terça-feira, 12 de outubro de 2021

TAMBÉM ENVERGONHO-ME





 

O EXERCÍCIO DOS VERSOS



Rufino Fialho Filho

 

O poeta Affonso Romano de Sant’Anna diz que se debruçou por cinco anos sobre o poeta Carlos Drummond de Andrade. 

Depois que o segundo poeta morreu, passou a escrever, como se fosse o segundo poeta, em jornais, assim de um jornal para o outro, acabou fixando espaço em O Globo.

 Continua ainda sem saber escrever como o outro poeta escrevia. Enfim, exercita-se. De sua meia-página de O Globo, em meio a monumentais porcarias, extraio algumas preciosidades:

 

 

 

Affonso Romano de Sant’Anna, em O Globo, 01.12.99

 

....Mario Benedetti, poeta vencedor do Prêmio Reina Sofia 1999, promovido pela Universidade de Salamanca, identificado com personagens e revoluções socialistas no continente, muitos de seus poemas viraram canções.

 

...entre os poetas cogitados para o prêmio... Juan Gelman que, após uma luta solitária, finalmente identificou os militares argentinos-uruguayos que mataram-lhe o filho e a nora, sequestrando-lhe o neto.

 

 

Monstros,

Mario Benedetti

 

Que vergonha

 

careço de monstros interiores

 

Não fumo cachimbo diante do horizonte

 

em todo caso creio que meus ossos

 

são importantes para mim e minha sombra

 

nos sábados de noite me encho de coragem

 

meu nariz que vergonha não é como o de 


Goethe

 

não posso arrepender-me de minha 


melancolia

 

e esqueço quase sempre que 


o suicídio é gratuito

 

que vergonha me encantam as mulheres

 

sobretudo se são consequentes e magras

 

e não confundem sede com paroxismo

 

que vergonha meu deus 


não gosto de Ionesco

 

no entanto estou falto de monstros interiores

 

gostaria de prometer como deus manda

 

e vacilar como a gente em prosa

 

que vergonha nas tardes que vergonha

 

nas tardes mais escuras de inverno

 

gosto de acomodar-me na janela

 

ver como a chuvinha afasta meus credores

 

e por-me a esperar ou talvez a esperar-te

 

como se a morte fosse um alarme”.

 

 

 

 

Depois de Benedetti:


 

Aí, cara pálida, 


eu voltei de um outro mundo. 


Estive comigo, horas e horas. 


Passei mal. 


Vomitei. 


Senti cheiros horríveis