quinta-feira, 19 de agosto de 2021

DUBLIN É PORTO ALEGRE

 



Ulysses

A aventura do homem de Königsberg, Prússia Oriental

 

 

De P. J. Salitre

 

 

 

James Joyce provou, no início do século XX, com seu romance, que a histórica odisseia de Ulysses, na Ilíada, de Homero, também pode ser vivida, em um único dia, por um cidadão comum.

 

Este o resumo e o roteiro: Leopold Bloom, de Dublin, Irlanda, é o novo Ulysses. Sua Odisseia dura menos do que um dia.

 

Agora, o escritor P.J. Salitre, no final do século XX, conta a histórica odisseia vivida por um homem preso, na cela de isolamento da Polícia do Exército, em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil. (*)

 

Esta histórica nova aventura durou 45 dias.

 

Neste período de 45 dias, ele viveu a aventura de ler o Ulysses de Joyce, que não se lê em um dia, ciceroneado pelo seu carcereiro, o Pequeno General Ataualpa de Mendonça, Inimigo Mortal de Leonel Brizola.

 

 

 

 

 

Capítulo I

 

Os antecedentes da prisão. Como o jornalista Horácio Pascal liberado por um habeas corpus da prisão militar em Juiz de Fora, Estado de Minas Gerais, no sudeste do Brasil e, depois de uma dramática passagem por Belo Horizonte, empreende uma fuga em direção à fronteira sul do Brasil.

 

A fuga em direção ao Uruguai, planejada na prisão do Quartel do Regimento de Obuses, em Juiz de Fora, enquanto os militares vigiavam todos os movimentos dos presos.

 

Celas monitoradas. Conversas gravadas.

 

Acreditavam que, permitindo a fuga de Horácio Pascal, monitorando seus deslocamentos, colocariam a mão em um dos mais misteriosos e procurados dos comandantes da resistência armada à ditadura militar brasileira – e que sequer teria sido ainda identificado.

 

Dentro da cela, vistoriada, até três vezes por dia, estavam os presos políticos Moisés Kuperman, dirigente do Partido Trotkista, o matemático Bayard Demarie Boiteux, secretário geral do Partido Socialista, e o jornalista Horácio Pascal.

 

Os três e mais de 200 pessoas foram presas sob a acusação de organizarem um movimento guerrilheiro na Serra do Caparaó, na divisa dos Estados de Minas Gerais e Espírito Santo.

 

Guerrilha que não aconteceu. Outra batalha de Itararé. Mais tarde, deste episódio – a guerrilha que não houve – cresceu a convicção de que havia uma manipulação, orquestrada, criando fatos inexistentes a sustentar a repressão e o controle do Estado pelos militares e forças externas.

 

Se não tivesse guerrilha, criariam uma. A combateriam ou a manteria sob controle, certos que seriam sempre os vitoriosos.

 

O volume de informações era grande e os militares que instruíam o Inquérito Policial Militar, IPM, perceberam, através da assessoria dos serviços de inteligência do Exército, da Marinha e da Polícia Federal, que estavam próximos da captura de uma alta patente militar, ainda na ativa e que seria o responsável por uma rede de infiltração nas forças armadas.

 

Sabiam ainda que as conexões que os levariam à captura partia daqueles três presos na cela especial do Quartel do Regimento de Obuses, situado no bairro do Palmital, na periferia de Juiz de Fora.

 

As gravações indicavam que o professor Bayard temia pela sobrevivência do oficial das forças armadas e um dos quadros qualificados da resistência à ditadura militar.

 

Bayard não tinha como chegar até o oficial e avisá-lo e, como o jornalista, dos três, era o único que poderia sair da prisão naquele inquérito, ele então seria a isca.

 

Isca na visão dos militares e um aviso de perigo.

 

Monitorando as ações dos advogados de defesa, planejou-se uma troca de documentos, a partir de um pedido de habeas corpus para uma outra pessoa, cujo nome parecia com o do jornalista, para surpreender o pessoal do quartel, com uma ordem de libertação dada pelo Superior Tribunal Militar, STM.

 

O plano da comunicação com o oficial infiltrado no Exército foi elaborado pelo professor Bayard Demarie Boiteux.

 

Uma mensagem seria transmitida para um contato em Montevidéu, o coronel Emmanuel Nicoll, exilado, que, por sua vez, se comunicaria com o militar a ser avisado. 

 

O básico da mensagem cifrada era de que ele se já não foi descoberto, seria descoberto em pouco tempo e que deveria, imediatamente, passar para a clandestinidade.

 

O comando militar da ditadura concentrou seus esforços para a interceptação do militar infiltrado antes da sua fuga de um dos quartéis do Exército, assim aceitou o Plano Borra Azul, elaborado por setores da Polícia Federal, que previa a autorização para a liberação e fuga do jornalista sem suspeitas e para o monitoramento da trajetória de Horácio até o Uruguai.

 

Assim aconteceu.

 

Liberado em Juiz de Fora, ele seguiu para Belo Horizonte, surpreendendo aqueles que esperavam a fuga direto para o Uruguai.

 

Se não fosse cômico seria trágico.

 

Todos os setores da inteligência militar (inteligência? depois vamos discutir esta questão) irreconhecíveis, se engalfinhavam em discussões, tentativas de sequestro de Pascal, aborto do sequestro, garantias da sobrevivência e uma rede de superproteção.

 

Horácio Pascal tinha em seu poder um documento, cifrado, para avisar o Militar Infiltrado (também uma questão e um conceito para se discutir), mas o bilhete caso fosse apreendido agora, não significaria nada, mesmo que a mensagem fosse decifrada – jamais se saberia a identidade do destinatário.

 

Este era o nó da questão.

 

Tinham que seguir as pontes, isto é, os vários destinatários, os contatos, até que o conteúdo do bilhete fosse do conhecimento do principal destinatário, o Militar Infiltrado – aí a identificação e a prisão.

 

Um setor contrário a fuga de Horácio Pascal e que defendia a apreensão do bilhete, sua decifração e a coopção violenta de Pascal entrava em profunda crise de comando, enquanto o Homem Vigiado envolvia-se em aventuras não tão revolucionárias quanto as imaginadas pelos coronéis.

 

Tudo isto aconteceu no mês de junho.

 

Logo, ao sair da prisão, através da falsificação de papéis, Horácio Pascal procurou o seu irmão, Armando Fuentes Pascal. Não fugiria correndo. Nem mesmo sabia quando viajaria para o Uruguai, onde estava a sua mulher.

 

Armando encontrava com uma mulher casada, Marlene, cujo marido vivia bêbado. Este marido era um cara magro, cara emaciada e voz confusa.

 

Foi quando Horácio conheceu Márcia Miranda, mulher de um médico famoso em Belo Horizonte, cuja clínica era a mais concorrida da cidade, o doutor Wanderley Garrido. Outro marido bêbado e drogado, também cara amaciada e voz confusa.

 

Ela, filha de banqueiro.

 

Márcia e Horácio não tinham hora, nem lugar e iam para cima de todos os desafios imaginados. Ia para o apartamento de Márcia, na rua dos Guajajaras esquina de rua da Bahia. Edifício do Rotary Club.

 

Horácio entrava e saia pela porta dos fundos, sob os olhares dos empregados do doutor Wanderley. Deitavam em uma suíte contígua à suíte do casal, com Wanderley escornado na cama, dormindo com as duas filhas.

 

Numa festa de mais de 200 convidados, na casa da socialite Dorothéia Michaelis, transaram no banheiro, provocando uma fila enorme. Cena que se repetiria em Brasília com o deputado que se tornaria presidente.

 

Já próximo de sua viagem, Horácio comunicou a Márcia que desapareceria por uns tempos ou para sempre.

 

Um dia antes do embarque, Márcia desmaia na porta da casa da mãe de Horácio, na rua Safira, no Prado, deixando uma mancha de sangue na parede branca.

 

Susto, correria. Ela cortara os pulsos. Tentativa de suicídio.

 

No hospital Felício Rocho, o médico da família revela para Horácio, que “ela simulara aquele suicídio”. Para o doutor Wanderley, o marido, disseram que “a sua mulher vive uma difícil crise existencial”.

 

Ela propôs a separação e pediu a Horácio para não viajar na transição para a nova residência.

 

Marido bêbado e o pai banqueiro acharam que era uma decisão intempestiva, precipitada, uma loucura. Não dariam apoio à ideia da separação.

 

Para o pai, a bebida não seria motivo suficiente para a separação. Para o marido, sua mulher era uma verdadeira mulher, fiel, carinhosa e responsável.

 

Ela alugou um apartamento na esquina da rua da Bahia com avenida Amazonas, quarto andar que correspondia ao sétimo andar (os três primeiros eram de lojas, escritórios e garagem, em um dos andares funcionava o Tribunal de Justiça Militar da PMMG).

 

O detalhe da altura é importante.  

 

Dias depois da mudança, as duas meninas, filhas do casal, intoxicaram-se ao brincar com uma mala de remédios, lotada de comprimidos.

 

Márcia encontrou as duas contorcendo-se, bocas e faces coloridas. A partir daí o pai banqueiro deu sua decisão. Ou Márcia acabava aquela história com Horácio ou ele mandava matar Horácio.

 

Passou a dar incertas no apartamento, sempre ameaçador e violento.

 

Um dia, quando transavam, ao abrir a porta, para saber quem tocava a campainha, Márcia deu de cara com o pai, com um revólver na mão.

 

“Eu não vou mandar matar, eu vou matar..”

 

Enquanto Márcia tentava segurar a porta e conter o pai, grita para Horácio fugir, ele, de cueca e com a camisa e a calça na mão, decidiu passar por fora da janela do apartamento.

 

Fechou a porta do quarto e foi para a janela. Enquanto arrombava a porta do quarto, teria tempo para pular na sala e correr.

 

Equilibrando-se, perigosamente, sobre a pequena murada da janela, que dava para a rua da Bahia, Horácio esperava o momento de pular para dentro da sala.

 

Na rua, as pessoas paravam. Especulavam sobre o que acontecia e o provável desfecho.

 

Do outro lado, no prédio frontal, um grupo gritava para que ele não pulasse. Outro grupo, para que pulasse.

 

A princípio, Horácio pediu silêncio. Em vão. Percebeu que o pai de Márcia ouviria a gritaria e pararia de bater contra a porta do quarto.

 

Sem saída, Horácio pulou sobre o pai banqueiro. A arma voou longe, e ele saiu correndo.

 

No primeiro andar, uns rapazes deram-lhe abrigo, escondendo-o da fúria criminosa. Assim, ele escapou da morte certa e sem perdão.

 

Em um lugar de Belo Horizonte, escondido e seguro, tendo escapado, no tumulto, da vigilância dos seus protetores, assassinos e torturadores, Horácio Pascal elaborou a rota de fuga em direção ao Uruguai.

 

Passaria por São Paulo. Queria assistir a peça de Shakespeare, Sonhos de uma noite de verão. Dirigida por Haydée Bitencourt para o Teatro Universitário da UFMG. O “Sonhos” fora a sua primeira experiência como estudante de teatro e ator.