Ele veio, ele voltará
Todos os aparelhos ligados na decisão da eurocopa de futebol.
Instantes finais, Milan de Kaká e Dida quase campeões.
Observava uma repórter, gravador, prancheta e máquina fotográfica, entrevistando um senhor magra, de cabelos brancos, espichado na cadeira como se fosse uma cama.
Observava o cantor sujo, velho e que fedia, cuja voz era forte e bonita. As letras, românticas; ritmo perfeito, firme, feito com os dedos sobre o banco do ônibus, que nos transportou até a rodoviária.
Agora, o cantor velho era também pequeno e de longe não fedia. No ônibus, estávamos perto.
Ali, no terminal, ele teimava, cantarola e caminha, firme, passos firmes, alegre, sujo, roupas sujas.
Uma passageira o cumprimentou, "um artista", disse ela.
Do olhar para o cantor, do cantor para a repórter, que agora filmava para uma tv, meus olhos pararam naquele outro homem.
De imediato não pude dizer se seria um velho ou apenas um homem mais velho. Terno, gravata, muito bem vestido, ereto e dobrando-se para entregar um papel. Nos separavam duas fileiras de cadeiras, quatro aparelhos de tv, presos no alto.
Olhou para mim e continuou tirando com cuidado cada papel, selecionando, antes de entregar a cada pessoa. Educado, tinha uma palavra a dizer. Não o ouvia, percebi que entre alguns gestos, ele me olhava.
Eu o observava como observei a repórter, que agora sorriu como se despedisse.
Milan é campeão.
O jogo é em Atenas e, aqui, no nosso sertão, num terminal rodoviário, as pessoas assistem aquela festa do futebol, lá também tem homens de terno e homens de uniforme.
A repórter sumiu e com que bunda. Maravilhosa!
Ele está na minha frente, sorri, pede licença e, já com o papel selecionado, me entrega. É um impresso com palavras de proselitismo cristão “Ele veio, ele voltará”.
Um tempo depois, ele volta. O homem, lógico.
Assim como da primeira vez em que ele se aproximou de mim, só me dou conta da sua presença quando está na minha frente. Atribuo só notar sua presença quanto ele está diante de mim à minha constante distração; confesso, sou um distraído empedernido e também por vocação.
Nasci para ser um distraído.
- Três para noventa. Faltam três anos para noventa anos. Tenho 87 anos.
Mesmo assim, ainda não sei se o chamaria de velho. Não parece um velho. Teria talvez mais de 50 anos. Ele não tem nada de velho, a pele do seu rosto não tem rugas e o seu sorriso é de um homem tranqüilo, feliz e alegre.
Há alegria ao seu redor.
Ele começava aquele diálogo como respondendo à minha primeira observação quando o vi, como se já estivéssemos dialogando há algum tempo. Pura telepatia?
- O senhor não parece ter esta idade. É um homem conservado.
- Conhece Coronel Fabriciano, no Vale do Aço? Fui caminhoneiro, transportei muito para a Belgo.
Pelo menos não era um homem misterioso, tinha referências de trabalho e de profissão.
“Um homem não pode ser escravo de outro homem”.
Ele aponta para a cabeça.
- Nenhum homem deve se prender a outro homem. Nenhum homem é mais sábio do que outro. Nenhum homem deve seguir outro homem. Quem é Platão? Um homem. Quem é Wittigenstein? Um homem.
Mudei de posição na cadeira. Platão? Tudo bem, mas...
- Sou jovem na aparência. Sou um curioso, sempre quis saber mais, mergulhar naqueles que sabem um pouco mais para ser menos ignorante das coisas nossas mesmas, as nossas inquietações, curiosidades, sabedorias. Gosto de saber um pouco mais e de perguntar. Sou apenas um perguntador e acho que isto é que me faz jovem. Na aparência. É aparência, por isso você não sabe me dizer se sou um velho, um velho jovem ou dizer com precisão a minha idade. A idade de um homem não importa para a vida. Não deveria importar nem para você e nem para a vida de todos os homens.
Olhos firmes em mim, ele afirma, “você não tem religião”.
- Eu também não.
Fala de Confúcio, de Buda, de religiões organizadas, “religião é prisão, é cadeia, é escravidão”.
Aí ele apontou para o meu peito
- Dentro de ti, dentro do teu peito, em ti, há um santuário e aí mora o que é eterno.
Não mais percebo a agitação do terminal de passageiros, procuro religar-me na tv e no relógio, precisava estar atento à chamada para o embarque. Não me preocupo mais. Tenho ainda duas chamadas de embarque na minha frente.
Entre ouvi-lo, retornar àquele espaço do terminal e voltar a me posicionar, frente a ele, para ouvi-lo, pareceu-me que jogava com o tempo e que ali tinha uma experiência da eternidade. Percebi isto, quando fixei-me de novo em seus olhos e em seu rosto manso, tranqüilo, terno e com um sorriso leve, paciente. Haveria ali uma eternidade. Uma fugaz eternidade. Uma experiência mística. Aquilo que fazem aqueles que saem de uma formação religiosa completa e, sem dinheiro, com um rumo em que se traça apenas o ponto de saída e o ponto de chegada, com milhares de quilômetros de distância, entre a chegada e a partida para completar seu destino e ter a oportunidade de consolidar uma vocação. “Eles saem daqui para entre os homens encontrarem deus”. “Deus existe?”. “Eles saem e irão caminhar entre os homens, se encontrarem deus, continuarão seu caminho, definirão sua vocação e conhecerão seus limites e sua integridade”.
De volta ao terminal, ele me recebe como se o tempo não tivesse passado e como se aquela minha conexão com o terminal, a hora, a hora do embarque, fosse um passeio, uma distração, uma brincadeira. Ele um pai compreensivo, apenas ri de mais esta dispersão, de mais esta travessura.
A idade de um homem não importa para o tempo. Não ser escravo de outro homem. Isto, importa, sim, e muito. Sou um templo, trago em mim um santuário.
Repasso suas palavras. Lições? Não se prender pelo cérebro de outro homem, não ser escravo. À prática.
Ele ri.
De novo, a conversa dispensa palavras. Ele levanta.
- Quantos anos você tem?
Hesito em respondê-lo. O que importa a minha idade? Para quê? Não vivi nada ainda, vivi apenas expectativas. A expectativa até mesmo de ser um homem bom não se concretiza. Percebo que ele sacará uma nova lição sobre a bondade e o antecipo.
- Tenho sessenta anos.
- Meia zero.
- Meia zero, confirmo. Meia zero.
- Você ainda terá mais 27.
- Anh!
Penso em meu pai que morreu com 92 anos e em meu avô que morreu com 102 anos. Por que não mais que 87? Bom, mais 27 está bom demais. “E com muita saúde” ele acrescenta.
- Terás mais, muito mais, terás a eternidade.
Depois que ele se afastou, apanhei os papéis que ele deixara. Deixou mais, além do primeiro. Em um deles tinha o seu nome, “sou um pastor, sem igreja”, Amaro, “Amaro de onde?” “De Eugenópolis, Muriaé, da Zona da Mata?” Ele respondeu, disse o nome da cidade, não guardei. Havia ali um número de telefone. “Pode me ligar a cobrar”. Ele sorri, “sou um homem de posse” e tira do bolso a chave de um carro, “você tem carro?”.
A viagem dura o triplo do tempo, noite de chuva e de desastres na estrada. Não vejo nada, durmo e a noite e a chuva impedem os passageiros do ônibus de ver o que se passa do outro lado do vidro, na estrada. À noite, de madrugada, em casa, leio um de seus papéis.
No outro dia, ligo e peço para que me ajudem a localizar aquele homem. À tarde tenho o retorno.
- Meu velho e bom amigo, se este cara tomou dinheiro emprestado, você tomou um cano. Este homem não existe.
Quando pensava naqueles homens que entre os homens procuram deus, quis contestar a questão dos “limites” e, sem que ele dissesse uma palavra, palavra por palavra, naquela maneira estranha de nos comunicar, pensei com o pensamento dele: “Um homem precisa conhecer seus limites apenas para não se limitar”.
Lembro-me ainda que ao se despedir, já distante, ouvia sua voz perfeita, como se continuasse ali ao meu lado.
“Você é meu filho”.
Bem, ainda bem, que ele se identificou como meu pai, meu pai foi um homem bom. Em minha memória, procuro traços do seu rosto para tentar sua identidade com o meu pai. Talvez, o sorriso. Talvez, a alegria. A tranqüilidade, talvez. Não consegui fazer a ligação entre os dois. Então, agora tenho dois pais. Um ganhei na sala de embarque da rodoviária de Curvelo.
24/05/07
Houve um momento em que suspeitei de sua intenção. Enfim, aquela conversa de religião, deus, ele com um evangelho e papéis sobre a volta de Cristo. Não o questionei por isso. Apenas, olhei em seu olhos com as minhas suspeitas e dúvidas. Como ocorria várias vezes, eu não precisei falar com palavras e nem dizer com a boca. Ele também riu, com aquelas bobagens nas mãos, “os homens precisam do diálogo, eu trago a isca e dou a partida, as pessoas só pensam e só falam o que querem ou o que pensam que pensam que querem falar e pensar”.