segunda-feira, 6 de outubro de 2025

 




Deus é insensato

“A harmonia entre pensamento e realidade...” CRÉDITOS: Freepik



Adalberto Nunes (*)


Depois das palmas calorosas de todos, Werner Spaniol, nosso professor de Lógica, com vasta obra sobre a filosofia de Wittigenstein, desce cofiando sua barba branca.


Parou na passagem, fora do prédio e, de costas para uma árvore frondosa, com cinco estudantes em volta, contou-nos a seguinte historinha como despedida:


“Dois filósofos estavam em um jardim, como este, e um deles apontou para uma árvore (Werner aponta para o vazio e eu olho; a árvore mais próxima é a que está atrás dele, para onde ele aponta não existe uma árvore próxima. Mais distante vejo as copas de uma árvore sobre os telhados).


“Isto é uma árvore”, afirmou um dos filósofos, continua Werner.


“Este filósofo analisava uma proposição e o seu significado de verdade.


“Isto é uma árvore”, insistia Werner a apontar para o vazio.


O jardineiro aproxima-se do grupo. Está assustado. Werner esclarece-o.


– Não se preocupe, nós estamos apenas filosofando.


Agora, a discussão.


Era o segundo dia do Colóquio Filosófico, organizado pelos alunos do Centro de Estudos Superiores da Faculdade de Filosofia da Companhia de Jesus, em Belo Horizonte. Durante quatro dias seria discutida a seguinte questão:


“É possível fazer afirmações verdadeiras sobre a realidade, ainda que sua validez não possa ser testada empiricamente?”


 Ainda segundo a proposta, se faria “uma abordagem tomando como caminho as respostas de Platão a Apel, passando por Wittigenstein, e considerando suas respectivas críticas”.


O professor Werner Spaniol terminara a primeira parte da exposição em que pontuou sua observação de que se faria uma análise do uso predicativo dos conceitos de verdade e de verdadeiro, considerando as possibilidades de “…se é possível fazer afirmações…”


Ele repassa a questão da possibilidade de conhecer a verdade, acentuada a partir de Descartes, coloca o problema epistemológico sobre  “o que se entende por verdade” e lembra que é recente a questão da possibilidade de enunciar afirmações que possam ser verdadeiras ou falsas.


A abordagem lógica e conceptual deságua nas teorias da verdade, que formulam, por sua vez, diferentes concepções do conceito de verdade.


“A maioria dos pensadores concordam em que a verdade consiste na sua concordância com a realidade, através da relação existente entre a afirmação, o juízo e a sentença com a realidade. A diferença entre as diversas teorias sobre a verdade concentra-se no explicar o “como”.

Werner relaciona as principais teorias da verdade:


1. A Teoria da Abstração, em que os conceitos abstratos (mesa e flor, por exemplo, que estão ali na nossa frente) produzem afirmações como:


– A flor está sobre a mesa


A conexão dos conceitos foi produzida pelo intelecto, que captou a essência da mesa e a essência da flor para fazer a afirmação.


2. A Teoria Empirista considera que não existem os conceitos abstratos, mas a possibilidade de formar imagens, é a imagem da mesa e a imagem da flor que permitirão se produzir a observação contida na afirmação.


3. A Teoria do Atomismo Lógico gestada por Wittgenstein elimina esta ponte, só há a conexão entre a realidade e os átomos, os fatos. A mente capta os átomos mesa e flor que não são considerados nomes próprios. A mente faz o trabalho (estabelece) a conexão da palavra (nível da linguagem) e o objeto (atômico). O objeto lógico é simbolizado pelos nomes próprios existentes na língua (linguagem).


Aqui um primeiro questionamento:


– Não é com a linguagem que a gente pensa?


Werner Spaniol responde:


– O objeto está aqui (ele aponta para a mesa e a flor). Ele não está na minha cabeça. Ele não está na palavra. Só que você deixou de falar outras coisas, você escondeu e não falou.


O sorriso de Werner e a contundência tranquila:


– A flor está sobre a mesa.

Ele afirma e observa, apontando para fora da sala de aula, para o lado de fora, para depois da porta fechada:


– Está lá fora a frase.


É a distância entre a realidade e a linguagem.


Ele agora entra na questão da verdade e a realidade. A primeira dificuldade é apontada pelo grupo empirista, o Grupo de Viena, que relaciona os Fatos e os Enunciados colocando-os em paralelo. Os fatos constituem a realidade do mundo e os enunciados a realidade linguística, a realidade dos conceitos.


Pode-se fazer um paralelo entre a cor da flor e a flor da mesa, entre o tamanho da porta e o tamanho da janela. Existe algum sentido. Como comparar, entretanto, o tamanho da janela com a cor da flor?


Outras dificuldades surgiram e, entre elas, o questionamento da correspondência.


– Se a verdade consiste na correspondência entre afirmação e realidade. É verdadeira quando concorda com a realidade.

– Com que realidade.


De onde se extrai o fato? 


Há, então, a fuga da ideia de correspondência. Se o problema está na correspondência busca-se a coerência, daí a Teoria da Coerência em que se busca uma harmonia entre o pensar e a realidade.


Da língua – está na linguagem.


Quem diz é a própria afirmação. Um círculo vicioso que pode ser figurado na história do telefonema quando uma pessoa liga para outra e pergunta:


– De onde fala?


E a outra pessoa responde:


– Do número que você ligou.


Não é a realidade que falo – é a minha afirmação que me diz.


De Wittigenstein, ele cita


“A harmonia entre pensamento e realidade…”


O conceito é de G. Hallett, um norte-americano que deu aulas na Gregoriana e que agora voltou para os EUA. A questão é de Wittigenstein.


A verdade repousa numa correspondência que coloca em paralelo as palavras e a realidade, os conceitos e a realidade, os juízos e a realidade, as palavras, os conceitos e os juízos, de um lado, e os fatos do mundo, as coisas do mundo, a realidade, de outro lado.


– A palavra vermelha como é usada, normalmente, pelos falantes da língua? Como ela é usada?


Pergunta Werner.


– Qual o significado da palavra vermelha?


– O que é ser vermelho? É não ser azul?


– Como ela, a palavra vermelha, é ensinada?


– Não há como ver – afirma Werner.


– No aprendizado da palavra vermelha, a cor está presente (o vermelho) pela ausência (não é azul).


Afirma Werner.


Um passo a frente, agora.


– O uso da língua é que faz o ensinamento e a verdade consiste na correspondência do uso na ocasião e do uso estabelecido na língua e o fato atomizado.


Olhar para a língua e ver um fenômeno que é comum na língua.


– Os significados não são atômicos.


A palavra mesa não é uma significação para o objeto, basta levar a mesa para uma tribo primitiva que jamais usou, fez ou conhece uma mesa, mesa não significa mais


É neste sentido que as palavras são atômicas e que a palavra mesa não terá significação para o objeto.


Uma palavra se sustenta muitas vezes quando está amparada por outras palavras (ou pela palavra rival)


 Deus é sábio                            e                   Deus é estúpido


 Deus é sábio                            e                   Deus é insensato


(pode ser a mesma coisa)


Aí a senha para a grande discussão da tarde e para o final apoteótico que vimos no início


Isto será verdadeiro se o emprego da palavra mais se aproximar do uso do que de palavras rivais (sábio/estúpido, sábio/insensato, sábio/estulto).


A frase toma um sentido mais preciso na sentença trans-empírica.


Pausa para reflexão dentro da palestra, durante a palestra:


Um parêntese


Dobro sobre a mesa e chamo a atenção do Paulo Roberto para a sacralização da sentença política mineira que garante que o que vale não é o fato, mas a versão do fato.


Isto é política pura. Paulo pontifica.


(Da minha cabeça não sai a obra de Espinosa sobre a função da gramática judaica – obra que não li senão por aproximações).


O importante não é a verdade, mas a versão que damos da realidade

A linguagem limita, impede, destrói a verdade ou constrói uma verdade (uma versão da realidade)


ou…a verdade não é singular, é plural, são muitas as verdades possíveis diante dos fatos da realidade, onde ganha força a questão da versão no pensamento político e nas análises sociológicas das pesquisas do dia a dia da realidade e da vida virtual, a verdade impede a categórica afirmativa ou pelo menos não a impõe.


Fechando o parêntese e voltando à sala de aula.


Agora, de volta ao uso estabelecido (que se dá na língua) e o uso na ocasião.


– A caneta é vermelha.


Qual o critério, como vai se chegar a definir a verdade a partir de se saber como se dá, qual o critério, para a definição do uso estabelecido, para se saber o uso na ocasião?


A pergunta é do seminarista africano, no fundo da sala.


Werner é categórico.


– Conhecendo a língua, o uso é o uso da língua, conhecendo as palavras da língua e seus significados. Qual é o código que se está usando?


Do fundo da sala, volta a insistente afirmação de como se codifica e decodifica o vermelho em outras línguas, vermelho, red, rouge são significados para o mesmo vermelho.


Questão ainda colocada de lado. Ela voltará.


Na frente da sala, bem debaixo de Werner, um outro africano observa:


– Não é possível, então, com a língua fazer metafísica?


E Werner sorri, leva as duas mãos ao rosto – é a sua resposta.


– Não é possível a metafísica?


Do fundo volta.


– Nas várias línguas vermelho, red, vermelho e red – o que é vermelho?


Língua é gramática, sintaxe, palavra e realidade, traduzir a palavra basta na língua, em um nível mais básico tudo é comum para o ser humano.


O que é comum?


Dor


Fome


Sexo. O básico


Não é possível elaborar uma metafísica com a linguagem.


O que nos referimos quando tratamos do trans-empírico?


Trans-empírica ————— metafísica


Lá vem a questão de um aluno à esquerda:


– A realidade está dentro da linguagem…


(lembro-me de Marx, das teses sobre Feuerbach)


… a linguagem está dentro da realidade????


A voz clara e pausada vem do fundo mais uma vez:


– O que é vermelho? Red, vermelho, rouge… Nem sempre qualquer termo da linguagem pode ser aplicado a deus, ao deus cristão, só o positivo, nunca o negativo, deus é sábio, no conceito positivo pode-se ser mais ou menos sábio. Não se pode abordar o deus cristão com qualquer exposição negativa. Não se pode usar o negativo para se analisar e tratar da questão deus.

Ao contrário se chegou ao tirar os limites, mas também não se pode conceber o infinito, não há infinito, há limites.


Werner ouve e há em seu rosto seu eterno sorriso. É um filósofo alegre.


“Estamos apenas filosofando”, disse o filósofo ao jardineiro. Não somos loucos, somos mais que isto.


– Uma é mais precisa se tem uma ideia mais clara


(Tirar os limites. Deus é sábio……………………………………………………………………………espicha, espicha……………………………………………………… Deus é insensato…………….)


A voz forte, clara, é a voz da autoridade. Ela volta:


– Não se pode usar o insensato.


Silêncio. Em Werner, o sorriso é Werner.


– Não é válido dizer de deus, um deus cristão, uma afirmativa negativa.


Um aluno observa que o pressuposto é o sentido trans-empírico e que a afirmativa pode ser extraída da negação, aí serão duas as negações, nem sábio e nem insensato, extrai-se toda a antropomorfização, extrai-se a linguagem, extrai-se tudo. O critério do rival é válido, mas insuficiente, sem a extensão.


(Como explicar a extensão, como entender o limite e como entender o infinito, seria a explicação pelo oposto, pelo termo rival, total abertura linguística, não há expressão pura, senão aproximações, pela linguagem).


Silêncio na sala do segundo andar, 16h33,


26 de abril, quarta-feira.


As palmas explodem, Werner sorri, as palmas continuam, Werner, magrelo, barba branca, cofiando a barba caminha em direção à porta, as palmas continuam, são mais fortes, não se interrompem, Werner caminha, Werner sorri. De quê o Werner sorri? Fecho os meus cadernos e vou me despedir e cumprimentar o Werner. Eu sei de quê Werner sorri? Werner está a sorrir da nossa sã ignorância. Do nosso louco filosofar.


 – Estamos apenas filosofando, disse o filósofo para o jardineiro.


Imagino o que se passa na cabeça do jardineiro, certamente ouviu e entendeu uma afirmativa verdadeira e categórica.


– São uns malucos, uns loucos… Não existe árvore onde eles apontam.



(*) Adalberto Nunes é jornalista