A
advertência
D’après Nelson Rodrigues
- Estou tenso e já estive mais tenso ainda
e com muito medo. Não sei onde encontrei coragem, diante de um quase e inevitável suicídio. Sabia quem defrontaria. O cara, além de um gigante, um brutamontes, era
famoso pela violência e pelo seu falar autoritário. Gritado.
- O fato: eu conheci uma mulher tempos
atrás, coisa de dois, três meses. Ela estava dentro do perfil de segurança,
mulher que não enche o saco, não pega no pé e que o que quer mesmo é sexo.
- Quando nós nos encontramos no consultório,
ela é dentista, ela perguntou se eu era casado, disse que não, perguntei se ela
era casada, não estava com aliança, como o ambiente e a conversa corria
descontraída, solta e com alguma irreverência. Quando ela respondeu que era
casada, eu disse que era uma pena, pois eu a convidaria para a gente passar um
fim de semana no Rio. Inventei que viajaria a trabalho. Na bucha, sem vacilar,
ela disse que sair no fim de semana, não podia. "Meu marido não aceitaria".
- Por que não sair no meio da semana ou no
meio do dia?
A partir daquele mesmo dia, passamos a
encontrarmos duas, três e até quatro vezes por semana. Anteontem nós tivemos um
desentendimento, ciúmes, ela conferiu as camisinhas e achou que eu estava
usando muitas, ela perdeu a compostura, “eu compro as camisinhas, eu não aceito
outra mulher aqui”.
Ela chorou. Tremia, tive medo de que ela
passasse mal, não sabia se ela era uma mulher doente, algum mal psíquico,
alguma neura. Controlamos, bagunçando a tarde dela. Dali, ela foi direto para a
sua casa.
Logo depois, o marido liga, queria uma
conversa urgente, não podia ser para outra hora. Consegui dobrá-lo para que o
encontro fosse outro dia. Pensei avisar algumas pessoas, arranjar um revólver,
tentei, não consegui. Nem mesmo adiar, ganhar tempo.
Marcou a hora, o local e queria que fosse
imediatamente. Como o encontro seria em um restaurante na praça ABC, fui
imaginando como me safar se ele pulasse para cima de mim ou se ele tirasse um
revólver.
Pela conversa no telefone não pressenti a
possibilidade de uma agressão e não imaginava que ele fosse capaz de armar uma
emboscada com os seus colegas de polícia.
A cabeça perdida, sem condições de
concentrar-me, decidi que iria mesmo que fosse para ser baleado ou preso, fui
dizendo uma única palavra na tentativa de concentrar-me - um mantra inútil. Tudo
inútil. A cabeça virou um tufão, tudo voava a mil, risco de vida, vida passada
a limpo.
Cheguei primeiro, vasculhei o bar, não vi
pistas de emboscada, vi a larga avenida Afonso Pena e a larga avenida Getúlio
Vargas, amplidão para largadas em todas as direções, com possibilidade de
surgirem inúmeros obstáculos caso ele fosse esvaziar o revólver. Lamentei que
não tivesse me cuidado fisicamente nos últimos tempos. Minha corrida seria de
poucos metros, correria em direção ao centro, aproveitando a descida.
Ali, estava ele na minha frente. Não vi
como ele apareceu de repente. Vi apenas que um monte de roupa descia na minha
frente, roupa que não acabava mais, um homem imenso. Fiquei calado, ele disse
alguma coisa, cumprimentando, não ouvia nada. Sentamos. Percebi que de nada
adiantara ter escolhido aquele lugar para uma retirada rápida, avenida abaixo,
minhas pernas não mais funcionavam, e ele era o dono da cena.
- Fique calmo, fique tranqüilo. Eu só não quero
que minha mulher não sofra. Você não tem o direito de fazê-la sofrer ou de
magoá-la. Quero apenas que trate bem dela, que a respeite. Não me interessa
saber nada. Vou embora, mas quero que fique bem claro, trate-a muito bem, com
respeito e por tudo o que há no mundo não a faça sofrer, porque aí a conversa
será diferente. Procure também não atrapalhar o trabalho dela.
Aquele homem imenso não falou mais nada,
levantou. Tão grande era que não parava de levantar gente e roupa. Era, era um
nunca acabar. Cumprimentou-me, despediu. Falou alguma coisa. Eu não ouvia nada.
Ele saiu. O garçom colocou dois chopes.
Eu não me lembrava de ter pedido nada.
“Ele pediu”, disse o garçom, “e já pagou”.
28 09 17