quinta-feira, 22 de outubro de 2009

DEUS É INSENSATO



A mais longa tarde de Werner Spaniol, 
o padre

Depois das palmas calorosas de todos, Werner Spaniol, nosso professor de Lógica, com uma obra sobre a filosofia de Wittigenstein, desceu cofiando sua barba branca. Parou na passagem, fora do prédio e, de costas para uma árvore frondosa, com cinco estudantes em volta, contou-nos a seguinte historinha como despedida:

- Dois filósofos estavam em um jardim, como este, e um deles apontou para uma árvore (Werner aponta para o vazio e eu olho; a árvore mais próxima é a que está atrás dele, para onde ele aponta não existe uma árvore tão próxima; mais distante vejo as copas de uma árvore sobre os telhados) . “Isto é uma árvore”, afirmou um dos filósofos, continua Werner contando a história. Ele, um dos filósofos, analisava uma proposição e o seu significado de verdade.

- “Isto é uma árvore”, afirmava, apontando para o vazio, quando por eles passa o jardineiro que olha assustado para os dois. Um filósofo chama o jardineiro e esclarece.
- Não se preocupe, nós estamos apenas filosofando.

Agora, a discussão

Era o segundo dia do Colóquio Filosófico, organizado pelos alunos do Centro de Estudos Superiores da Faculdade de Filosofia da Companhia de Jesus, em Belo Horizonte. Durante quatro dias seria discutida a seguinte questão: “É possível fazer afirmações verdadeiras sobre a realidade, ainda que sua validez não possa ser testada empiricamente?” (*)

Ainda segundo a proposta, se faria “uma abordagem tomando como caminho as respostas de Platão a Apel, passando por Wittigenstein, e considerando suas respectivas críticas”. O professor Werner Spaniol havia terminado a primeira parte da exposição em que pontuou sua observação de que se faria uma análise do uso predicativo dos conceitos de verdade e de verdadeiro, considerando as possibilidades de “...se é possível fazer afirmações...” Ele repassa a questão da possibilidade de conhecer a verdade, acentuada a partir de Descartes, coloca o problema epistemológico sobre “o que se entende por verdade” e lembra que é recente a questão da possibilidade de enunciar afirmações que possam ser verdadeiras ou falsas.

A abordagem lógica e conceptual deságua nas teorias da verdade, que formulam, por sua vez, diferentes concepções do conceito de verdade. “A maioria dos pensadores concordam em que a verdade consiste na sua concordância com a realidade, através da relação existente entre a afirmação, o juízo e a sentença com a realidade. A diferença entre as diversas teorias sobre a verdade concentra-se no explicar o “como”.

Werner relaciona as principais teorias da verdade:

1. A Teoria da Abstração, em que os conceitos abstratos (mesa e flor, por exemplo, que estão ali na nossa frente) produzem afirmações como:
- A flor está sobre a mesa
A conexão dos conceitos foi produzida pelo intelecto, que captou a essência da mesa e a essência da flor para fazer a afirmação.

2. A Teoria Empirista considera que não existem os conceitos abstratos, mas a possibilidade de formar imagens, é a imagem da mesa e a imagem da flor que permitirão se produzir a observação contida na afirmação.

3. A Teoria do Atomismo Lógico gestada por Wittgenstein elimina esta ponte, só há a conexão entre a realidade e os átomos, os fatos. A mente capta os átomos mesa e flor que não são considerados nomes próprios. A mente faz o trabalho (estabelece) a conexão da palavra (nível da linguagem) e o objeto (atômico). O objeto lógico é simbolizado pelos nomes próprios existentes na língua (linguagem).

Aqui um primeiro questionamento:
- Não é com a linguagem que a gente pensa?

Werner Spaniol responde:
- O objeto está aqui (ele aponta para a mesa e a flor). Ele não está na minha cabeça. Ele não está na palavra. Só que você deixou de falar outras coisas, você escondeu e não falou.
O sorriso de Werner e a contundência tranqüila:
- A flor está sobre a mesa.
Ele afirma e observa, apontando para fora da sala de aula, para o lado de fora, para depois da porta fechada:
- Está lá fora a frase.
É a distância entre a realidade e a linguagem.
Ele agora entra na questão da verdade e a realidade. A primeira dificuldade é apontada pelo grupo empirista, o Grupo de Viena, que relaciona os Fatos e os Enunciados colocando-os em paralelo. Os fatos constituem a realidade do mundo e os enunciados a realidade linguística, a realidade dos conceitos.
Pode-se fazer um paralelo entre a cor da flor e a flor da mesa, entre o tamanho da porta e o tamanho da janela. Existe algum sentido. Como comparar, entretanto, o tamanho da janela com a cor da flor?
Outras dificuldades surgiram e, entre elas, o questionamento da correspondência.
- Se a verdade consiste na correspondência entre afirmação e realidade.
É verdadeira quando concorda com a realidade.
- Com que realidade.
Há, então, a fuga da idéia de correspondência. Se o problema está na correspondência busca-se a coerência, daí a Teoria da Coerência em que se busca uma harmonia entre o pensar e a realidade.
De onde se extrai o fato?
Da língua - está na linguagem.
Quem diz é a própria afirmação. Um círculo vicioso que pode ser figurado na história do telefonema quando uma pessoa liga para outra e pergunta:
- De onde fala?
E a outra pessoa responde:
- Do número que você ligou.

Não é a realidade que falo - é a minha afirmação que me diz.
De Wittigenstein, ele cita
“A harmonia entre pensamento e realidade...”
O conceito é de G. Hallett, um norte-americano que deu aulas na Gregoriana e que agora voltou para os EUA. A questão é de Wittigenstein.
A verdade repousa numa correspondência que coloca em paralelo as palavras e a realidade, os conceitos e a realidade, os juízos e a realidade, as palavras, os conceitos e os juízos, de um lado, e os fatos do mundo, as coisas do mundo, a realidade, de outro lado.

- A palavra vermelha como é usada, normalmente, pelos falantes da língua? Como ela é usada?
Pergunta Werner.
- Qual o significado da palavra vermelha?
- O que é ser vermelho? É não ser azul?
- Como ela, a palavra vermelha, é ensinada?
- Não há como ver - afirma Werner.
- No aprendizado da palavra vermelha, a cor está presente (o vermelho) pela ausência (não é azul).
Afirma Werner.

Um passo a frente, agora
- O uso da língua é que faz o ensinamento e a verdade consiste na correspondência do uso na ocasião e do uso estabelecido na língua e o fato atomizado.
Olhar para a língua e ver um fenômeno que é comum na língua.
- Os significados não são atômicos.
A palavra mesa não é uma significação para o objeto, basta levar a mesa para uma tribo primitiva que jamais usou, fez ou conhece uma mesa.

É neste sentido que as palavras são atômicas e que a palavra mesa não terá significação para o objeto.
Uma palavra se sustenta muitas vezes quando está amparada por outras palavras (ou pela palavra rival)

Deus é sábio e Deus é estúpido
Deus é sábio e Deus é insensato
(pode ser a mesma coisa)

Aí a senha para a grande discussão da tarde e para o final apoteótico que vimos no início

Isto será verdadeiro se o emprego da palavra mais se aproximar do uso do que de palavras rivais (sábio/estúpido, sábio/insensato, sábio/estulto).
A frase toma um sentido mais preciso na sentença trans-empírica.

Pausa para reflexão dentro da palestra, durante a palestra:

Um parêntese

Dobro sobre a mesa e chamo a atenção do Paulo Roberto para a sacralização da sentença política mineira que garante que o que vale não é o fato, mas a versão do fato.

Isto é política pura.

(Da minha cabeça não sai a obra de Espinosa sobre a função da gramática judaica - obra que não li senão por aproximações).

O importante não é a verdade, mas a versão que damos da realidade
A linguagem limita
impede
destrói
a verdade

ou constrói uma verdade (uma versão da realidade)
ou...a verdade não é singular, é plural, são muitas as verdades possíveis diante dos fatos da realidade, onde ganha força a questão da versão no pensamento político e nas análises sociológicas das pesquisas do dia a dia da realidade e da vida virtual,
a verdade impede a categórica afirmativa
ou pelo menos não a impõe.

Fechando o parêntese e voltando à sala de aula
Agora, de volta ao uso estabelecido (que se dá na língua) e o uso na ocasião.
- A caneta é vermelha.
Qual o critério, como vai se chegar a definir a verdade a partir de se saber como se dá, qual o critério, para a definição do uso estabelecido, para se saber o uso na ocasião?
A pergunta é do seminarista africano, no fundo da sala.
Werner é categórico.
- Conhecendo a língua, o uso é o uso da língua, conhecendo as palavras da língua e seus significados. Qual é o código que se está usando?
Do fundo da sala, volta a insistente afirmação de como se codifica e decodifica o vemelho em outras línguas, vermelho, red, rouge são significados para o mesmo vermelho.

Questão ainda colocada de lado. Ela voltará.

Na frente da sala, bem debaixo de Werner, um outro africano observa:
- Não é possível, então, com a língua fazer metafísica?
E Werner sorri, leva as duas mãos ao rosto - é a sua resposta.
- Não é possível a metafísica?
Do fundo volta.
- Nas várias línguas vermelho, red, vermelho e red - o que é vermelho?
Língua é gramática, sintaxe, palavra e realidade, traduzir a palavra basta na língua, em um nível mais básico tudo é comum para o ser humano.
(O que é comum?
Dor
Fome
Sexo. O básico)

Não é possível elaborar uma metafísica com a linguagem.
O que nos referimos quando tratamos do trans-empírico?
Trans-empírica --------------- metafísica

Lá vem a questão de um aluno à esquerda:

- A realidade está dentro da linguagem...
(lembro-me de Marx, das teses sobre Feuerbach)
-... a linguagem está dentro da realidade????

A voz clara e pausada vem do fundo mais uma vez:
- O que é vermelho? Red, vermelho, rouge... Nem sempre qualquer termo da linguagem pode ser aplicado a deus, ao deus cristão, só o positivo, nunca o negativo, deus é sábio, no conceito positivo pode-se ser mais ou menos sábio. Não se pode abordar o deus cristão com qualquer exposição negativa. Não se pode usar o negativo para se analisar e tratar da questão deus. Ao contrário se chegou ao tirar os limites, mas também não se pode conceber o infinito, não há infinito, há limites.
Werner ouve e há em seu rosto seu eterno sorriso. É um filósofo alegre. “Estamos apenas filosofando”, disse o filósofo ao jardineiro. Não somos loucos, somos mais que isto.
- Uma é mais precisa
se tem uma idéia mais clara
(Tirar os limites. Deus é sábio..........................................................................................espicha, espicha............................................................... Deus é insensato................)

A voz forte, clara, é a voz da autoridade. Ela volta:

- Não se pode usar o insensato.

Silêncio. Em Werner o sorriso é Werner.

- Não é válido dizer de deus, um deus cristão, uma afirmativa negativa.
Um aluno observa que o pressuposto é o sentido trans-empírico e que a afirmativa pode ser extraída da negação, aí serão duas as negações, nem sábio e nem insensato, extrai-se toda a antropomorfização, extrai-se a linguagem, extrai-se tudo. O critério do rival é válido, mas insuficiente, sem a extensão.

Como explicar a extensão, como entender o limite e como entender o infinito, seria a explicação pelo oposto, pelo termo rival, total abertura linguística, não há expressão pura, senão aproximações, pela linguagem).

Silêncio na sala do segundo andar, 16h33, 26 de abril, quarta-feira.
As palmas explodem, Werner sorri, as palmas continuam, Werner, magrelo, barba branca, cofiando a barba caminha em direção à porta, as palmas continuam, são mais forte, não se interrompem, Werner caminha, Werner sorri. De quê o Werner sorri? Fecho os meus cadernos e vou me despedir e cumprimentar o Werner. Eu sei de quê Werner sorri. Werner sorri da nossa sã ignorância. Do nosso louco filosofar.

- Estamos apenas filosofando, disse o filósofo para o jardineiro.
Imagino o que se passa na cabeça do jardineiro, certamente uma afirmativa verdadeira e categórica.

- São uns malucos, uns loucos... A árvore...


(*) Na proposição do tema, a clara provocação: A Fé