quarta-feira, 12 de abril de 2017

A PENSADORA









FALA SEM PARAR





Marcelo Araújo Bicalho




(Ela desfila quase nua na minha frente. Nunca estará nua. Timidez? Nada disso. Ela esconde. Ela mostra. Ela seduz. Preliminares com competência)


Ela fala:


“Nascer. A dor que é mais alguma coisa, que é dor e que, mais rápido, se torna, felicidade.

“Nascer é a primeira dor de todos.

“No parto natural, dor da expulsão, dor do arrebentar, de rasgar, de passar, dor de dois, em qualquer caso, a dor do choque térmico, o encontro com o frio. O primeiro encontro com o frio. Um conhecimento de dependência, alguém terá que garantir o aquecer.

“Qual a intensidade dessa dor e a sua duração? Nela há medo? Se há, como se dá o registro e sua lembrança. Medo sem lembrança, sem marca, sem cicatriz, pode ser tudo, menos medo.

“O frio talvez seja o primeiro grande impacto, a primeira grande dor. O peito não irá apenas alimentar, irá aquecer. Aquecer por dentro e aquecer por fora, pele a pele.


Julho 2004

O Diário de Ouro Preto foi lançado, hoje, na Escola de Minas, antigo Palácio dos Governadores.

Julho 2004 

 

 

(Ela mostra a bunda. Sabe o quando gosto de ver, pegar, acariciar.)




Ela fala:

 

 

 

“O enterro da minha avó foi o fim da minha paixão


“A casa da minha mãe era um barracão. Ajudei a construir. Eu namorava com um professor da escola. Vivi em um lugar que era cercado de córregos e quando chovia, tínhamos que sair para a escola de qualquer jeito. Enrolava as pernas com plásticos. Eu chorava muito por conta das humilhações das minhas colegas.

“ Era “A menina de pé molhado”.  Isto identificava também o lugar onde morava. E eu tinha vergonha de dizer onde morava.

“Um dia, pensei, eu sou a melhor aluna, tenho as melhores notas e sou bonita. Sempre gostei dos desafios. O lugar e os pés molhados não me tolhiam.

“Na rua, jogávamos vôlei e os meninos brigavam comigo, a bola sempre caia do meu lado. Cansei de levar cocão.

“Decidi treinar e decidi que participaria da equipe de vôlei da cidade. Consegui, ia para os treinos entrando no ônibus e saindo correndo pela porta do fundo sem pagar.

“No dia em que a minha avó morreu, meu namorado, meu professor,  foi em minha casa. Entrou e ficou olhando para as telhas de amianto. Ficou olhando para cima.

“Terminei com ele na hora.

“Ele não olhou para mim. Ele não viu a minha dor.


(Ela se afasta, entra na sala)


Ela fala:



“Ontem, rodei o sul de Minas, passei por Lambari e cheguei à noite em São Tomé das Letras, trepei adoidado.

“Trouxe um pré-roteiro para trabalhar. Nesta viagem, várias vezes tive medo de morrer. Primeiro que o homem dirigia mal, pouco prestava atenção na direção e fumava muito. Na volta, voltei com um cara que veio fumando maconha de Varginha até aqui.

(Ela senta no meu colo e me beija)



Ela fala:


“Um dia, ainda serei uma cineasta.


Julho 2004