1.“... tá lá um corpo estendido no chão”
Errou o compositor popular.
O que está estendido no chão é um cadáver. O sujeito está morto. Errado também.
(Agora, eu: o ser está morto. O homem está morto. O mulher está morta. O sujeito ainda não morreu. Uma, a questão etimológica. A outra é uma questão filosófica - embora há quem acredite e afirme a morte do sujeito.)
Erram, no dia a dia, dos jornais, as notícias sobre o encontro de corpos mutilados, assassinados, em estradas, vielas e cidades por este mundo todo afora. Morto o homem, o que se encontra não é o seu corpo, mas o seu cadáver, ser material em decomposição. Enfim, o fim do homem. Será?
Aí, entramos em outra seara da diagramação gramatical e filosófica. Qual será o fim último do homem? O último fim do homem. Supõe-se vários fins. Supõe-se, na graduação, um fim primeiro e um (ou muitos) fim (s) último (s). Há concretamente: o desaparecimento do corpo e o aparecimento do cadáver? Haveria outro fim último? A imortalidade da alma? O ser seria composto? Uma parte do homem é mortal, o corpo. A outra parte imortal, a alma. Mais uma digressão. Morre o homem, sobrevive a alma. A alma sobrevivente, voltaria? Há quem garanta que sim. Muitos acreditam nisto, um percentual, segundo as pesquisas, superior a 90% das pessoas. Muita gente ao acreditar em um fato, não explicado, não testável, não claro, torna-o, pelo menos objeto, senão de preocupação, de uma necessária análise “científica”. Estaríamos, assim, diante da reencarnação.
Isto é, a alma voltaria em outra carne, outro corpo. Sacanagem se pensarmos cada corpo traria, uma-mente, uma alma, haveria, claramente, uma usurpação de corpo ou um assassinato de alma. Aquele determinado corpo que traria uma determinada alma nova perderia esta alma nova e, em seu lugar viria aquela alma antiga, persistente, intinerante, em corpos, mas rápida no assumir corpos. Uma velha alma ocupando espaço destinado a uma alma nova em formação. Um prato cheio para os laboratórios de almas e para os psiquiatras que trabalham com vidas passadas, regressões, nas pistas do que você poderia ter sido no século XVI, o século das grandes navegações para o mundo ocidental. Já se imaginou em uma galera? Não em um estádio de futebol. Na época ainda não presente em nosso imaginário cotidiano. Mas em uma galera, um navio? Um grande navio, com vários andares, depósitos de água (combustível do homem, então), depósito de frutas cítricas cristalizadas (contra o escorbuto). Ali, navegando, o que você seria: capitão ou marujo?
Matéria de estudos da doutrina sobre a consumação do tempo e da história, a escatologia.
2. Vamos ao dicionário
Os gregos nos surpreendem. A palavra escatologia tanto pode significar como substantivo feminino (1) um tratado sobre os fins últimos do homem como também como um substantivo feminino significar (2) um tratado acerca dos excrementos.
A diferença estaria mais na origem sonora do aparecimento da expressão. Para a origem da palavra em excremento, sua procedência grega está em “skór,atós”. O outro significado viria de “éschatos”, último.
Os gregos, como bons observadores, deixaram muito perto a indicação do que entendiam como fim último do homem, uma vez morto, uma vez corpo, cadáver, em putrefação: ser excremento. Imagine, um apaixonado ao lado do cadáver da mulher amada, ele jamais captará sua alma ou acompanhará o desenlace do ser duplo, mas sim a putrefação de um corpo até a sua total impossibilidade de ficar ao lado de um ser que vira excremento. Na literatura mineira, Agripa Vasconcelos registra a história de um homem apaixonado, o barão de Catas Altas, que conservara os restos mortais da mulher amada e, com seus ossos, objetos de afeto e cuidados, depois de vencida toda a putrefação, sobrevive em sonhos palpáveis e, por que não, acariciáveis. O amante que beija o osso do antebraço da mulher amada, beija a mulher amada, viva em osso. Mas devemos dar as palmas à palmatória. A moderna escatologia interroga os homens sobre os fins últimos dos homens, enfim, por vias traversas e controversas, coloca-o diante da sua própria origem (embora, não se trate de um círculo vicioso). O homem interrogando-se sobre o fim último da humanidade, interrogar-se-á, necessariamente, de suas origens e de toda a vida, seu sentido e de todos os seres e interroga-se sobre o tempo e a matemática geométrica do espaço.
Tudo isto veio à minha mente, depois de uma porrada em que me vi e interrogando-me sobre a morte e as suas várias nuances. Você já se perguntou quando uma pessoa morre para você? É algo complexo, difícil de entender. Isto me surgiu depois de muitas experiências com a morte de pessoas amigas, queridas e inimigas. Subia a rua Santa Rita Durão, esquina com avenida Afonso Pena, quando encontrei, casualmente, e perguntei ao companheiro Lúcio Urtigão sobre o cabo Cecílio. “Você não sabia? O cabo Cecílio morreu há mais de uma ano”. Estava pronto para alkiminiar-me. Morreu? Verdade. Cabo Cecílio morrera. Na verdade, na verdade mais verdadeira, o cabo Cecílio morria, para mim, ali, naquele lugar, naquela hora. Até, então, como um desinformado, para mim, o cabo Cecílio estava vivo. Morreu para o Lúcio Urtigão e um ano depois morria de novo, agora para mim. “Você soube da morte dele?” Olhei nos olhos de Lúcio e menti: sim, sabia. Sabia porra nenhuma. Menti como um babaca. No fundo, eu não queria me punir, mais uma vez, para além da ignorância: o eterno afastamento e descaso pelo destino do outro. A eterna incompetência, diante da impossibilidade, de corrigir uma injustiça. Para muitos, cabo Cecílio foi um herói das nossa gloriosa Polícia Militar do Estado de Minas Gerais, a Polícia de um outro excluído, expulso e executado pela própria corporação: Tiradentes. É Tiradentes de um lado e o cabo Cecílio de outro. A diferença é que Tiradentes, condenado, foi assassinado pelo governo de Portugal (este governo português que o governador do Estado de Minas Gerais, Hélio Garcia, quis condecorar em um dia infeliz, reafirmando a sentença de execução de Tiradentes, 300 anos depois). Cabo Cecílio foi condenado e pior do que assassinado, desprezado, humilhado, ridicularizado, esquartejado como homem íntegro, decapitado como indivíduo pelo comando desta PM de hoje, nossa contemporânea. Cabo Cecílio foi um PM que se revoltou contra a ditadura militar. Membro da Colina, Comando Libertador Nacional, depois integrado à ALN, também um grupo político que tinha a proposta da libertação política nacional, de Carlos Marighela, o cabo PM Cecílio Emígdio Saturnino foi preso, torturado, recolhido à Penitenciária de Linhares, em Juiz de Fora, condenado e foi o único cidadão brasileiro não anistiado. Sui generis? Não. Outros militares tiveram o mesmo destino no Brasil. Cabo Cecílio é uma peça na desmoralização da anistia negociada com a ditadura militar, no fim do governo de exceção, e da política elitista nacional. A PM jamais o anistiaria. O heróico cabo Cecílio morreu abandonado pelos seus companheiros e pela corporação. Morreu abandonado pela história. Seu cadáver foi encontrado estendido no chão de uma das muitas ruas de Belo Horizonte.
Qual foi o fim último deste homem? Qual foi o fim último do cabo Cecílio?
Voltamos à questão: quando uma pessoa morre para você? Quantas mortes têm um cidadão?
Tenho a sensação que Cecílio ainda não morreu.
Afinal, a PM ainda lhe deve uma anistia.
3. O seu nome era Cecílio Emígdio Saturnino
Magrela, preto...e aquele magro espichado parecia um homem alto. Muitas vezes o encontrei com uma barbicha à Ho Chi Min. Era um herói? Um idiota? Um ingênuo. Talvez. Uma boa alma. Com toda certeza. O cabo Cecílio foi um herói sem a tragédia e sem o grande gesto. Caminhou firme entre desequilibrados. Às vezes ele me incomodava, não dava para ter, com o cabo, uma longa conversa. Havia muitos silêncios e ele ria um riso tímido, com a mão nos lábios, um risorisinho abusado. Sei que ele incomodava, com a sua prensença ao nosso redator de esquerda, ao secretário-geral, ao nosso analista político. Sua presença tinha a rejeição daquilo que nós mesmos rejeitávamos em nós mesmos: a nossa laboriosa e vitoriosa hipocrisia. Vencemos! Uma merda. Em nossos ternos de linho, perfumados, com nossas mulheres bonitas e putas bárbaras, corríamos céleres daquela imagem. Cecílio aparecia em nossa frente como um fantasma traiçoeiro, como todos os fantasmas, a nos lembrar do passado e do futuro. Não nos cobrava nada. A sua luta pela sua anistia era só uma luta pessoal. A anistia ficara para trás. O cabo Cecílio, ao contrário dos fugitivos que não conseguiram lugar no helicóptero salvador, resgatador, não fora salvo pelo helicóptero, mas a história o trouxera para as salas e ante-salas do novo-poder político municipal e estadual. Estávamos lá e ele chegava. “Tudo bom?”
Terrível, humilhante. Como responder?
4. “... mesmo quando minhas mãos estão ocupadas em torturar, trucidar e esganar...”
Quando a polícia mineira se ocupava em torturar presos políticos, saindo de sua rotina de torturar e eliminar presos comuns, um militar se revoltou contra a violência e enfrentou a fúria de sua própria corporação. É um herói? É um louco? Firme, o cabo ficou do lado daqueles que lutavam contra a ditadura dos militares, o governo comandado pelos militares. Ficou do lado da luta contra o autoritarismo, contra a violência praticada pelo Estado que geria uma guerra, sem trégua, contra os próprios cidadãos. Cecílio enfrentou a injustiça. Cecílio, o cabo PM, estava na contra-mão da tropa e foi massacrado; ele que não quis torturar, foi torturado. No fim, ele venceu. A ditadura foi derrotada. Vitorioso, o cabo Cecílio foi isolado. Era o restolho. O que não se queria ver. O país mudou. A tropa mudou? Mudou porque os comandos políticos estão, agora, nas mãos dos políticos que venceram a ditadura militar. Nada mais seguro de que nada mudou no Brasil.
O cabo Cecílio ficou à margem da história e agora a polícia rejeitou a sua reintegração, a sua volta aos quartéis.
Continuava sendo um estranho no ninho.
5. Com a mesma licença dos poetas e compositores populares:
“... tá lá o cadáver do cabo Cecílio estendido no chão”. Como Darcy Ribeiro, tá lá um homem que lutou pelas liberdades democráticas e que foi derrotado, tá lá um homem que lutou pela Justiça e que foi, fragorosamente, derrotado.
A derrota do cabo Cecílio não é a derrota da luta armada como um direito dos povos de se insurgirem, de se rebelarem, contra tiranos e ditadores.
6. Nos melhores manuais de escatologia, aqueles que não falam de excremento, mas das grandes indagações do homem sobre os fins últimos do homem, considera-se, importante, a questão da ressureição.
A igreja destaca que a ressureição é uma prática religiosa diária, um exemplo ritualístico que deve ser, priorizado, na memória da humanidade. É a busca do outro. É a mais fantástica das viagens de descoberta e de aventura. Não há mares tão longos e nem tão fantásticas surpresas - embora haja um filósofo grego que nos assegure de que nada do que é humano nos deva ser estranho. É da natureza humana esta espetacular grandiosidade, até mesmo de não reconhecer limites. Outro filósofo grego, com toda certeza, o maior de todos os pensadores, Heráclito, gostava de conversar, apenas, com as crianças. Não se aventurava a enfrentar um adulto. Era demais para ele. Sua aversão ao homem adulto pode ter a ver com a enorme dificuldade que é conhecer um homem mais velho. O percurso é complicado e difícil. O sujeito já viveu, têm faces múltiplas e diversificadas. Assim como não foi o mesmo em janeiro, isto em um único mês, jamais consegue ser o mesmo um único dia. Ser maravilhoso do conhecimento, ser multifacetado, o homem surpreende. Heráclito não tinha paciência para tantas singularidades, embora deixasse registrada sua observação de que ninguém entra duas vezes no mesmo rio. Ao preferir o diálogo com as crianças aí também encontrava um universo galático de imagens e construções inesperadas.
7. Amanhã, dia 09 de novembro de 1997, todos os cabos da Polícia Militar de Minas acordarão para usar um novo codinome, em suas atividades internas e externas: cabo Cecílio.
A partir de agora, por decreto individual, nós declaramos o dia 9 de novembro como o dia do cabo, o dia da revolta. Todos se chamarão a si mesmos de cabo Cecílio. Até mesmo o velho cabo Honório, lá do almoxarifado da Cavalaria, como o mais novo cabo PM, o cabo Bastos, como as novas cabos, a Valéria, Ester e a Vanúsia. Hoje é o dia do cabo Cecílio. Vamos lá.
- Você está pronto para torturar? Você está pronto para esganar e trucidar? Você está pronto para dar um chute em um cidadão indefeso? Você está pronto para, em cima da hora, julgar, condenar e executar, tudo isto em menos de um minuto? Você chutará a cara do maior de todos os marginais. Aqui estamos, todos nós, pra te dar cobertura, malandro. Suas mãos estão preparadas para torturar, esganar e trucidar crianças que, sujas, famintas, magrelas, imbecilizadas, percorrem as ruas de nossa capital centenária? Você está preparado para fazer cumprir a lei, mandada cumprir em um papel asssinado por um juiz imbecil, autoritário, corrupto? Você está preparado para desalojar de casas vazias, ocupadas, famílias sem abrigo e que você irá colocar na rua, com suas misérias, roupas rasgadas, móveis emendados? Você está preparado, armado até os dentes, com estas fabulosas engenhocas modernas, corpo protegido por coletes, para invadir a creche Santa Cecília e retirar de lá esta idiotas crianças, de bico na boca, olhares risonhos, para devolvê-las aos pais, que não mais existem? Cumpra a ordem, cabo. Vá em frente, a próxima casa a ser invadida aos pontapés na Barragem Santa Lúcia será a sua casa, a casa do Tadeu, seu amigo de infância, mas a porra da infância acabou, ficou na lama da barragem. Chute e arrebente a porta, porca-miséria, da casa, quase-casa, da sua bela Jandira, cujo corpo tinha com o seu a beleza dos cheiros e que agora é só Jandira, a puta-babaca. Você está preparado para correr atrás de camelôs e para bater firme com sua enorme arma-cassetete? Para desfilar, garboso, com seu traje de dono do pedaço? Nós somos contemporâneos de atrocidades que envergonhariam os maiores criminosos públicos e privados da história.
Hoje, no seu dia, eu pergunto a você, cabo Cecílio:
Vale a pena lutar?
- Topas?
8. O marido de Teresão trabalha no Parque Municipal há uns bons doze anos.
Foi difícil para ele se adaptar ao serviço público, mas no dia em que coube-lhe a tarefa de cuidar do mictório do Parque descobriram para Pedro uma tarefa que ninguém faria melhor. A partir de Pedro, o mictório passou a ser um lugar arejado, limpo e onde as pessoas podiam se sentir confortavelmente. Antes, era uma podridão, mau cheiro e frequentado por pessoas estranhas. Havia a proibição de homens se encontrarem com homens dentro do mictório. Uma proibição que Pedro cumpria. Porque “eles sujam muito e são desmazelados; eu não gosto”. Outra proibição Pedro não cumpria a risca: encontro de casais. Por que? Pedro confessou, um dia, para o Zé-zelador: eu gosto, “gosto de ver e às vezes sobra pra gente, quando os homens não satisfazem as mulheres e as abandonam desesperadas; nessas horas eu chego e nunca falhou”.
Foi Pedro, marido de Teresão, minha amiga e dos meus filhos, quem encontrou o cadáver de Cecílio. O corpo. Depois explico esta confusão: corpo e cadáver. É diferente da inicial.
Pedro chegava, nos seus plantões, antes do dia. Direto, apanhava a mangueira, e ia para um canto molhar suas plantas, entre elas, algumas belas roseiras. Pedro limpava a poeira que vinha das ruas. Não gostava de jogar a água sobre as plantas com as folhas sujas. Tirava o que podia. Depois aguava-as. Era uma cerimônia religiosa. Em seu ritual até sua posição, no momento em que abria a água, era cronometrada. Quando a água começava a jorrar, chegava o sol. Foi, exatamente, nesta hora, com os primeiros pingos subindo no ar que, no meio do brilho das gotas e sol, que Pedro percebeu que, um pouco mais distante, havia uma pessoa dormindo. Era comum. Desviou a água, mas algo o fez parar. O homem estava morto? Ele não sabia. Encostou o ouvido no peito do homem. Nada? Ele ouvia, distante, um batido de coração. Assustou-se. Sacudiu. Chamou gente. Correu até Zé-zelador. Correram até João, o vigia. Chamaram dona Margarita dos barcos. Chamaram seu Bigode.
- Está morto - sentenciou Bigode. (É um cadáver).
- Está vivo - contestou Pedro. (É um corpo).
Todos tentaram ouvir as batidas do coração. Todos tentaram sentir a respiração. Estavam confusos. Não sabiam se estavam diante de um corpo ou de um cadáver. Como ali estava uma pessoa, decidiram, transportá-la, imediatamente até o hospital. Foram para o telefone público. Procuraram ajuda de todos os lados. Era 7 de setembro de 1979. Não havia ajuda possível. Todos estavam ocupados com o desfile militar na avenida Afonso Pena, ali ao lado do Parque. A direção do hospital avisou que não mandaria uma ambulância. Deveriam esperar acabar o desfile. Três horas e meia depois, diante de uma grande bananosa, decidiram levar aquele cidadão para o Hospital do Pronto Socorro. Arranjaram um carrinho de mão. Ao sair, Zé-zelador tomou o rumo dos fundos do Parque para cortar caminho até o hospital.
- Vamos pela avenida.
Ninguém entendeu.
- Vocês viram muito bem que ninguém quis nos ajudar por causa do desfile. Então, nós vamos na contra-mão do desfile.
Isto é, o desfile das tropas e dos estudantes, em comemoração ao dia da Independência, descia a avenida Afonso Pena desde a praça ABC, no cruzamento com a avenida Getúlio Vargas, indo em direção à praça 7 de Setembro, passando em frente ao palanque das autoridades civis e militares, montado na calçada da prefeitura. Eles fariam o sentido contrário. Era um protesto.
O cadáver tornou-se corpo e o cabo Cecílio coçou os braços e quis sair do carrinho de mão.
Era uma cena fantástica. Pedro teve taquicardia.
- Está passando mal, Pedro?
- Olhe, olhe o carrinho.
Zé-zelador olhou e viu o cadáver dentro do carrinho, as perna para fora e já duras.
Assim, ele não viu que o cabo Cecílio se dirigia até Pedro, cujas pernas tremiam e que ensopava as axilas.
- Olhe, olhe o homem!!!
Eles riram da cara de Pedro e tocaram o carrinho de mão em frente. Havia um Cecílio dentro do carrinho e um outro Cecílio que caminhava e conversava ao lado de Pedro.
Com Cecílio no carrinho de mão os cinco partiram para a avenida e cairam dentro do desfile e do asfalto. As autoridades viam do palanque o tumulto. Zé-zelador, dona Margarita, João, Bigode, Pedro começaram explicando que se tratava de um caso de vida ou de morte. As pessoas, asssustadas, permitiram o insólito.
- É um belo desfile - comentou o cabo Cecílio.
Agora, Pedro entendia que apenas ela via o morto, apenas ele ouvia o morto, apenas ele conversava com o morto. Quando o cabo Cecílio colocava as mão sobre os ombros de Pedro, o peso era tanto que ele sentia como se fosse partir-se.
Caminharam lado a lado.
Enquanto as tropas marchavam imponentes em uma direção, jogado num carinho de mão seguia o corpo de Cabo Cecílio, escoltado por aquele grupo de cuidadores do Parque. Sete de setembro de 1979, dia do grande desfile do cabo Cecílio. O hino nacional, às vezes, soava distante. Outras, explodia sobre o grupo que tocava o carrinho de mão.
Dois repórteres se aproximaram. O que houve? Não sabemos e vamos para o Pronto Socorro. Os dois repórteres estavam com os seus filhos. Gutemberg com o filho Felipe e Nestor com sua filha Raquel. Acompanharam aquele pequeno cortejo até a esquina do hospital. Dividiram a tarefa. Gutemberg, repórter da sucursal do JB, seguiu para a parada militar. Nestor foi para o Pronto Socorro. No hospital, ainda na portaria: Está morto. Dúvida desfeita. É cadáver. Destino: Instituto Médico Legal. Antes, porém, todos os envolvidos naquele estranho encontro de cadáver deveria responder a um inquérito policial. Pedro, Bigode, João-vigia, Zé-zelador e dona Magarita.
No hospital, Cecílio perdeu-se de Pedro, cuja camisa estava completamente molhada.
Bigode ria do suar e da tremedeira de Pedro.
- Poxa, Pedro, parece que você tem medo de cadáver.
- Tenho - Pedro falou baixo e arrastado, Bigode não escutou pois já estava interessado na conversa dos policiais.
Eles saíram da Delegacia de Homicídios às 17 horas, arrasados, com medo e sem entender nada. Ao pensar que seria acusado de homicídio, Pedro tremia mais uma vez e sentia uma forte dor na barriga. Não dormiu aquela noite. Eu não matei ninguém. Isto ele repetia, infinitamente, silencioso. Fechava os olhos e os abria imediatamente: tinha medo de que ele de fato tivesse matado alguém. Tinha medo de ver na sua memória o rosto do policial, cutucando os dentes com um palito: “Depois, Pedro, você vai nos contar tudo”. Tinha medo, sobretudo, de que ao abrir uma porta desse de frente com o cabo Cecílio. Ele estava em algum lugar, com toda a certeza o cabo Cecílio apareceria de novo.
Naquele dia da Independência, toda a redação da sucursal do Jornal do Brasil, em Belo Horizonte, foi demitida. Uma notícia, enviada pela sucursal, publicada pelo JB, afirmava que, segundo o PCdoB, o Brasil não era um País independente. Irritado com a notícia, que lera de manhã cedo, o comandante militar sequer prestou atenção naquele corpo/cadáver que passou na contra-mão do desfile. Se estivesse em outro astral, jamais teria permitido que aquela cena maculasse o brilho do mais bonito de todos os desfiles de tropas jamais feitos na avenida Afonso Pena, em Belo Horizonte, em uma manhã linda e ensolarada.
9. Sobre o corpo
9.a) - Ele ocupava pouco espaço neste mundo. Também, não pesava tanto ao mundo. Magro, alto pela magreza. Leve, fundamentalmente leve. Seu corpo estava mais talhado para a dança. Talvez para a mímica. Seria um grande comediante. Ele, entretanto, cabo da PM, homem em Minas, ah! Cecílio, o cabo Cecílio jamais dançaria, jamais lhe seria permitido dançar. Seu corpo nunca se expressou na maior de todas as linguagens que, muito, provavelmente, lhe teria sido reservado por sua própria natureza, cor e procedência. Seu corpo era tão leve que, em muitos movimentos, transmitia a sensação de um desastre, de que se quebraria e, quem quer que estivesse por perto, se mobilizaria, incontinenti, inconscientemente, movimentando-se, na direção de Cecílio, para evitar, que ele, como um copo que cai, se quebrasse; ao dobrar-se para a frente, por exemplo. Ao puxar o torax para trás, não havia quem não sentisse um frio: “Ele vai quebrar!” Com a convivência, conhecendo mais o cabo Cecílio, esta sensação não passava.
Hoje, ao parar para escrever sobre Cecílio, me questiono sobre esta hipótese da dança. Ele olharia para mim, inclinando a cabeça para a direita, com um sorriso maroto, “o que é isso?” perguntaria desconfiado das minhas intenções e se interrogando sobre o que eu estaria pensando dele. Consigo imaginar o cabo Cecílio como uma homem que dança, percebo-o numa corrida interminável e um salto para uma queda tão suave, que tenho a nítida impressão que ele levaria mais tempo do que o normal para chegar ao chão, tão leve e harmonioso seria o seu vôo. Faltou-lhe a dança, assim como falta a um boxeador uma luta, assim como falta a um marinheiro o mar.
9.b) - Este é o meu corpo...
Na missa, as palavras de Jesus Cristo soam, saindo do hebraico, como se dissesse, este sou eu, eu sou uma pessoa, não se trataria, apenas de um corpo-físico. O entendimento se reportaria mais à personalidade de um homem, seu ser realizado no tempo, agregador de idades. Se se referindo à pessoa, se buscaria então as máscaras, as várias máscaras possíveis e detectáveis da vida de Cecílio. Ele viveu, basicamente, com uma máscara. Foi um cabo da Polícia, um revoltado e um perseguido. Depois, o perseguido, na máscara de vítima, se tornou um perseguido em vários estágios. Perseguido, propriamente dito, quando preso, condenado por crime contra a segurança nacional e depois de cumprida a pena, como um perseguido ao ter seus direitos de cidadão negados e ignorados pelo Estado.
10. Sobre corpo, cadáver e algumas mentiras
No que vocês leram acima existem algumas verdades e algumas mentiras, isto porque recuperamos estas notas antes mesmo de terem sido checadas pelo repórter. Não sabemos exatamente a verdade, vocês poderiam nos ajudar. Alguns fatos apuramos, outros não, as dúvidas são muitas e a notícia ainda está por fazer.
1. O cabo Cecílio Emígdio Saturnino não morreu na rua. Morreu no hospital da Santa Casa e está enterrado no Cemitério de Betim.
2. O cabo Cecílio, na verdade, não morreu no dia 7 de setembro de 1979. Morreu no dia ....
3. Assim, é, totalmente, falsa a história do encontro do seu corpo por todos aqueles personagens.
4. É mentira a história da luta do cabo Cecílio contra a ditadura. Foi tudo um acidente, uma grande farsa. É bom que se diga que esta é a versão da polícia.
5. O cabo Cecílio nunca foi cabo, nem nunca serviu à PMMG. Esta é uma história falsa e deve ser apagada dos anais da nossa gloriosa Polícia Militar do Estado de Minas Gerais.
6. O cabo Cecílio era um louco. Achou que sozinho podia encarar a PM e que sozinho mudaria o mundo. Um louco.
7. A bem da verdade não se deve nunca valorizar a história de um cidadão como o cabo Cecílio. Não é um bom exemplo.
8. Cabo Cecílio não mereceu viver.
9. As autoridades militares asseguraram que não tiveram nenhuma intromissão na decisão dos donos do JB em demitir toda a redação da sucursal do JB em Belo Horizonte.
10. Gutemberg, um dos melhores e mais conceituados repórteres do Brasil e que brindava os leitores, através do seu talento, com magníficas reportagens sobre Guimarães Rosa, abandonou a profissão.
11. A anistia. O cabo Cecílio Emígdio Saturnino não tinha direito à anistia.
12. Processado e condenado como prisioneiro político, integrante do movimento revolucionário Colina, Comando de Libertação Nacional, o cabo Cecílio era apenas um mau soldado, um mau exemplo.
13. O desfile relatado não foi no ano de 1979.
14. O episódio da sucursal do JB não foi no ano de 1979.
15. Talvez não tenha sido por causa da sua demissão sumária que o jornalista Gutemberg abandonou a profissão de jornalista e se tornou advogado em Belo Horizonte, no Estado de Minas Gerais. Talvez.
16. Na verdade, Cecílio nunca requereu sua anistia.
17. Íamos esquecendo do Pedro. Pedro, o marido da Teresão. Ele cumpre pena de 30 anos de prisão na Penitenciária Agrícola de Neves, em Ribeirão das Neves, no Estado de Minas Gerais. Por que? Assassinato. Pedro Evangelista de Alcântara, funcionário público municipal, fora condenado, pelo assassinato do cabo Cecílio. Segundo a polícia, Pedro foi interrogado e confessou o crime. O interrogatório durou uma semana. Pedro confessou que matou o cabo Cecílio para assaltá-lo, usou um pedaço de cano para golpeá-lo na nuca. As marcas foram constatadas pela Medicina Legal. Manchas e corte na nuca, além de ter, com a violência da pancada, quebrado o pescoço do cabo Cecílio. Depois da confissão, uma difícil e extenuante confissão, obtida já no terceiro dia de interrogatório, pois Pedro insistia em que não havia matado o cabo e que aquelas marcas deviam ser atribuídas ao transporte do corpo pelo carrinho de mão e pela falta de cuidado do Bigode, que dava arranques, desnecessários, com o carrinho. Indiciado pela Delegacia de Homicídios, Pedro foi denunciado pela promotoria e, em julgamento no Tribunal do Juri, fora condenado. Sem chances. Agora, era cumprir a pena, esperar pela condicional. Sua mulher, Teresão, amargurada, morreu dias depois da condenação. Os filhos de Pedro e Teresão foram divididos entre as famílias vizinhas do bairro São Geraldo. Só a mais velha, a morena Dorotéia, ficou com o pai de Pedro, seu Ludô, um bêbado inveterado que estava precisando de uma menina para cuidar dele e do barracão. A polícia terminou o inquérito convicta, exceto o detetiva Anacleto Pereira que, para a sua mulher, confessara ter exagerado um pouco na mão, “acho, mulher, que com aquele magrela, nós exageramos um pouco na porrada; era tanta porrada, choque, palmatória e afogamento, que ele, quando me via, aproximar, cagava-se todo, quando não tinha mais merda, mijava igual cachorro medroso, perna abaixo.
(Sugestão de fundo musical. Este texto é para ser lido, ao som de duas obras da década de 70. A primeira é dos compositores João Bosco e Aldir Blanc, De frente pro crime, de 1975, de onde extraímos o verso “... tá lá um corpo estendido no chão...” . A segunda obra é Fado Tropical, de Chico Buarque e Ruy Guerra, de 1973, que mostra a contradição de sentimentos presente na formação do caráter militar nacional português-brasileiro).