A aula
inesquecível
Aulos,
Agripa e Everaldo puseram na telha que deveriam levar aquele “leitor” de
filósofos para dar uma aula.
NA CONTRA-MÃO
Para onde vão os filhos e as árvores
Ao sair da avenida Brasil e entrar na
rua Padre Marinho, logo depois do posto, o carro na fila dupla e na minha mão
impedia a passagem. O motorista na fila dupla brigava com uma mulher que saiu
do carro.
A opção era a contra mão. Esperei um
pouco e quando o movimento na contramão reduziu, entrei. Neste momento, o cara
que brigava com a mulher arrancou e quase batemos.
Eram 17h30m.
Tempo mais para escuro, mais para o
anoitecer que chegava.
Algumas pessoas gritam e alertam para
o choque que não aconteceu. Buzinei. Parei mais na frente.
- Cuidado
Quem gritou foi o Taquinho.
- Cara você ia bater!
- Se tivesse batido, o errado seria
eu. Devia ter esperado a briga, o casal se desentender de vez ou se entender.
- Se batesse na contramão, o erro
seria seu mesmo
- Se ele batesse em mim, o erro seria
meu também.
Taquinho fala que mudou a oficina para
a garagem ao lado da sapataria para onde eu voltava, hora marcada, para buscar
os sapatos e os novos saltos de Bela e Quel.
Taquinho tinha uma oficina
especializada em rádio para carro e a sua oficina era na rua Manaus, três
quarteirões dali. Estranhei ele estar ali.
- Mudei
Pediram o ponto. Antes dele, o
sapateiro Seu João fechara seu ponto de mais de 50 anos.
- Pediram o ponto, devem demolir a
área.
Taquinho me mostrou a sua nova loja,
uma garagem ampla e coberta.
Na outra loja, havia também uma
garagem, necessária para a sua oficina, estacionamento e serviços, sempre
rápidos, consertar rádios, instalá-los. Nos testes, o som sempre alto.
Naquela tarde, antes, quando levei os
sapatos, um senhor, com um livro surrado na mão, permitiu que eu estacionasse
na frente da sua garagem. De outras vezes, ele me autorizara certo de que minha
passagem era sempre rápida. Seria o dono da garagem? Não era. Disse que podia
ir tranquilo que avisaria ao pessoal da garagem onde eu estava. Chamar-me-ia.
Jogo rápido. Deixei os sapatos.
Voltaria às 17h30m para buscá-los.
O livro nas mãos do senhor Velho era
de filosofia.
- O senhor gosta de filosofia?
- Gosto. É a minha vida. Tenho uma
biblioteca selecionada. Não estudei filosofia na escola. São importantes estes
cursos de quatro anos. Sei que são. Você aprende filosofia e depois ensina. A
filosofia que sei e que quero é para mim e eu sei os meus caminhos. Lia
filosofia aprendendo língua. Francês, por exemplo.
Aí pergunto.
- O que é filosofia?
- O que é filosofia? O que é ser
filósofo?
Mais baixo, ele se colocou na minha
frente.
Seguro, confiante, cheio de disposição
disse que iria me responder nas palavras de um filósofo francês.
- Para este francês, a filosofia é a
arte de reaprender a ver o mundo.
Devo ter feito uma cara de
interrogação. Algo como não entendi. Ou... e aí?
Ele foi pronto, rápido.
- Imagine que uma filha, filha única,
que more com o Velho Pai. Uma vida toda de grande e profunda amizade e
admiração entre os dois. Um dia, esta filha comunica que iria morar numa
república de estudantes com outras três colegas. Em outro tempo, um pai se
julgaria abandonado, julgaria a filha como uma devassa, uma mulher atrás da
orgia e disposta a jogar sua juventude onde o prazer lhe viesse farto, diário,
sem compromissos. Como na música do Cartola. Outro pai, outro tempo, pensaria
que a filha se prostituiria ou, melhor hipótese, seria iludida por amores
fúteis e fugazes. Cartola, de novo. Outro, mataria a própria filha certo de que
evitaria para ela sofrimentos inimagináveis. Outro pensaria no abandono, na
ingratidão, uma filha que abandona o pai para viver uma vida... incerta.
....
Fizemos silêncio. Ele se refez.
- Filosofia é isto, filosofia é reaprender a ver o mundo. O mundo é dinâmico. Eu vejo o mundo. Você vê o mundo. Um matemático também é capaz de ver e calcular o mundo. E o mundo é um aprendizado. É um descobrir-se. Todos os dias o mundo pode nos surpreender e nos fazer melhores, mais compreensíveis, mais magnânimos, mais ambiciosos e mais sábios, inteligentes, capazes de deslumbrar-se.
Ele se preparou para concluir.
- E quem é o filósofo? O filósofo é aquele
que desperta e fala.
- Quem é o francês?
- Merleau-Ponty.
Disse que pegaria papel e caneta.
- Vou anotar estas duas definições.
Como é o nome do filósofo?
- Merleau-Ponty. Mer... ele, depois as
vogais a, e e u.
- X?
- X não. E o Ponty é com y. A
pronúncia é diferente de Ponti com i, o y fecha.
Ele pegou o papel.
- Vou escrever. Quem me introduziu na
filosofia de Merleau-Ponty foi minha professora de francês. Sei da bobagem da
exigência da pronúncia perfeita. Vale o pensar. A melodia do som das palavras
francesas soa bem em nossos ouvidos de palavras portuguesas. Isso foi o nosso
vício, fez nossa intelectualidade, a beleza de alguns idiomas está na
sonoridade, francês, italiano, o grego. O grego soa como o nosso português. Uma
língua que nos surpreende e nos captura, nos engana.
Este encontro com o amigo de
Merleau-Ponty foi duas horas antes do encontro com Taquinho.
A garagem e a nova oficina de Taquinho
parecia mais espaçosa e aquele início da rua, quase esquina com a avenida
Brasil, dará uma nova dinâmica para o trabalho e o negócio de Taquinho.
- Na outra oficina, o apartamento era
em cima. Você morava onde trabalhava. E agora?
Mudara para o apartamento dos irmãos.
- É o apartamento dos meus pais e hoje moramos lá quatro irmãos. Todos solteiros. O mais novo tem 45 anos e todos trabalham.
Conto a história deste Velho para um
amigo que me liga.
Envolvido com seu escritório de
advocacia, ele quer ser objetivo e ir direto na informação que me passará para
que eu divulgue. Uma informação exclusiva. Negociata do governador na
construção da nova sede, preço alterado nas instalações elétricas.
Conto a mesma história do Velho
Estudante de Filosofia para a Mulher Alta. Ela está mais interessada em saber
notícias do Taquinho e seu novo endereço. Precisa consertar o rádio do carro.
Começo a contar a história para a
Mulher Magra. Ela entala.
Na tv, aparece um homem e um lugar. O
homem é apresentado como um Plantador de Árvores. Milhares de árvores. O lugar
é Hortolândia, em São Paulo. Lugar de muitas árvores e muitas flores.
A câmara mostra o quintal, inúmeras
árvores, seriam milhares, todas plantadas por ele. Quintal limpo. O Homem
Triste daquele quintal florido fala devagar.
- Sempre sonhei em conhecer este
lugar, Hortolândia....- diz a Mulher Magra Engasgada.
Ela repete algumas informações e
conceitos ambientalistas e fala da beleza de vida daquele homem.
Olho de novo o rosto triste do Homem
Triste.
- Ele plantou cada árvore, ele cuida
de tudo. Viu a beleza e a limpeza do lugar?
A Mulher Magra hoje está sozinha.
Filhos casados vivem em lugares diferentes e distantes. Os encontros são sempre
felizes, em ocasiões festivas, programadas, programas sempre caros e rápidos.
As histórias são “fantásticas”.
- Ela também é uma Mulher Triste.
Ainda passa pela fase de muito sexo e
muitas descobertas. Volto à história do Filósofo da Rua Padre Marinho.
Desta vez, centro na história que
serviu de exemplo para o conceito de filosofar, reaprender a ver o mundo.
- Reaprender? – ela quer voltar a
tocar violão e terá que reaprender.
- Aquele Plantador de Árvores planta,
planta e sabe muito sobre a arte de plantar árvores, mas você observou que ele
é um Homem Triste?
Ela se surpreende com a minha
observação, confirma que aquele homem, que poderia ser um Homem Feliz, era na
verdade um homem de rosto profundamente triste.
- Todos os filhos dele moram no
exterior.
Ele cala. Ela conhecia a história do
Homem Triste.
- Não plantou filhos
- Filhos não se planta, não se fixa,
não se prende, filho não é vegetal, não é árvore.
- Não cultivou filhos
Ela para sua caminhada em direção à
cozinha.
- Ninguém cria filhos para si, filho é
para o mundo.
- Suas árvores não dão a ele a alegria
e nem fazem dele um Homem Alegre. Filho, gente, pessoa é que faz a pessoa,
gente, pai, filho, feliz. Por que os filhos foram embora? Por que os filhos
fugiram das sombras das árvores? Por que os filhos correram para longe, para
tão distante, que a hipótese da presença é acidental e improvável.
- Você está sempre atrasado, está
sempre correndo para algum lugar.
(Ela está na cozinha)
Repito a última definição do Velho
Filósofo da Rua Padre Marinho:
-
O filósofo é aquele que desperta e fala.
- O Homem Triste de Hortolândia planta
árvores. Jamais plantaria filhos. Ele sabe disso.
- Por isso, ele é um Homem Triste?