A
turma da lavoura acorda uma hora antes. Ela vai para o pátio em frente ao
portão externo. Outra turma de presos vai para a base, onde o trabalho é duro,
enxada, pintura, asfalto. Nova divisão, da turma da lavoura: uma parte fica na
horta lá embaixo. Desta, grupos menores dirigem-se para os pequenos serviços,
manutenção dos canteiros, limpeza e garagem. O restante da turma da lavoura,
geralmente os últimos a sair, vai para o matadouro, arrendado a um particular.
No
matadouro, o pessoal ganha bem. Eles recebem por cabeça de gado abatida. No fim
do mês, sobra mais de oitenta cruzeiros para cada um. O matadouro não é longe,
em menos de vinte minutos caminhando por um chão de terra batida chega-se ao
acampamento, depois à construção precária de tijolo e madeira: o matadouro.
João
era novo no serviço. Era a primeira vez que lhe davam oportunidade de sair fora
daqueles muros cinzentos da penitenciária.
“Dentro
de mim acontece alguma coisa quando passo por estes muros,” sempre dizia o
Tigrão, e isto era repetido sempre que estava a vinte metros do portão. Depois
Tigrão comparava. “ É a mesma coisa que ver uma mulher bonita” .
- Eu também sinto-me
diferente quando tem uma mulher bonita por perto.
- É uma dor em cima do
estômago – afirma Tigrão.
- É como se a gente
tivesse engolido algo bom mas que incomoda.
- Olha, João, quando eu
saia para a rua, lá na comarca, eu não conseguia controlar minhas pernas, dava
cada pressão. Uma tremura. Nem dava para andar. A mesma coisa aconteceu da vez
que fui no Hospital das Clínicas com Jefferson. Ficamos, eu e o Batista em
frente ao prédio. Os carros passavam, sabe como é o trânsito perto daqueles
hospitais? Pois é, João, os carros passavam, freiavam, arrancavam e eu suava
frio, tremendo e me apavorava todo. Eu me mandava para dentro do hospital. As
paredes me proteger. A droga é que eu tinha ódio daquelas paredes que me
lembravam estas daqui.
João
parou antes do Cacique, uma pequena vila, para entregar a correspondência do
Isaltino que estava na pior e sem nenhuma oportunidade. A mulher de Isaltino se
emocionava todas as vezes que recebia as cartas.
Este
era o sétimo dia de trabalho de João. No primeiro dia, João desmaiara ao ver
toda aquela sangueira, a brutalidade, a habilidade dos esquartejadores. No
terceiro dia, todos esqueceram do fato, no entanto, ficara a impressão da
insistência com que João resistia.
- Isto é covardia.
- Vocês não têm pena dos
animais?
- Eles parecem conosco,
todos sabem que vão morrer, dêem ouvido ao grito de agonia destes animais, eles
são animais tão humanos quanto nós, eles são bravos. Veja, eles não cedem na
hora da morte.
- Quem ensinou aos bois
que chegou a hora da morte? Eles sabem a hora da morte. Como eles sabem que vão
morrer?
- Como eles conhecem a
morte?
Intrigado,
João passou as dúvidas dele para os outros. Até este dia João nunca executara
um animal. Hoje, não haveria escapatória, ele teria que matar. Afinal, não
ganharia nada no final do mês. Muitos que folgavam hoje queriam estar lá no
Matadouro para ver o que iria fazer o João nesta situação.
Tigrão
se ofereceu para ajudar João. Os dois matariam melhor. Tigrão levantara
pensando nisto, sonhara com um animal varando o seu amigo. Ele estaria ali do
lado. No pátio, não notara diferença no companheiro, a não ser aquela conversa
sobre a dor no estômago e as mulheres, em que ele João dera a sua opinião. E
sobre o conhecimento, que o boi tinha do momento da morte. Bobagens! Tudo
aquilo era bobagem.
- João, eu fui marreteiro
muito tempo, devo ter matado para mais de mil bois, por isso, escuta o que eu
digo, é conselho de amigo. Cuidado, aquilo é uma luta, é perigoso, o boi
arranca a marreta da mão da gente, da mesma maneira como ele sabe que vai
morrer, ele sabe quem vacila. Se o boi tirar a marreta, a gente escorrega,
perde o equilíbrio, e se cair no chão é o fim. O boi furioso mata, mata porque
sabe que vai morrer, mata para vingar. Tem que acertar a primeira marretada,
não pode ter pulso mole ou pensar em agilidade, nós estamos em vantagem, ficamos
no alto, uma só esmorece o bicho, ele bambeia, não resiste mais.
- Eu devo matar - João
afirmou? Perguntou?
- Então, vamos
lá, vamos logo acabar com isso - João saiu decidido.
Ele
apanhou a primeira marreta. Os lamentos do animal começaram a fazer parte do
seu organismo, um boi, dois, cinco, dez. Aqueles sons atravessavam sua pele,
não adiantava ter os ouvidos surdos ou trazê-los tapados com algodão, como
fazia. Era inútil. Sua pele, todo o seu ser, recebiam aqueles sons e ele, João,
os compreendia, eram lamentos, eram urros de quem ia morrer. Era a percepção da
morte. Quem é capaz de perceber a morte, pensa.
Hoje
era o seu dia, João devia encerrar aqueles recuos, aquelas vacilações de um
bobo, um João Bobo, se seu destino era matar, então mataria, mataria. Ele
estava resolvido. E se não conseguisse nada? Fugiria.
Olhou
o primeiro boi que devia matar e virou os olhos para um lugar qualquer que
fosse capaz de trazer-lhe um outro pensamento, um pensamento como aquele que
tivera ao deitar. Ele era criança, assistia à perseguição de um ladrão, depois
ouviu os lamentos de umas mulheres e não ouviu mais nada, tudo estava escuro,
as mulheres haviam gritado com medo dos tiros terem atingido alguém. Ele se
lembrou do sentido dos gritos das mulheres e percebeu então que estava
morrendo. Era apenas um sonho daquela noite. E acordara.
O
boi que entrou era um guzerá velho, forte e inquieto. O seu lamento era o mais
sentido, seu couro brilhava, de seus chifres o Mineiro, o preso de Almenara, faria
peixes dourados, Antenor faria pentes, os pentes eram mais requisitados, vinha
até encomenda da capital, João lembrou do carroção que o Casanova fizera, oito
bois na canga, um servição meticuloso, os bois puxando o carroção de apanhar a
colheita, atrás estavam as enxadas, as foices, o cantil, os apetrechos
dependurados, um pano vermelho balançava na ponta da vara que dois bonecos
carregavam. João não entendia o pano vermelho. Para que? Naquela estrada não
passaria outro carro de boi.
Alguém
gritara o nome do boi. Carioca! Carioca! Cariooooca! A todos os bois, na hora
da morte, o pessoal dava um nome e o nome que mais matavam era Carioca, marido
de uma mulher conhecidíssima na cidade.
De
um pulo, os dois João e Tigrão alcançaram o estrado. O touro vinha sendo
conduzido para as marretas. Embaixo, o chão não era mais de terra nem de
cimento, uma camada cobria o chão, era sangue infiltrado no chão, misturado com
a terra e o cimento. Até aquele momento, João era o encarregado de trazer a
água ao final de cada matança.
- Agüenta firme,
companheiro.
João
não reconhecera a voz. Ao seu lado. Tigrão, vigilante, silencioso. Debaixo das
marretas, o boi não ficava quieto um minuto.
Zeca-Miolo-Mole,
Binzim, Tiago e também Jucá interromperam suas tarefas. João ergueu a marreta.
O boi ficou quieto. A marreta desceu e acertou em cheio a base de sustentação
dos marreteiros. João caiu sobre as costas do boi e daí ao chão.
Tigrão,
viu o amigo sendo pisoteado. Reafirmou mais uma vez a sua calma, pois sobre uma
base de sustentação frágil vibrou duas poderosas marretadas no boi que
eliminaram imediatamente com o animal.
Zeca-Miolo-Mole
e Tiago tiraram João para fora do sangue.
- Tigrão, para mim
foi impossível.Eu não consegui.
As
mãos de João foram esbagaçadas pelos pés do boi. Colocaram João em um Jeep.
Tigrão
voltou naquele mesmo dia, se apresentou na administração e pediu para ser
afastado do Matadouro.
- Por que?
Tigrão disse
qualquer coisa que justificaria ter o seu nome cortado daquela relação de
trabalhadores privilegiados dentro do sistema penitenciário. Viu riscarem o seu
nome e afastou-se.
Sua
cabeça estava tranqüila e leve, lembrou do amigo que já estava de volta do
hospital. Afastando-se da administração retornou a pergunta por que?
- Por que? Ele
lembrou da pergunta do funcionário e da sua voz grave. Agora riu e agora respondeu
para ele mesmo.
- Por que?
Porque eu agora também estou escutando o que os bois falam.