quarta-feira, 18 de novembro de 2009

PATRIMÔNIO

Para o vaqueiro Nagib, pai de Rivaldáver



O céu escurece. Escuro de breu. Fim de mundo. Céu sem lua, sem estrelas, céu bravo. Céu gigante. Era um céu assim.


O vento tornara-se cuidadoso. As respirações escapavam, iam e vinham. Nenhum ouvido ouvia. As folhas, tingidas pelo imenso escuro, dependuradas na mata, na estrada, no Patrimônio.


Era o Patrimônio um aglomerado de casas, dois quilômetros para o sul de São Mateus, (você, ainda ouvirá falar deste lugar). Muitos chamavam o lugar de Patrimônio dos Martins. Pode ser.


Lá vivia o velho negro, o pião Mata-tudo, caçador, dono de cães mateiros, os melhores num raio conhecido e vivido de cinqüenta quilômetros.




Nestas noites sem graça, noites dos infernos, se alguém tivesse coragem de caminhar, esse alguém era o velho Mata-tudo, homem de coragem, coragem de gente calma e brava. Mata-tudo nunca matou em sua vida de caçador utilizando arma de fogo. Sua especialidade, seu destemor, sua mão certeira surpreendia o animal na armadilha, na fuga, no pulo, no susto. Quantas semanas não andou percorrendo matas fechadas, o desejo de vingança atrás de uma sucuri-bico-de-jaca, atrás do animal compunha o jogo. Quem dava as regras era ele, quem jogava com o tempo era ele. O jogo da provocação, da fuga, da perseguição, da emboscada. Não surpreendia o animal para uma luta desesperada, persuadia-o a fugir, tomava-lhe os alimentos. Sua melhor arma era a observação, corria o dia inteiro recolhendo detalhes, o conhecimento daquela luta de todos os tempos.





Nessa noite escura, o Mata-tudo estava sentado no início da mata, como um dono daquilo ali, olhando a estrada dos homens.


Um carro do Patrimônio saiu da estrada e parou. Uma voz de mulher rompe a escuridão. Os faróis ficam acessos. Dona Lurdes, mulher de Aníbal Martins, vinha de São Mateus com o cunhado, Antenor. Dona Lurdes não tinha nada de mulher formosa. Era feia, magra e tinha o nariz feito um gancho de mão de pirata. Da mulher, tinha a mocidade. Gente criada com luxo, ela tinha mania de grandeza. Aníbal, seu marido, era um homem bom, homem trabalhador que cansou daquelas minhocas na cabeça da mulher e decidiu se separar. Aníbal a apoiou em sua vida sozinha. Dona Lurdes voltava sempre na casa de Aníbal, que era homem calmo, que nunca brigou com ela, que nunca a desrespeitou. Para humilhar aquele homem, Lurdes passou a viver de qualquer jeito, fazendo questão de que os amigos de Aníbal soubessem do que se passava. Aníbal sorria. Lurdes tornou-se amante do cunhado, passou a se encontrar com Antenor.





Um vulto que não era o vulto do velho Mata-tudo aproximou-se do carro. Havia mais alguém nas proximidades. Seis punhaladas certeiras vararam o homem e a mulher. O assassino saiu apressado.


A arma caiu. Não perderia tempo. No entanto, meia hora depois voltou. Vasculhou tudo nas imediações do carro. Fez uma busca cautelosa, utilizou de uma lâmpada e foi preciso. Todo o terreno, palmo a palmo, nada. No outro dia, o Patrimônio comentava o crime. Um amante apaixonado de Lurdes foi preso, Aníbal depôs. Nenhum suspeito ficou detido. A polícia que chegou, imponente, voltou para a Comarca sem nada.


No Patrimônio, assim como na sede da Comarca, a opinião da população absolveria qualquer criminoso que tivesse sido apontado pela polícia como autor do duplo homicídio.

O velho Mata-tudo, tempos depois, abordou Aníbal.



- Doutor, este punhal é seu. O senhor deixou cair.


- Onde o encontrou?

- Dois metros de minha armadilha. A gente não deve misturar amor e ódio. O senhor teve ódio, por isso deixou cair a arma.

- Dê-me este punhal, Mata-tudo.

- Eu esqueci de limpar o sangue do seu irmão.


Aníbal não se contenta em conversar, avança furioso. E se denunciasse o velho Mata-tudo como o assassino?! Assim, Aníbal dá o alarme e grita pelos seus empregados.


- Assassino!


Grita para o velho, que entende a gritaria e a manobra de Aníbal.

A resposta do velho Mata-tudo é direta, imediata.


- Eu? O assassino? Sim, sim! Sei, exato! Sou. Serei!.


O punhal entra certeiro no peito de Aníbal cujo peso toma a arma da mão do velho Mata-tudo.


- Sinto muito doutor que o sangue do seu irmão tenha se misturado com o seu.