segunda-feira, 21 de março de 2016

O ESPELHO E A IMITAÇÃO











Sem escapatória



 Orlando de Almeida Freitas







“A primeira obrigação de um homem é ser igual a si” 

Darcy Ribeiro (1).






Então, você será igual a quem?

Igual ao ídolo é fácil. 

O ídolo joga, é só tentar jogar como o ídolo.

O ídolo escreve, é só tentar escrever como o ídolo.

Mais fácil ainda, o ídolo usa camisa de manga comprida? 

É só usar camisa de manga comprida. 

O ídolo penteia o cabelo para a frente? 

Penteie o cabelo do mesmo jeito.

Agora ser igual a si mesmo é um pouco mais complicado.

Primeiro, você precisa saber quem você é.

Depois você precisa gostar de você.

Em terceiro lugar, você precisa eleger o que você é como o seu ídolo, você ser o ídolo de você mesmo.

Você terá que ser você e não adianta tentar escapar, nem mentir para você mesmo e fingir ser o que não é.



É difícil enganar a si mesmo.


Há quem ache que é fácil demais, pois não se perderia em dúvidas e em formulações, não se inquietaria em escolher (mais fácil é outro escolher por você). Não se preocuparia em pensar (outro pensaria por você). Nem em julgar, outro julgaria por você.




“...Quero perder de vez tua cabeça

Minha cabeça perder teu juízo”.

(Cálice, Chico e Gil)


Se nem isto se consegue, a identidade vai pro brejo. Fica atolada.




Confortável, não? Enquanto isso você poderia sempre sonhar, sempre pensar em ser o que não é, falar coisas em que você não acredita mas que não daria nenhuma dor de cabeça, não traria nenhuma preocupação e nem o obrigaria a explicações e ao entendimento.




Quem considera difícil escapar de si mesmo, mentir e fingir para si mesmo, enganar a si mesmo, já se conhece um pouco.

Este conhecimento contém certa dose de não concordância com o encontrado, com o visto, com o descoberto.

Esta contradição recolhida e analisada revela uma realidade de ser: já se sabe algo de si e com o que se é não se concorda.

Há que mudar ou há que melhorar ou há o que acrescentar. Parte-se de algo detectado. É positivo porque é a descoberta da vida, do ser em si.

O que seria uma aparente confrontação com o descoberto, com o revelado pode-se traduzir como uma etapa, primeira ou não, de crescimento.

Não se aceitar é, antes de tudo, conhecer-se.

Conhecer é um desafio (há o querer conhecer-se) como também é uma necessidade, pois não há como realizar a natureza humana (a liberdade) sem saber o que se é. 

Escapar de si é muito mais complicado, é muito mais difícil: você, queira ou não, encontra-se consigo mesmo todos os dias, todas as noites, e não adianta prostrar-se frente a uma televisão, dentro de uma igreja, embriagar-se, drogar-se ou cair na meditação do nada.



A ilusão vem com a tentativa de escapar e com a ilusão os desvios, novas faces, novos eus, todos eles como objetos da ilusão, inventados, alguns originais, outros ricos, outros com pintadas de gênio, alguns sempre próximos do nada como um equilibrista atravessando o abismo sobre uma corda, exatamente no meio do abismo, no momento em que um vento leve agita a corda e esfria a sua pele, exatamente quando o próximo movimento não dará para você a certeza de que o melhor é um passo à frente ou um passo atrás, sabe-se apenas que um passo terá que ser dado.



A fuga é toda uma história, vai além da tentativa de escapar.


Fugir de si é a rejeição total ao descoberto, é a não aceitação do identificado.


A recusa e a fuga compõem um estranho mapa, a identificação, a revelação, o reconhecido, o confirmado é o não aceitado – eu não me aceito.

Neste mapa se tem com a recusa um ato e com a fuga, uma decisão, uma ação.

Diversa de qualquer outra fuga, como a fuga da prisão para a liberdade, a fuga de um casamento inviável, a fuga de uma vida não aceita, a fuga de si mesmo é um refazer-se.


Fingir para si mesmo, depois de tentar escapar de si, depois da tentativa frustrada de fuga, seria a última alternativa, dentro deste ciclo de conhecimento do ser.

Talvez seja a mais inteligente e a mais difícil, pois elaboraria uma outra consciência, a consciência do fingimento.

Fingir aqui, neste raciocínio, compreende a internalização de dois conhecimentos, o conhecimento de si e o conhecimento do papel que se quer acrescer e que se sabe falso.

Neste caso, fingir é fingir que se é alguém ou um personagem que se cria. Há uma escolha e neste escolha uma indicação do que se quer ser.

Haveria, talvez, a imposição de um grau de materialidade, como se, por exemplo, imaginar-se um cantor mesmo sendo mudo e isto fosse possível.

Como não se trata de uma representação teatral onde essa necessidade se imporia obrigatoriamente, na representação do eu-fingimento nada disso se faria necessário.

Posso até mesmo imaginar-me um elefante, um tigre e adquirir do elefante o andar e do tigre a ferocidade.

Isto porque não preciso comprovar para ninguém, para nenhuma platéia, o que na realidade sou e o que na realidade minha também finjo ser.

O ato de fingir incorpora elementos da representação.

Fingir, representar











(1)                Darcy Ribeiro, em 07/04/1991, no Jornal do Brasil, depois de ter recusado trocar a cadeira de senador pela de secretário da Cultura do Estado do Rio.

(Heloísa Pacheco, em e-mail, reage à opinião do mestre Darcy Ribeiro: "Não concordo, se a primeira obrigação de um homem é ser igual a si e se ele for bandido? Ele irá querer ser sempre bandido? Irá querer ser sempre mal? Defeituoso, miserável, ruim?)