FALA SEM PARAR
Marcelo Araújo Bicalho
(Ela
desfila quase nua na minha frente. Nunca estará nua. Timidez? Nada disso. Ela
esconde. Ela mostra. Ela seduz. Preliminares com competência)
Ela fala:
“Nascer.
A dor que é mais alguma coisa, que é dor e que, mais rápido, se torna,
felicidade.
“Nascer
é a primeira dor de todos.
“No
parto natural, dor da expulsão, dor do arrebentar, de rasgar, de passar, dor de
dois, em qualquer caso, a dor do choque térmico, o encontro com o frio. O
primeiro encontro com o frio. Um conhecimento de dependência, alguém terá que
garantir o aquecer.
“Qual
a intensidade dessa dor e a sua duração? Nela há medo? Se há, como se dá o
registro e sua lembrança. Medo sem lembrança, sem marca, sem cicatriz, pode ser
tudo, menos medo.
“O
frio talvez seja o primeiro grande impacto, a primeira grande dor. O peito não
irá apenas alimentar, irá aquecer. Aquecer por dentro e aquecer por fora, pele
a pele.
Julho
2004
O
Diário de Ouro Preto foi lançado, hoje, na Escola de Minas, antigo Palácio dos
Governadores.
Julho
2004
(Ela mostra a
bunda. Sabe o quando gosto de ver, pegar, acariciar.)
Ela fala:
“O enterro da minha
avó foi o fim da minha paixão
“A
casa da minha mãe era um barracão. Ajudei a construir. Eu namorava com um
professor da escola. Vivi em um lugar que era cercado de córregos e quando
chovia, tínhamos que sair para a escola de qualquer jeito. Enrolava as pernas com
plásticos. Eu chorava muito por conta das humilhações das minhas colegas.
“
Era “A menina de pé molhado”. Isto identificava também o lugar onde morava.
E eu tinha vergonha de dizer onde morava.
“Um
dia, pensei, eu sou a melhor aluna, tenho as melhores notas e sou bonita.
Sempre gostei dos desafios. O lugar e os pés molhados não me tolhiam.
“Na
rua, jogávamos vôlei e os meninos brigavam comigo, a bola sempre caia do meu
lado. Cansei de levar cocão.
“Decidi
treinar e decidi que participaria da equipe de vôlei da cidade. Consegui, ia
para os treinos entrando no ônibus e saindo correndo pela porta do fundo sem
pagar.
“No
dia em que a minha avó morreu, meu namorado, meu professor, foi em minha casa. Entrou e ficou olhando para
as telhas de amianto. Ficou olhando para cima.
“Terminei
com ele na hora.
“Ele
não olhou para mim. Ele não viu a minha dor.
(Ela
se afasta, entra na sala)
Ela fala:
“Ontem,
rodei o sul de Minas, passei por Lambari e cheguei à noite em São Tomé das
Letras, trepei adoidado.
“Trouxe
um pré-roteiro para trabalhar. Nesta viagem, várias vezes tive medo de morrer.
Primeiro que o homem dirigia mal, pouco prestava atenção na direção e fumava
muito. Na volta, voltei com um cara que veio fumando maconha de Varginha até
aqui.
(Ela
senta no meu colo e me beija)
Ela fala:
“Um
dia, ainda serei uma cineasta.
Julho
2004