
Para Zequinha, o saxofonista da penitenciária
Quando os pais matam os próprios
filhos
A história começa em 1934, na Colônia, pertencente a Carlos Chagas, no Vale do Mucuri, em Minas Gerais. O lugar era chamado de Colônia de Ourucu, Urucu é nome indígena, deve ser de urucum. Hoje, a colônia tem o nome de Epaminondas Otoni e é um distrito de Carlos Chagas.
O que significa Urucu? Não sei. Urucum (1) eu conheço, sei que também é um nome indígena. Quem foi Epaminondas Otoni (2)? Não sei.
Seria bom que eu começasse a história no dia em que nasci. É preciso que eu nasça para que comecemos a história. É ou não é?
No dia em que eu nasci meu pai deu seis tiros para cima. Seis tiros pausados. Bem pausados. Pausas longas. Um tiro, um bom tempo. Aí, o outro tiro, o segundo. Todos os outros quatro tiros disparados muito devagar até completar os seis tiros. Um costume da época. Meu pai estava feliz e anunciava que nasceu um filho. Quando nascia uma mulher, davam dois tiros. Homem, três tiros. Homem valente seis tiros bem pausados.
Meu pai sabia quem nascia naquela hora.
Não foi preciso que eu chorasse para que soubessem que eu estava vivo. Nasci sem chorar. Era o primeiro filho naquela casa. Os tiros eram dados na hora do nascimento da criança, eu não havia ainda terminado de encher os pulmões e já fora saudado por meu pai com seis tiros no ar.
Era o dia 1o de abril de 1934, pois é! Primeiro de abril de mil novecentos e trinta e quatro. Dia consagrado à mentira, Dia da Mentira. No Dia da Mentiras nascera um Homem de Verdade. Pode escrever homem com h maiúsculo e a palavra verdade também. É para não esquecer.
O Comércio (comércio é a palavra que se usava, então para definir um lugar com uma atividade econômica) da Colônia, naquela época, tinha umas trezentas casas. Esse lugar quem criou foi Teófilo Otoni. A colônia era o lugar mais adiantado da região. Na Colônia havia batalhão, contingente militar e ficava entre Ataléia e Carlos Chagas, dentro de uma região de pedras semi-preciosas, de crimes e de muitas histórias.
Minha história vai demorar, porque é uma história e é a história de uma vida. E a vida é longa. Ainda tenho que lembrar o primeiro baile. Vou falar também do meio para diante de uma outra parte da minha vida bem mais movimentada. Primeiro, vamos ficar na infância. De algumas passagens da minha vida, eu guardei uma fotografia. Tenho que falar de meu pai, de minha mãe.
De calça curta vou passar para a calça comprida.
Tenho que falar de meu pai. Meu pai era um homem baixo, moreno. Minha mãe era clara, bastante branca, descendente de austríacos, seus cabelos eram louros, minha mãe conhecia a vida, ela era filha de um próspero comerciante e fazendeiro de Bias Fortes, Crispim Jaques.
Meu pai era um aventureiro e começou do nada. Ele possuía a maior virtude que eu acho que possa existir em um homem: a coragem, a coragem para tudo. Pois, para mim, eu creio que até para a covardia e o mal é preciso coragem, até muito mais coragem. Quando eu tinha seis anos de idade...
De Bias Forte à Colônia são quatro léguas e meia. Naquele tempo viajávamos a cavalo e até esta idade de seis anos eu fui criado por minha avó materna. Eu era muito fraquinho e doente. Meus cabelos eram louros e quando menino usava-os longos e anelados. Tenho uma fotografia desta época, um dia vou mostrá-la a você. Eu de sapato branco e preto, os cabelos correndo em anéis sobre os ombros. Na ocasião da foto, eu já era um garoto robusto.
Aos seis anos, saí para estudar, larguei a casa de meus avós. Mandaram-me para Teófilo Otoni, no Vale do Mucuri. Iria estudar e morar na casa de minha tia. Ela lecionava no Grupo Escolar Teófilo Otoni. Foi professora dos maiores vultos da cidade, ensinou Petrônio, Barachim, Antônio Lins e outras gentes do Vale do Mucuri e do Jequitinhonha.
Dona Celuta Silva era a minha tia. Sua casa hoje é um lugar onde as pessoas mais respeitáveis se reúnem para jogar um buraco e falar. O quê? Ora o que se fala entre uma canastra e outra, durante a canastra...
Meu Pai era da família Dantas, tinha Dantas também no nome, um dia talvez por nada, talvez por fortes razões de moral, ele rasgou este sobrenome.
- Rasguei o Dantas, nossa família deixa de ser da família Dantas.
Assim rompemos um laço ou uma ramificação familiar. Em meu nome restou o Pereira da Silva.
*
Na hora em que o trem partiu de Bias Fortes para me levar a Teófilo Otoni, vi meu avô entrar na sua casa de comércio. Era perto da estação.
Aquilo foi uma dor que eu nunca havia sentido.
Acontece algo interessante...
Eu volto atrás em minha vida.
Espere um pouco.
Tenho uma passagem muito interessante.
Muito bonita.
Eu lembro assim.
Uma passagem assim.
Eu era menino,
na casa do meu avô,
(voltando atrás na historia)
eu estava no balcão, em um dia de movimento.
Minha avó para me meter medo
apontou para um homem mau encarado,
um homem sério, boca fechada.
- Esse homem aí meu filho é um criminoso. Ele matou um outro homem.
Olhei para o homem.
E durante muitos dias admirei aquela imagem de homem perigoso.
*
Cheguei a Teófilo Otoni na época da guerra, anos 40, uma guerra que chamaram, então, de segunda grande guerra. Matricularam-me no primeiro ano primário. Nós, os meninos, daquela época, divertíamo-nos com tanques de guerra de brinquedo, fazendo guerra. Nossa área militar era o Cine Vitória; seus arredores; nossas trincheiras eram os adultos, qualquer coisa parada. Pelos brinquedos, eles nos queriam ensinar a filosofia da guerra, por essa época mais ou menos ouvi falar em um homem chamado Lenine e ouvi falar na luta dos homens humildes.
Minha primeira professora foi justamente a minha tia Celuta que era casada com Mário Moreira, um jogador profissional, jogava todos os jogos de cartas, era o homem que se vestia melhor em Teófilo Otoni, pertencia a alta sociedade, era querido nesta roda, dançava tango muito bem, um homem para qualquer parada. Ele morreu com várias balas no corpo. Em sua vida teve muitas disputas fora da mesa de jogo. Era um homem elegante, o homem mais pintoso que as mulheres já viram em Teófilo Otoni. Era assim com o Dr. Lourenço e com o Dr. Glicério Pinto. Esse meu tio de quem eu estou falando era um homem que as mulheres mijavam atrás dele, era um aloirado de olhos verdes. Era meu padrinho e eu adorava-o.
*
Eu assisti à primeira missa celebrada no local onde hoje é o Colégio São José. Era um morro. Só o morro. A missa foi celebrada por D José Arns, bispo de Araçuaí. Poucas as pessoas presentes, não mais de cinqüenta, se não me falha a memória. Coloque aí: “se não me falha a memória”, é uma expressão bonita. Eu estava acompanhado de minha tia, uma mulher elegante. Tia Celuta vivia muito bem com o meu tio. Ela não tinha ciúmes, um compreendia o outro. Eu achava que ela compreendia muito mais ele do que ele a ela. Nunca vi uma briga entre os dois, sei que você não acredita nisto, sei que isto parece impossível, mas eu confesso, vivi muito tempo com os dois e nunca os vi de cara fechada.
Na época da guerra, os estudantes do ginásio mineiro depedraram a Igreja dos Alemães, arrebentaram aquilo tudo e o caralho. Vi quando foram destruir e vi a destruição da casa de Chico Esperança, um outro alemão.
Um domingo, um avião colidiu com a torre, um pouco abaixo da cruz, da Igreja Matriz. Acompanhei todos os movimentos das pessoas em torno do acidente. Vi os homens carbonizados, o fogo em pequenas faíscas, consumindo o pouco do que ainda restava. No chão não havia sangue, havia lama, muita lama. Quando aconteceu tudo isto naquela cidade eu era uma criança. “Chô vê” o que tem mais de Teófilo Otoni? Desta época para cá, estudei no Ginásio São José, o ginásio acabou de ser construído, fui um dos seus primeiros alunos, do terceiro ano primário em diante, até o fim do colégio interno. No ginásio, eu gostava de jogar bola, futebol, jogo de botão, bolinha de gude. Neste momento me lembro da música de Ataulfo Alves, Tempo de Criança. Veja o que é ser poeta...
Jogo de botão pela calçada.
Aquilo foi uma dor que eu nunca havia sentido.
Acontece algo interessante...
Eu volto atrás em minha vida.
Espere um pouco.
Tenho uma passagem muito interessante.
Muito bonita.
Eu lembro assim.
Uma passagem assim.
Eu era menino,
na casa do meu avô,
(voltando atrás na historia)
eu estava no balcão, em um dia de movimento.
Minha avó para me meter medo
apontou para um homem mau encarado,
um homem sério, boca fechada.
- Esse homem aí meu filho é um criminoso. Ele matou um outro homem.
Olhei para o homem.
E durante muitos dias admirei aquela imagem de homem perigoso.
*
Cheguei a Teófilo Otoni na época da guerra, anos 40, uma guerra que chamaram, então, de segunda grande guerra. Matricularam-me no primeiro ano primário. Nós, os meninos, daquela época, divertíamo-nos com tanques de guerra de brinquedo, fazendo guerra. Nossa área militar era o Cine Vitória; seus arredores; nossas trincheiras eram os adultos, qualquer coisa parada. Pelos brinquedos, eles nos queriam ensinar a filosofia da guerra, por essa época mais ou menos ouvi falar em um homem chamado Lenine e ouvi falar na luta dos homens humildes.
Minha primeira professora foi justamente a minha tia Celuta que era casada com Mário Moreira, um jogador profissional, jogava todos os jogos de cartas, era o homem que se vestia melhor em Teófilo Otoni, pertencia a alta sociedade, era querido nesta roda, dançava tango muito bem, um homem para qualquer parada. Ele morreu com várias balas no corpo. Em sua vida teve muitas disputas fora da mesa de jogo. Era um homem elegante, o homem mais pintoso que as mulheres já viram em Teófilo Otoni. Era assim com o Dr. Lourenço e com o Dr. Glicério Pinto. Esse meu tio de quem eu estou falando era um homem que as mulheres mijavam atrás dele, era um aloirado de olhos verdes. Era meu padrinho e eu adorava-o.
*
Eu assisti à primeira missa celebrada no local onde hoje é o Colégio São José. Era um morro. Só o morro. A missa foi celebrada por D José Arns, bispo de Araçuaí. Poucas as pessoas presentes, não mais de cinqüenta, se não me falha a memória. Coloque aí: “se não me falha a memória”, é uma expressão bonita. Eu estava acompanhado de minha tia, uma mulher elegante. Tia Celuta vivia muito bem com o meu tio. Ela não tinha ciúmes, um compreendia o outro. Eu achava que ela compreendia muito mais ele do que ele a ela. Nunca vi uma briga entre os dois, sei que você não acredita nisto, sei que isto parece impossível, mas eu confesso, vivi muito tempo com os dois e nunca os vi de cara fechada.
Na época da guerra, os estudantes do ginásio mineiro depedraram a Igreja dos Alemães, arrebentaram aquilo tudo e o caralho. Vi quando foram destruir e vi a destruição da casa de Chico Esperança, um outro alemão.
Um domingo, um avião colidiu com a torre, um pouco abaixo da cruz, da Igreja Matriz. Acompanhei todos os movimentos das pessoas em torno do acidente. Vi os homens carbonizados, o fogo em pequenas faíscas, consumindo o pouco do que ainda restava. No chão não havia sangue, havia lama, muita lama. Quando aconteceu tudo isto naquela cidade eu era uma criança. “Chô vê” o que tem mais de Teófilo Otoni? Desta época para cá, estudei no Ginásio São José, o ginásio acabou de ser construído, fui um dos seus primeiros alunos, do terceiro ano primário em diante, até o fim do colégio interno. No ginásio, eu gostava de jogar bola, futebol, jogo de botão, bolinha de gude. Neste momento me lembro da música de Ataulfo Alves, Tempo de Criança. Veja o que é ser poeta...
Jogo de botão pela calçada.
Eu era feliz e não sabia
Passava as férias na fazenda de meu pai na Colônia, montado em animal, atrás de boi, de meninas e do diabo. Minha mãe tinha uma sanfona de oito baixos, ela tocava valsas e seu compasso era perfeito. Treinei sanfona, Isto com oito anos.
Chegamos no momento em que surgiu o meu primeiro amor. Eu, garoto de calça curta, hem! Fui a um baile no Comércio, na casa de Neneca. O pessoal grande dançava na sala e os meninos num quarto. Tirei uma menina para dançar e passei a amar esta menina desde este dia, foi a minha primeira namorada. Com essa menina vamos ter muita encrenca. Veja, meu amigo, eu gosto desta menina até hoje. Os pais dela eram inimigos de meu pai. Meu pai não deixava por menos em questão de amizade e de inimizade. Ele sabia o instante exato de apertar o gatilho.
Aí entramos nos pontos delicados, delicados por isso, embora nossos pais fossem inimigos inesquecíveis, de longa data, por aí a fora, os filhos não tinham nada a ver com isso, os filhos destas famílias selvagens de honra se encontravam e até amavam, muitas vezes acabando tudo com a ignorância da violência, outras vezes piorando as coisas. Naquele tempo era o tempo de intrigas. Acho que isto nunca acaba, sempre foi o tempo real.
Sou mais conhecido em Teófilo Otoni do que cachaça, por causa do meu gênio, eu sou o Lampião da cidade. Vou falar da família... Opa! Cara, isto é um livro... Hesito, sou muito conhecido. Põe lá, põe lá, a menina se chamava Ivenita Tomich. Ela não se casou até hoje. Nós namorávamos de longe e de vez em quando encontrávamos na casa de uma costureira muito amiga das duas famílias. Em casa de Joaninha de Adailo. Era um tipo de moça velha, encontradiça naquela região, como pedra. Mesmo na casa de Joaninha os papos eram silenciosos e a nossa aproximação imperfeita. Tudo de longe. Por que não nos aproximávamos?
*
Eu montava bem a cavalo, vaquejava bem. De Teófilo Otoni, sai para estudar no sul de Minas, em Passa Quatro. Fomos, eu e meu irmão, internados no Colégio São Miguel. Colégio reservado para filhos de fazendeiros e de pessoas com condições. Ali estudei no primeiro ano ginasial, lá estávamos eu, meu irmão e o filho de um fazendeiro amigo de meu pai, este nosso companheiro era filho de José Barbosa Lima. Eu jogava futebol de ponta esquerda. Houve vários campeonatos. Padre Raul, argentino, que dirigia o esporte, jogava bola de batina, e, até hoje, eu ainda não vi, em um campo, jogador que tivesse o domínio de bola como ele, sem ser profissional. Ele era professor de línguas. Missa de manhã e missa de noite. Toda hora rezando, todo dia, missa na hora em que levantávamos, missa na hora em que íamos deitar. Eu chegava no dormitório quase morto de sono.
Como é esse negócio de ginásio, um gostava de fazer discurso, outro de brincadeiras e todas as brincadeiras fazíamos no pátio. Outros gostavam de escrever no quadro negro. Fazíamos um mural sobre o esporte, cada um assinava um nome tipo o Aranha Negra, o Sombra. Eu assinava o Vingador. Bom, mas você tem que por o nome do filho do fazendeiro, amigo de meu pai, amicíssimo, ele se chamava Firmino. Era eu, Firmino Barbosa Lima e meu irmão, os três de Teófilo Otoni, unidos no colégio de Passa Quatro. Naquele tempo o colégio era tão fino que expulsava por qualquer coisa. Excursionávamos na Serra da Mantiqueira, visitávamos os locais onde ocorreram as batalhas entre mineiro e paulistas. Por aí estou com 15/16 anos.
*
Onde paramos?
- Você estava com 15/16 anos, montava bem a cavalo.
Certo. Tem que dizer que eu não saía da sela. Montar bem todo mundo monta, o que é difícil é não sair da sela quando o cavalo joga, negaceia ou quando é um cavalo novo, inesperado. Entre os vaqueiros destemidos que eu conheci posso citar três, na verdade eles foram muitos, fiquemos em três, eram muitos, foram muitos os homens que eu conheci. O vaqueiro Cecílio foi um deles, quando eu tiver este livro pronto, quero mandar imprimir uns quarenta volumes, um pouco por causa do Cecílio, neste livro eu falo de muita gente. Um momento, tenho que ter cuidado no que falo. Essa gente toda tem filhos, netos, muitos parentes, mas entre os homens valentes, mas valentes como homens, posso colocar o Cecílio, João Freitas e chô ver quem mais, uns três ou quatro homens, Lucas Neto e Ramito, ah muitos outros! Ramito é uma história, é um conto, eu quero lembrar algumas histórias dele, Ramito era um vaqueiro sistemático, ele tinha seus animais escolhidos de montar. Dentre os animais de Ramito, havia um burro, chamado Prateado, um burro sistemático como seu vaqueiro. Ramito conhecia o sistema do burro, compreende? O homem e o burro. O burro tinha um sistema assim, todas as vezes em que Ramito ia montar, ele amarrava o burro no mourão e depois de arriado o burro começava a trotar em volta, aí Ramito gritava o nome do burro e montava. Depois disso, a viagem tinha tudo pra correr tranqüila, ninguém tinha mais velocidade e esperteza e inteligência do que os dois cavaleiro e cavalo, burro.
E o burro pulava, saltava é melhor, pular é uma coisa, saltar é outra. Ele tacava a espora e uns berros, o animal caminhava normal. Nesta hora podia sair qualquer gado na frente que o burro pegava, nesta hora o burro tinha carreira de cavalo, pegava qualquer tipo de rês. Era um animal treinado no campo, faltava falar. Um animal diferente dos outros animais. Essa é a vida do campo
Descanso no serviço
a notícia da lavra,
pedir ao meu pais para consentir
(ia a história envolvendo sonhos).
Em menino tinha uma agilidade como poucos, gato puro, duma esperteza fora do comum, não era matador profissional, nem usava revólver ou punhal,
No lavrado
O homem corrido das outras turmas
- esta é uma história, um conto, de Ramito
que se passou na minha frente - era o homem apavorado que chegava em nosso acampamento o homem pedia socorro.
Ramito perguntou e escutou
O homem corrido disse que quatro homens o perseguiam
O homem vinha cansado, quase mudo, sem fala
havia em tudo muito cansaço
nas coisas, no ar, na pele
no suor que corria
Ramiro conversou,
falou
O homem veio para a minha barraca
Ramiro comandava tudo
A lei era
O homem que veio é de paz
e se ele está aqui é porque não quer briga
não é de briga
e está sob a minha proteção
disse o Ramiro
Está na minha barraca e é de lei
Que ninguém devia querer brigar
Os quatro homens escutaram
Mas eles eram destemidos e entraram.
O que aconteceu?
Ramiro é homem que de quatro metros de distância,
ele armado de punhal
e o outro com arma de fogo,
tem que se saber que espécie de homem é,
porque senão não dá outra coisa
que não Ramito.
Os quatro entraram armados,
Ramito juntou os quatro de ferro, punhal
Um ele anulou logo,
Foi nessa luta que ele caiu dentro da cata,
(só esta parte da luta entrou para a lenda)
quando caiu dentro da cata Ramito tinha o braço ferido
a cata era profunda,
ele escalou a parede com o punhal
de raiva, ele feria a terra
- contam que a terra sangrava -
e de um pulo voltou.
Restava, em segundo, um homem de pé
Uma punhalada eliminou o que restava.
Três morreram na hora,
O outro soubemos depois
Morreu com trinta e poucos dias.
Ramito apareceu cedo, junto com a névoa se dissipando
Trazia vários ferimentos para a sede da fazenda
O braço ferido, quebrado, e a bala no peito.
Pergunto pelo velho dono.
Ele contou toda a história. Eu confirmei.
Ramito ainda está naquelas bandas.
*
Ganhei maior confiança de meu pai/ deixei de estudar para trabalhar. Fiz o exército e classifiquei-me entre os primeiros atiradores.
Depois do Exército, voltei para a fazenda
Quero falar do linchamento do Haroldo
Quero contar que o mesmo povo que linchou
Foi o mesmo povo que fez o Santo Haroldo.
Estava no Tiro de Guerra
Ajudei a procurar o Haroldo
Este fato podemos chamar de um fato pitoresco, não é mesmo?
Pitoresco, não. Como é que chama? É um fato
Pertence à história contemporânea da cidade
O Tiro de Guerra estava ali perto
Atrás do Colégio Mineiro
Eu tirava serviço no morro
Quem vai subindo para o Pau Velho
Vira a esquerda
Uma casa velha
Tinha guarda no morro
Não tinha nada para guardar
Ou para proteger
Tudo estava bem protegido
Só havia conversa
destas de botequim
Vigiar o quê?
O Clarim era comigo
Clarinetista do Tiro
A gente entra nos fatos pitorescos estes fatos entram na vida da gente
Testemunha ocular da história, uai?!
Contando o caso de Haroldo
o empregado do cinema
linchado em via pública
pelo bem público.
Eu assisti ao linchamento
Via a chegada dele
Preso em Itambacuri/ não põe Itambacuri nisto não/
Itambacuri não tinha nada a ver com a história/
Preso na Rio-Bahia, fica até melhor
Era noite de chuva
Esqueci o nome da moça
Vai ver que merecia morrer
Vai ver que merecia morrer.
De Haroldo ninguém esquece.
Põe que era moça,
de tradicional família mineira,
destas que mito falam de honra,
que sabem muito bem o que é ultraje,
vergonha, decência e o que é a falta de tudo isto.
O crime foi de noite
No outro dia de manhã
a rádio de TO Z Y X – 7,
cagueto até o nome da rádio, aquilo foi um absurdo,
a rádio anuncia que Haroldo fora preso
perto...
não na Rio-Bahia,
que chegaria naquele momento,
que estava a caminho,
que tinha que ser eliminado,
a rádio pertencia também a esta tradicional
família proprietária mineira
que muito entende das palavras ultrajes
de honra e desonra
De pudor e de impudor
Que fala de amor e de desamor
os únicos que sentem
e falam o que sentem
Sempre fui do lado dos humildes
Na praça ninguém falava a favor de Haroldo
ou a favor de um julgamento sensato
ou pela justiça
Era a justiça dos covardes e dos irracionais
e pior para a minha história - eu estava do lado dos
covarde e dos irracionais
Tenho nojo disto - é uma mancha ruim
Estranho fenômeno de covardia coletiva
Ninguém falava contra a voz geral e todos eram contra a voz geral.
Acho que tem uns momentos no comportamento coletivo em que todos se contaminam no desejo de ver correr o sangue.
O que acontece com o nosso povo?
O que acontece?
As mãos da gente parecem temer, os pés da gente parecem se apoiarem apenas no medo. O que é isso?
Naquela época, naquele momento, se em mim indicassem um carrasco, Haroldo teria que se lidar comigo feito carrasco
eu executaria sem vacilar,
pobre de mim depois.
Ouvi a mãe da moça falar
(estava na casa da mãe da moça
assassinada por tara,
põe tara, não põe amor)
que prendessem Haroldo, mas não o matassem.
O povo invadiu o carro da polícia
Duas mil pessoas, diziam, eu não acredito nesta conta
Exagerada! Sim.
Haroldo foi tomado das mãos da polícia
Antes: entregue pelas mãos da polícia à população sedenta
Houve várias detonações
Haroldo correu, gritos, agarra, agarra, fugiu, agarra
E o povo gritava: Mata! Mata! Mata!
*
Quando falar da morte de Clemente Borges, vou falar de Tim Garrucha, ele é meu amigo. Ele é comunista! Se é mesmo não sei. Talvez um homem do povo da nossa cidade com todas as dificuldades da nossa gente e as suas hesitações.
- O homem morreu?
- Quem? Anh! Não. O povo tá gruda, não gruda, você vai matar? Mata! Aí o povo matou. Trucidou Haroldo. Não vou encompridar a história. Mata logo aí no livro também. Tem muita gente envolvida nisto e eles estão vivos, todos aqueles que ficaram orgulhosos com a fama de valente que ganharam em outras cidades por causa de uma reportagem da revista “O Cruzeiro”.
O que eu quero dizer é isto
O que eu quero dizer é que não tenho superstição comigo
É que este povo que concorreu (concorreu fica muito feio)
que matou (é mais direto) que matou Haroldo
Imagine só!
Andam dizendo agora que Haroldo faz milagres. O mesmo povo fez de sua vítima um santo, Santo Haroldo. Parece que descobriram que mataram um inocente. Ou que descobriram suas mãos sujas de sangue.
Santo Haroldo!
Eu digo isto porque eu não tenho superstição e não acredito nestas coisas.
Pode por isto aí.
*
Só vou contar o caso de Clemente Borges para sair fora de Teófilo Otoni. O mesmo caso aconteceu com Clemente Borges. Deram a fama a ele de ser o maior pistoleiro de lá. Criam o perigoso, criam o perigo para fabricar o herói. Era um próspero fazendeiro, homem honesto como todos os honestos do Mucuri. Clemente Borges era um trabalhador e que a própria justiça fez um bandido. Isto ele falou, eu o ouvi dentro de minha casa. Que o Clemente matou o Gouveia, o curandeiro Gouveia, lá daquele lado seu, da zona de Belo Horizonte, matou. Matou o Gouveia e um camarada Bigode, porque Gouveia abusou da família de Clemente Borges, invadiu-lhe a residência, atirou nos retratos da família de Clemente que não estava em casa, humilhou todos os que estavam lá, o que fizeram, em que consistiu esta humilhação, ninguém sabe. Nunca Clemente nem ninguém falou. Foi coisa muito séria. Conheci Clemente de perto, fiz negócios com ele e fiz negócios para ele no Espírito Santo. Clemente, depois do que aconteceu, da invasão de sua casa pelo Gouveia e Bigode, tornou-se um homem desesperado. Ele era inteligente e um homem inteligente assim se mostra mesmo no desespero, em volta de um homem desesperado apareceu uns urubus diferentes dos que nós conhecemos, são os invejosos, os ambiciosos da fortuna fácil, todos esses indivíduos-aves, geralmente parentes, precipitam sobre o homem desesperado porque sabem que ele é mais da metade de um cadáver. Todos queriam tomar o que Clemente possuía, inclusive gente que eu poderia dizer aqui... Dizem que ele foi morto mandado, que os assassinos de Clemente ganharam para fazer o trabalho. Aqui na cadeia chamam o crime que produz lucro de trabalho ou de serviço. Mataram o Clemente na entrada da cidade. Tim que nascia como homem público foi quem deu sepultura para Clemente. Põe aí: foi inveja, muita inveja, que matou o Clemente Borges. Medo e inveja. E usura. Usura mesmo, estavam doidos para matar Clemente, queriam tomar o que ele tinha. E tomaram.
Gouveia ficou rico como curandeiro, o povo ajoelhava nos pés dele em devoção igual a Cristo, Clemente matou-o na estrada de peito aberto, homem a homem, sem tocaia, na frente, a uma distância regular, na frente de Clemente tombou um covarde.
Gouveia era desses curandeiros safados que andam por aí.
Depois disto
aqui começam os meus crimes.
Aqui começam umas confusões doidas, nem eu entendo.
(pausa)
Não vou contar os meus crimes, tenho que pensar primeiro, vamos parar por aqui, vou pensar, depois a gente continua.
a notícia da lavra,
pedir ao meu pais para consentir
(ia a história envolvendo sonhos).
Em menino tinha uma agilidade como poucos, gato puro, duma esperteza fora do comum, não era matador profissional, nem usava revólver ou punhal,
No lavrado
O homem corrido das outras turmas
- esta é uma história, um conto, de Ramito
que se passou na minha frente - era o homem apavorado que chegava em nosso acampamento o homem pedia socorro.
Ramito perguntou e escutou
O homem corrido disse que quatro homens o perseguiam
O homem vinha cansado, quase mudo, sem fala
havia em tudo muito cansaço
nas coisas, no ar, na pele
no suor que corria
Ramiro conversou,
falou
O homem veio para a minha barraca
Ramiro comandava tudo
A lei era
O homem que veio é de paz
e se ele está aqui é porque não quer briga
não é de briga
e está sob a minha proteção
disse o Ramiro
Está na minha barraca e é de lei
Que ninguém devia querer brigar
Os quatro homens escutaram
Mas eles eram destemidos e entraram.
O que aconteceu?
Ramiro é homem que de quatro metros de distância,
ele armado de punhal
e o outro com arma de fogo,
tem que se saber que espécie de homem é,
porque senão não dá outra coisa
que não Ramito.
Os quatro entraram armados,
Ramito juntou os quatro de ferro, punhal
Um ele anulou logo,
Foi nessa luta que ele caiu dentro da cata,
(só esta parte da luta entrou para a lenda)
quando caiu dentro da cata Ramito tinha o braço ferido
a cata era profunda,
ele escalou a parede com o punhal
de raiva, ele feria a terra
- contam que a terra sangrava -
e de um pulo voltou.
Restava, em segundo, um homem de pé
Uma punhalada eliminou o que restava.
Três morreram na hora,
O outro soubemos depois
Morreu com trinta e poucos dias.
Ramito apareceu cedo, junto com a névoa se dissipando
Trazia vários ferimentos para a sede da fazenda
O braço ferido, quebrado, e a bala no peito.
Pergunto pelo velho dono.
Ele contou toda a história. Eu confirmei.
Ramito ainda está naquelas bandas.
*
Ganhei maior confiança de meu pai/ deixei de estudar para trabalhar. Fiz o exército e classifiquei-me entre os primeiros atiradores.
Depois do Exército, voltei para a fazenda
Quero falar do linchamento do Haroldo
Quero contar que o mesmo povo que linchou
Foi o mesmo povo que fez o Santo Haroldo.
Estava no Tiro de Guerra
Ajudei a procurar o Haroldo
Este fato podemos chamar de um fato pitoresco, não é mesmo?
Pitoresco, não. Como é que chama? É um fato
Pertence à história contemporânea da cidade
O Tiro de Guerra estava ali perto
Atrás do Colégio Mineiro
Eu tirava serviço no morro
Quem vai subindo para o Pau Velho
Vira a esquerda
Uma casa velha
Tinha guarda no morro
Não tinha nada para guardar
Ou para proteger
Tudo estava bem protegido
Só havia conversa
destas de botequim
Vigiar o quê?
O Clarim era comigo
Clarinetista do Tiro
A gente entra nos fatos pitorescos estes fatos entram na vida da gente
Testemunha ocular da história, uai?!
Contando o caso de Haroldo
o empregado do cinema
linchado em via pública
pelo bem público.
Eu assisti ao linchamento
Via a chegada dele
Preso em Itambacuri/ não põe Itambacuri nisto não/
Itambacuri não tinha nada a ver com a história/
Preso na Rio-Bahia, fica até melhor
Era noite de chuva
Esqueci o nome da moça
Vai ver que merecia morrer
Vai ver que merecia morrer.
De Haroldo ninguém esquece.
Põe que era moça,
de tradicional família mineira,
destas que mito falam de honra,
que sabem muito bem o que é ultraje,
vergonha, decência e o que é a falta de tudo isto.
O crime foi de noite
No outro dia de manhã
a rádio de TO Z Y X – 7,
cagueto até o nome da rádio, aquilo foi um absurdo,
a rádio anuncia que Haroldo fora preso
perto...
não na Rio-Bahia,
que chegaria naquele momento,
que estava a caminho,
que tinha que ser eliminado,
a rádio pertencia também a esta tradicional
família proprietária mineira
que muito entende das palavras ultrajes
de honra e desonra
De pudor e de impudor
Que fala de amor e de desamor
os únicos que sentem
e falam o que sentem
Sempre fui do lado dos humildes
Na praça ninguém falava a favor de Haroldo
ou a favor de um julgamento sensato
ou pela justiça
Era a justiça dos covardes e dos irracionais
e pior para a minha história - eu estava do lado dos
covarde e dos irracionais
Tenho nojo disto - é uma mancha ruim
Estranho fenômeno de covardia coletiva
Ninguém falava contra a voz geral e todos eram contra a voz geral.
Acho que tem uns momentos no comportamento coletivo em que todos se contaminam no desejo de ver correr o sangue.
O que acontece com o nosso povo?
O que acontece?
As mãos da gente parecem temer, os pés da gente parecem se apoiarem apenas no medo. O que é isso?
Naquela época, naquele momento, se em mim indicassem um carrasco, Haroldo teria que se lidar comigo feito carrasco
eu executaria sem vacilar,
pobre de mim depois.
Ouvi a mãe da moça falar
(estava na casa da mãe da moça
assassinada por tara,
põe tara, não põe amor)
que prendessem Haroldo, mas não o matassem.
O povo invadiu o carro da polícia
Duas mil pessoas, diziam, eu não acredito nesta conta
Exagerada! Sim.
Haroldo foi tomado das mãos da polícia
Antes: entregue pelas mãos da polícia à população sedenta
Houve várias detonações
Haroldo correu, gritos, agarra, agarra, fugiu, agarra
E o povo gritava: Mata! Mata! Mata!
*
Quando falar da morte de Clemente Borges, vou falar de Tim Garrucha, ele é meu amigo. Ele é comunista! Se é mesmo não sei. Talvez um homem do povo da nossa cidade com todas as dificuldades da nossa gente e as suas hesitações.
- O homem morreu?
- Quem? Anh! Não. O povo tá gruda, não gruda, você vai matar? Mata! Aí o povo matou. Trucidou Haroldo. Não vou encompridar a história. Mata logo aí no livro também. Tem muita gente envolvida nisto e eles estão vivos, todos aqueles que ficaram orgulhosos com a fama de valente que ganharam em outras cidades por causa de uma reportagem da revista “O Cruzeiro”.
O que eu quero dizer é isto
O que eu quero dizer é que não tenho superstição comigo
É que este povo que concorreu (concorreu fica muito feio)
que matou (é mais direto) que matou Haroldo
Imagine só!
Andam dizendo agora que Haroldo faz milagres. O mesmo povo fez de sua vítima um santo, Santo Haroldo. Parece que descobriram que mataram um inocente. Ou que descobriram suas mãos sujas de sangue.
Santo Haroldo!
Eu digo isto porque eu não tenho superstição e não acredito nestas coisas.
Pode por isto aí.
*
Só vou contar o caso de Clemente Borges para sair fora de Teófilo Otoni. O mesmo caso aconteceu com Clemente Borges. Deram a fama a ele de ser o maior pistoleiro de lá. Criam o perigoso, criam o perigo para fabricar o herói. Era um próspero fazendeiro, homem honesto como todos os honestos do Mucuri. Clemente Borges era um trabalhador e que a própria justiça fez um bandido. Isto ele falou, eu o ouvi dentro de minha casa. Que o Clemente matou o Gouveia, o curandeiro Gouveia, lá daquele lado seu, da zona de Belo Horizonte, matou. Matou o Gouveia e um camarada Bigode, porque Gouveia abusou da família de Clemente Borges, invadiu-lhe a residência, atirou nos retratos da família de Clemente que não estava em casa, humilhou todos os que estavam lá, o que fizeram, em que consistiu esta humilhação, ninguém sabe. Nunca Clemente nem ninguém falou. Foi coisa muito séria. Conheci Clemente de perto, fiz negócios com ele e fiz negócios para ele no Espírito Santo. Clemente, depois do que aconteceu, da invasão de sua casa pelo Gouveia e Bigode, tornou-se um homem desesperado. Ele era inteligente e um homem inteligente assim se mostra mesmo no desespero, em volta de um homem desesperado apareceu uns urubus diferentes dos que nós conhecemos, são os invejosos, os ambiciosos da fortuna fácil, todos esses indivíduos-aves, geralmente parentes, precipitam sobre o homem desesperado porque sabem que ele é mais da metade de um cadáver. Todos queriam tomar o que Clemente possuía, inclusive gente que eu poderia dizer aqui... Dizem que ele foi morto mandado, que os assassinos de Clemente ganharam para fazer o trabalho. Aqui na cadeia chamam o crime que produz lucro de trabalho ou de serviço. Mataram o Clemente na entrada da cidade. Tim que nascia como homem público foi quem deu sepultura para Clemente. Põe aí: foi inveja, muita inveja, que matou o Clemente Borges. Medo e inveja. E usura. Usura mesmo, estavam doidos para matar Clemente, queriam tomar o que ele tinha. E tomaram.
Gouveia ficou rico como curandeiro, o povo ajoelhava nos pés dele em devoção igual a Cristo, Clemente matou-o na estrada de peito aberto, homem a homem, sem tocaia, na frente, a uma distância regular, na frente de Clemente tombou um covarde.
Gouveia era desses curandeiros safados que andam por aí.
Depois disto
aqui começam os meus crimes.
Aqui começam umas confusões doidas, nem eu entendo.
(pausa)
Não vou contar os meus crimes, tenho que pensar primeiro, vamos parar por aqui, vou pensar, depois a gente continua.
*
Conte como se fosse um outro, não dê seu nome, conta como se fosse a história de uma outra pessoa, como é sua história poderá tratar o personagem que é e não é você com toda a liberdade de crítica e de construção, sendo, o que é mais importante, honesto.
(pausa)
Naquele tempo a gente usava muito a estrada de ferro Bahia-Minas (baiminas). A maior fumaça, era um gozo, nunca chegava na hora, quando dava um sopro queimava o povo com a brasa e a fumaça quente. O povo usava aqueles chapéus bacanas de cowboy e tinha que tirar logo para não estragar, aí as pessoas sem proteção queimavam o rosto. No fim da viagem havia muito cabelo queimado. Os maquinistas paravam para pescar. Todos os maquinistas que conheci viajavam bêbados. Era difícil passar nesta estrada de ferro uma pessoa que no final da vigem não chegasse queimado e empoeirado. Certa vez, de repente, começou uma gritaria, a máquina partiu sozinha com o maquinista bêbado e deixou os vagões, o povo gritou até perder o fôlego: Volta, vem buscar a gente. A máquina se afastava tranqüila e foi embora. Põe assim, a estrada de ferro, na verdade, trouxe progresso à região, um progresso fabuloso, a gente tem que brincar e elogiar também. Falar a verdade. Na economia da nossa região a estrada de ferro fez muito.
*
Tia Zélia era agente, tia agente, trabalhava no correio, ela e o marido dela, tio Júlio Pereira. Ela era muito correta como todas as mulheres muito corretas, dessas que gostam de fazer tudo direitinho, muito certo, embora o serviço do correio estivesse sempre atrasado ela gostava do serviço certo, qualquer hora os habitantes do lugar podiam solicitar os serviços da agente dos correios, ela era admirada em Bias Fortes.
*
De que outra coisa eu lembro? A corrida do centenário. O carro dez venceu a corrida na rota SP-GB-TO. Era um acontecimento. À noite os rádios estavam ligados no Repórter Esso e ouvimos Heron Domingues noticiar a corrida. Sete horas do Rio e TO em estrada de barro, é muito fôlego. Até 50 as máquinas eram alinhadas, você olhava assim e pareciam que tivessem saído da fábrica.
*
Tango bolero valsa era um tempo bom, o cabaré do Rachid, cabaré do Filhinho.filhinho foi o homem que mais carregou transporte para aquela região de TO, Rio-TO, TO-Rio.
- Ia para mexer com transporte e pra mexer com mulheres
- Maria Bom Jardim...
*
Tenho que contar o caso de minha irmã, essa Celma, essa que está lá pra casa do caralho. Ela um dia me disse que todos os homens são canalhas, eu não me esqueci disso, não me lembro de ter dado uma resposta a ela, hoje eu tenho uma resposta.
Tenho vontade de ter podido dizê-la.
- De fato, aqui no Ocidente, onde estão os países capitalistas, estão todos os homens que são canalhas. Os homens do ocidente são uns canalhas. De fato é mesmo. E ela tem razão.
Era uma época em que se a gente fosse a uma delegacia dar parte de outro, a gente se sentia humilhado, era uma época em que os homens tinham vergonha, pelo menos é assim lá pelo nosso lado. Era uma época em que os homens tinham vergonha e pudor, hoje as meninas nascem putas.
E conforme falou o almirante B Halsy:
Não há grandes homens, há apenas grandes desafios que os homens comuns são forçados pelas circunstâncias a aceitar.
- Quem falou isso?
Um almirante, Almirante... não põe o nome desse filha da puta, é americano, ele não presta.
Não sei como um homem pode falar com poucas palavras uma coisa tão certa. Eis o que disse outro grande filho da puta, Konrad Adenauer sobre a história: A história é a soma total das coisas que poderiam ter sido evitadas.
- Os homens que merecem monumentos não precisam deles.
- Quem disse isso?
- Também não vou dizer para você deixar de ser burro e porque também este filho da Puta pode ser outro envolvido com os americanos, eles pagam alguém para escrever qualquer coisa nos discursos deles.
*
Falar de meus crimes eu não vou falar. Esse último crime eu falo. O crime pelo qual fui condenado. Minha irmã, essa irmã que está longe, escreveu pra mim dizendo que eu tinha matado um amigo, que eu não tinha coração. Eu fui um bruto, muito bruto.
Eu disse que antes eu mataria um amigo meu do que um desconhecido, matando um amigo eu sei quem eu estou matando. Quando se mata um amigo é porque o erro é grave.
- Os nosso piores inimigos são muitas vezes os amigos a quem um dia falamos como só a um amigo se pode falar.
Aqui de dentro da cadeia a gente tem tempo para analisar o mundo.Compreender a podridão do mundo. Não existe honestidade nos homens. Todos são uns canalhas. Todos, eu digo, a maioria. Há uma minoria, eu me incluo nesta minoria, por enquanto, mas muitas vezes fui canalha.
Eu sei que “a civilização é apenas um lento processo de aprender a ser bom”.
Até quando estaremos tomando lições?
Até quando necessitamos aprender a ser bons?
Quantos anos, quantos séculos? Até que eternidade?
Enquanto existir o dinheiro, como a mola mestra de tudo, do capital, enquanto existir esta praga seremos maus, nunca seremos bons.
Mas na verdade eu tenho cá as minhas dúvidas.
Acho que mesmo depois ainda estaremos aprendendo a ser bons.
IV
Queria poder cantar alto minha música. Sem molestar ninguém com a minha voz amusical. Cantar alto. Só quem quisesse poderia escutar o meu canto. Ninguém mais. Ou só eu escutar. Todo mundo passar ninguém me ver. E dizer que o canto é belo, a música não presta. Só eu no mundo igual. Gritar para saber estar de acordo comigo mesmo onde entendo que vivo. Os outros passam. Em cada encontro, em todos me vejo. Sou herói e sou bandido, sou ladrão, roubo e mato. Sorrir e chorar, também sei. Aprendi, rápido e repetidas vezes por isso agora meu talento veio à tona. No meu mundo tudo existe. O louco e o sábio. Tem uma estrela, um sol, tem eu, eu e mais eu. Tudo fica mais fácil em mim, eu me compreendo. Quando erro, quando acerto. Quem quer que seja que acerte são todas as pessoas menos eu, e faço questão de errar. Agora perdido em mim mesmo grande busquei-me nos outros onde me degradei, assim volto a mim e sei que o regresso foi falso. Onde encontrar-me? Minha música é assim muda, sem sons, perdida. Vou cantá-la. Entendê-la é o de menos. Canto com toda a voz a essência do querer.
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(1) Urucu (do tupi transliterado uru-ku = "vermelho") ou urucum pode referir-se a qualquer uma das seguintes áreas ou assuntos:
Urucu (condimento): condimento preparado à base de sementes dessecadas e trituradas de urucu (planta), comumente misturado com outros grãos (principalmente milho) também dessecados e triturados, em teores variáveis.
Urucu (planta): gênero de plantas da família das bixáceas (Bixaceae), com usos vários em culinária, em estética e em medicina.
Urucu (tribo indígena): indivíduo dos urucus, tribo brasilíndia extinta, da família lingüística botocudo, que habitava o leste de Minas Gerais, na divisa com Espírito Santo, ambos Unidades federativas do Brasil
http://pt.wikipedia.org/wiki/Urucu
(2) Epaminondas Ottoni virou nome de rua e de distrito no Estado de Minas Gerais. Antes, Epaminondas Esteves Ottoni (1862-1918) foi político, engenheiro e fazendeiro. Fiscal da estrada de ferro Bahia-Minas. Foi vereador, deputado estadual, senador estadual e deputado federal. Pertenceu ao PRM, Partido Republicano Mineiro.
Registro
1. Zequinha, José Dantas Pereira da Silva, José Pereira da Silva, cumpriu pena a que foi condenado pelo assassinato de um amigo. Tempos depois, ele foi assassinado a mando dos próprios pais, também condenados pelo crime, mas que não cumpriram a pena pela idade avançada.
1. Zequinha, José Dantas Pereira da Silva, José Pereira da Silva, cumpriu pena a que foi condenado pelo assassinato de um amigo. Tempos depois, ele foi assassinado a mando dos próprios pais, também condenados pelo crime, mas que não cumpriram a pena pela idade avançada.
2. Conheci Zequinha na Penitenciária Agrícola de Neves, em Ribeirão das Neves, Minas Gerais. Durante algum tempo, conversamos nos intervalos das aulas de música. Ele um saxofonista, dono do próprio sax, que o acompanhava pelas galerias, e eu um aprendiz de clarineta (jamais atravessei esta etapa do aprendizado, meu interesse era ouvir as histórias do Zequinha e do Mucuri).