quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

NA ESTRADA DE PASSAGEM


Um único mergulho




Para seu Adelino Correia, dono do Igarapé dos Poços



Antes do sol, há o silêncio. Silêncio, só. O silêncio e um lúgubre e volátil pirilampo. Um silêncio exatamente do tamanho daquela planície. Nada se move na pequena vila. Antes de tudo, um som. Antes, antes, primeiro, o movimento. O som: um rádio fala do segredo das casas comerciais de uma cidade maior e distante. Depois soa a voz escalada e escaldada do locutor, eram as horas. Tantas e tantos.



Depois do silêncio, outros movimentos harmoniosos compõem a paisagem. Uma mulher desce a encosta. Estes pequenos morros caindo na água são as costas largas, curtas, sujas e limpas dos pequenos comércios da ribanceira.



A mulher que desce chama-se Ada Laura. Por que Ada? Por que Laura? Ela vai ao rio, vai ao seu banheiro e à sua pia. Displicente, ela escova os dentes. Habituada a andar e a fazer as coisas, ao mesmo tempo com a exatidão de longos exercícios, ela não troca os passos nem as escovadas. Para Ada Laura, o tempo deve ser aproveitado duplamente; se for possível, que se faça três, quatro coisas ao mesmo tempo. Depois do rádio, depois dos passos de Ada Laura no caminho do igarapé, outros sons e outros movimentos surgiram.



Na mesma direção do rio segue João das Puças. Do lado esquerdo do Porto das Barcas, há um desvio para o açaizal do Seu Miguel, ali Ada Laura se banha. Ela escutou passos sobre o capim molhado. Ao contrário do que sempre fazia, dar o sinal de ocupado com um grito, Ada Laura saiu da água, juntou suas peças de roupa e se escondeu.



João anunciou sua chegada. Perguntou se tinha gente. Não. Ninguém respondeu. Não tinha gente. João aproximou-se, desceu até a água, lavou o rosto, a boca, tirou o calção e mergulhou. Nadou dois metros e depois desapareceu num mergulho. Neste instante, o tempo para Ada Laura não mais seria contado segundo por segundo. Ada esperou que João voltasse à tona. Nada. E o tempo passava no tempo marcado por Ada Laura. João mergulhou no infinito. Desaparecia. Sumia. Ela lembrou do que falaram no nascimento de João e do seu nome esquisito. João das Puças! Puças? Puças? Irritada com a demora, Ada vacilava - sair ou não sair do seu lugar, gritar ou não gritar por socorro. Certamente, João sofrera um ataque, tivera câimbra ou um ataque convulsivo como os de Nestor.



Preocupada, Ada Laura levantou-se.





Foi o seu erro, um azar, um descuido, um azar ou o início daquilo tudo. Neste exato momento, João das Puças erguia-se do fundo da água.


Ada nascia do meio do mato, João do meio da água.





O susto conjugado impediu qualquer gesto capaz de enrubescer a nudez dos dois. Ada Laura lembra que viu o dia sair da noite, que ouviu a corrida singela de um coelho. Lembra que disse não. E que sua voz não saiu. E que o não, não saiu. Não houve não. Ada Laura, no desvio do Porto das Barcas, junto ao açaizal do velho Guidoval, depois de ter lavado o seu corpo, depois de ter escovado os dentes voltou para casa.


Ada Laura amanheceu disposta. E alegre.


*


Isto foi em outros tempos, aqui nesse mesmo dia, nesse mesmo rio, nessa mesma margem, nessas costas pálidas do rio, caminhando pelo Porto das Barcas, o açaizal varrido pelo asfalto, encontrei-me com Ada Laura.


Agora, Ada, a Louca. Trazia rugas no rosto. Ela contou-me essa história.


Ada Laura me apontou um lugar. Ada Louca Laura riu e eu também ri. Ela me pediu para mandar fazer uma fotografia. No sorriso dela só tristeza. Tristeza e silêncio. Só.



Um riso estrangulado explode. Não sei de quem era o riso. Havia muita amizade. Sim, muita amizade. A amizade que todo homem tem pelos loucos e marginais.




Ada Laura e Louca ainda falou-me do que era uma mulher como ela, tida por louca, só, e que, unicamente, gostava de percorrer com os seus passos pelos cantos que lhe lembravam João das Puças, que, em outro mergulho, no infinito ficara.




Gostava apenas de estar naquela margem que lhe trazia de volta a maneira água, terra, mato, silêncio, força, dúvidas, cheiros e alegria de ser João.


Esta era a sua loucura, a sua única loucura. Ser, na margem, também João das Puças. Puças?



Ada, Laura, Louca, nunca me disse o porquê “das Puças”. Seria João dos Poços, poço que virou puça.


KKKKKKKKKKKKKKKK



Ela ria e seu sorriso vestia de novo seu rosto de menina e mulher. Ela guardava muito bem seu segredo: o nome.