
As paredes da casa de Baunilhas
Do depoimento de Edilson Fuentes
Ligou o projetor. Depois do incêndio, devolveram-lhe o que sobrou. Uma foto, um pedaço de filme, Dirce Maria, lá atrás a praia e Maria brincando como uma criança. O segundo plano, em que Maria e a criança estavam, mal dava para identificar seus traços. Apenas sabia que eram elas. Como poderia ter acontecido aquilo? Certo que Trejussaras seja uma praia de brinquedos e popular...as duas numa mesma foto, Dirce Maria e Maria? Incrível!
Dirce Maria possuía um corpo forte de menina. A conheci quando estávamos no inferno. A luta para sobreviver se era difícil para muitos para outros um novo dia era um milagre. Naquela época, os dois se voltaram um para o outro ao mesmo tempo. Era a sobrevivência. A união. A solidariedade entre lutadores, um imperativo.
Ninguém escapava da solidariedade.
Depois dali, muita coisa acontecera. Depois daquele instante, Dirce Maria conhecera diversos homens e os amara como amam as mulheres. Um ser. Era o que imaginara. Não souberam a hora da separação. A guerra os unira.
Apenas, a guerra, nada mais.
Acompanhava, agora, os olhares dela, acompanhava seus pensamentos, talvez se estivesse perto teria dado-lhe um murro na cara e pronto. Nunca mais quereria ver aquela geringonça em sua frente. Aquilo do murro era impossível. Havia as grades, havia algo diferente. Era outra a espécie de sentimentos que ele experimentava por aquela mulher que lhe escrevia versos e que escrevia versos também para todos os outros presos.
Talvez ele se tornara um malandro, um gigolô do sentir.
Não entendia nem a sua e nem a mutação ou... constância dela.
Não queria a compreensão: para quê?
Não entendia nada. Para que? Entender o comportamento de uma mulher. Entender uma mulher! Uma ex-mulher? Entender que era um outro! Nada disso, foda-se. Não faria o papel do marido-psiquiatra, como o marido de Maria Augusta, que amontoou vários livros sobre a infidelidade, volumes espalhados por todo o quarto, em cima do guarda-roupa, debaixo da cama.
Quando Maria Augusta deixou o marido e mudou, com toda a sua infidelidade para o apartamento na avenida Amazonas, ela levou o guarda-roupa e deixou os livros.
Seria aquilo agora, entre ele e Dirce Maria, um castigo dos céus, obra do destino, Resultado de algumas pragas! Ele, justamente ele que vivera com tantas mulheres, com tantas donas casadas ... ah! Bah! Não dava mesmo para entender. Superstição é bobagem. Possivelmente, o destino de todo bom garanhão, classe qualquer, nesta sociedade seja cornear até os trinta e ser corneado dos trinta em diante. Conformar-se com o destino, partir para o celibato, casar com uma freira, semi-emparedar a mulher, em paredes reais, virtuais ou em fantasias, ou seguir os conselhos de Sérvulo e pedir à mulher para não deixarem estragar a bocetinha.
- Vai, dizia Sérvulo Norton, vai, minha filhas, mas não deixem que maltratem a distinta.
Como segurar uma mulher hoje? Dirce Maria tinha seus amigos, tinha suas opiniões, ela dizia eles são meus amigos. E agora Blumenau? Como é que fica? Mãos no bolso e auscultar mapas turísticos. Em Salamanca, existe a batalha entre a mulher e o ideal de mulher?
Seria razoável chegar para Dirce Maria parar na frente dela, ou sentar com ela na hora da visita e dizer de uma vez por todas topo a gigolagem; ou então percorrer os caminhos da parapsiricologia e dizer, Dirce Maria, minha cara dona Dirce Maria, eu entendo tudo isto, eu sou o entendedor, tudo isto se trata de insegurança, é insegurança, um drama pirandeliano depois de Pirandello, você é uma mulher insegura, por isso se arregaça toda a todas as investidas de quem quer que seja, por isso aceitou as investidas de Augusto, do Nestor e depois do..., como é que chama mesmo o outro camarada?
Aquele filho da puta, esqueceu? Então, vamos chamá-lo de Personagem Barbudo, P&B, tanto um quanto o outro estiveram alongando seu caminho de insegurança. Você fez um bolo com os três, inclusive eu, e sei que só a mim você traiu. Para todos eles, eu sou o único Bobo da Corte da história. Posso até ter orgulho disso, sabia? Segundo todos os rastros e todos os indicadores você me pertencia, e era unicamente a mim que você se sentia atada, e era unicamente esses laços que você sujava. A sua insegurança é uma verdade bruta. Você vacila como mulher, o que há? Daí porque, logo, logo depois, o Carlos de Gravata e aquele carioca, que você me apresentou como se fosse um anjo. Nem sua beleza explica, onde e por que isto, em você, que é bela?
Nem a sua beleza explica, onde e por que isto, em você, que é bela? Seriam estes pelos crescendo como erva daninha e se espalhando. Seria esta pele mudando de cor e se enchendo de sombras? Seria uma fase mal ultrapassada do eterno incesto?
Seria como uma muleta, uma fuga, uma aceitação do destino... nunca, jamais sai com qualquer um na primeira vez, na primeira noite, nem antes do segundo almoço... tu te lembras deste argumento? Sim, jamais deixara passar, também, a terceira noite e nem que a paciência do cortejador acabasse. E assim, uma penca? Seriam estes pelos da mente, seu esforço em raspá-los o mais espaçadamente, e os pelos crescendo como erva daninha. Seria uma fase mal ultrapassada?
Até hoje, você se dirige ao homem da venda e pede um cu’ei’o da bala e o homem da venda morre de rir e pede que você repita, um cu’ei’o (*) de balas. Em que momento tudo se desgovernou? Aposto que foi depois que a bomba ti-bum. Uma explosão fora, na sua frente, detonou outra grande explosão, dentro de você.
Em que momento você tornou-se outra pessoa?
Não pense que eu
queira depois de te amar, te matar.
Nada disso, quero que eu
e você possamos ser pessoas normais,
Nada disso, quero que eu
e você possamos ser pessoas normais,
isto é, que possamos viver.
Acabara aquela mulher que enfrentava as brigas com Gustavo, que enfrentava os inimigos com desprezo, que ria na cara do dono do jornal, que ria na cara do medo. Era outra a mulher e estava sozinha e com medo, medo, destes medos que todos nós sentimos naquele anos valentes do passado.
Cara, eu te falo isto muito por experiência em que a minha linguagem é pura experiência, acumulada desde quando deixei a casa dos Peredos, em Baunilhas, em Montevidéu. Eu também me sentia outro ser, onde a casa dos Peredos era a única que poderia abrigar-me daquele momento de todos os perigos.
Corri para lá, três cobrindo a fuga de três. Fui o último a entrar. O tiroteio ainda não alcançara aquela casa, uma construção de outro século, paredes da grossura das paredes do Colégio Dom Bosco, em Cachoeira do Campo, naquele lugar, entre aquelas paredes, Tiradentes, Joaquim José da Silva Xavier, esteve preso, em 1789 (?). Esteve?
Escondi-me atrás da parede, daquelas paredes grossas, de mais de meio metro de largura e sentia segurança. Total segurança. Na minha frente, uma menina deitada no chão. Seu medo teria dez anos Ela deve ter falado alguma coisa, mas eu só ouvia o gargantear das balas. Ela levantou a cabeça, chorava e falava... pai, papai... (Falava? Balbuciava...) Não escutei o resto do que ela disse, escutava apenas o que diziam as balas, que atravessavam a grossa parede. Segurança nenhuma. Ela me puxou pela mão, fez-me deitar ao lado dela. Do lado de fora na calçada, outras pessoas trocavam tiros com os homens de chapéus-escuros, os nossos inimigos. As balas passaram. Milhares de tiros, em poucos minutos. Depois de alcançar alto volume em torno de nós, os sons tornaram-se cada vez mais isolados e distantes. Os tiros voltaram várias vezes. As paredes estavam rasgadas, aquelas paredes volumosas, aquelas paredes históricas foram perfuradas pelos tiros das Faus.
Quatro pessoas morreram na calçada em frente da casa. Seus corpos arrebentados, destroçados, quase que formavam uma só poça de sangue. As balas que vararam a parede foram disparadas pelos fuzis automáticos dos chapéus pretos. Em poucos minutos, o estranho diálogo das balas afastou-se.
Cara, eu te falo isto muito por experiência em que a minha linguagem é pura experiência, acumulada desde quando deixei a casa dos Peredos, em Baunilhas, em Montevidéu. Eu também me sentia outro ser, onde a casa dos Peredos era a única que poderia abrigar-me daquele momento de todos os perigos.
Corri para lá, três cobrindo a fuga de três. Fui o último a entrar. O tiroteio ainda não alcançara aquela casa, uma construção de outro século, paredes da grossura das paredes do Colégio Dom Bosco, em Cachoeira do Campo, naquele lugar, entre aquelas paredes, Tiradentes, Joaquim José da Silva Xavier, esteve preso, em 1789 (?). Esteve?
Escondi-me atrás da parede, daquelas paredes grossas, de mais de meio metro de largura e sentia segurança. Total segurança. Na minha frente, uma menina deitada no chão. Seu medo teria dez anos Ela deve ter falado alguma coisa, mas eu só ouvia o gargantear das balas. Ela levantou a cabeça, chorava e falava... pai, papai... (Falava? Balbuciava...) Não escutei o resto do que ela disse, escutava apenas o que diziam as balas, que atravessavam a grossa parede. Segurança nenhuma. Ela me puxou pela mão, fez-me deitar ao lado dela. Do lado de fora na calçada, outras pessoas trocavam tiros com os homens de chapéus-escuros, os nossos inimigos. As balas passaram. Milhares de tiros, em poucos minutos. Depois de alcançar alto volume em torno de nós, os sons tornaram-se cada vez mais isolados e distantes. Os tiros voltaram várias vezes. As paredes estavam rasgadas, aquelas paredes volumosas, aquelas paredes históricas foram perfuradas pelos tiros das Faus.
Quatro pessoas morreram na calçada em frente da casa. Seus corpos arrebentados, destroçados, quase que formavam uma só poça de sangue. As balas que vararam a parede foram disparadas pelos fuzis automáticos dos chapéus pretos. Em poucos minutos, o estranho diálogo das balas afastou-se.
Levantei atordoado com o esforço para identificar todos os barulhos. As paredes estavam rasgadas como os corpos daqueles homens na calçada. Aquelas paredes volumosas, aquelas paredes históricas foram perfuradas de ponta a ponta. O lugar onde eu estivera antes de deitar-me no chão fora estourado por cinco buracos.
O tio Peredo arrastou a menina. Ela abraçou-se ao meu pescoço e foi embora. A altura das balas atingiriam minha cintura, todo o tronco, todo o tronco. Os tiros continuavam. Lá fora estavam caídos dois meninos e dois chapéus-escuros. Quando deixei aquele país me sentia diferente, o sorvete de coco já não tinha o mesmo sabor, por isso andei até o açaí. Aquela mulher, Dirce Maria, não mais me pertencia. Nem eu me pertencia. Depois de cinco meses e de três meses da minha morte divulgada, voltei a Montevidéu, uma semana antes dela casar com Geraldo.
O tio Paredo levantou a menina e a mandou sair, ela abraçou-me, apertou o meu pescoço e eu a apertei com carinho. Aquela criança era o nosso anjo de plantão. Repetindo, repetindo: Quando deixei o país da casa de Baunilhas me sentia outro homem. O sorvete de coco já não tinha o mesmo sabor, por isso andei até o açaí e a mulher não mais me pertencia. Depois de três meses desta morte evitada, no confronto dito como a Guerra do Cerrito, voltei uma semana antes dela casar com o Geraldo. Ela quis fugir comigo, mas ela não era gitana e eu desejava outras bodas de amor. Eu também não mais amava o amor.
Seus olhos inchados, enormes, muito pretos, passaram a me perseguir pela vida afora. E vinte anos se passaram. Não iríamos fugir. Eu já não mais amava, assim ia vivendo, fui vivendo.
Uma ou outra e está tudo muito bom.
Assim vim caminhando, achando tudo muito bom, feliz com todas aqueles que foram minhas amigas. Por que, então, você? Aquela menina, me repetindo, quer que eu te convença a abrigar-se contra os tiros?
João Bico Doce dizia do alto de sua Almenara que eu devia estar ao seu lado de qualquer maneira. Afinal, com a minha presença em sua vida, eu havia provocado sua expulsão, quem sabe o desespero de Gustavo, quem sabe a sua desintegração. Tentei simplificar as coisas, acredito em você.
Seus olhos inchados, enormes, muito pretos, passaram a me perseguir pela vida afora. E vinte anos se passaram. Não iríamos fugir. Eu já não mais amava, assim ia vivendo, fui vivendo.
Uma ou outra e está tudo muito bom.
Assim vim caminhando, achando tudo muito bom, feliz com todas aqueles que foram minhas amigas. Por que, então, você? Aquela menina, me repetindo, quer que eu te convença a abrigar-se contra os tiros?
João Bico Doce dizia do alto de sua Almenara que eu devia estar ao seu lado de qualquer maneira. Afinal, com a minha presença em sua vida, eu havia provocado sua expulsão, quem sabe o desespero de Gustavo, quem sabe a sua desintegração. Tentei simplificar as coisas, acredito em você.
Isto não basta, dizia o Bico Doce, para ele, eu devia estar bem perto de você e cobrir seu corpo com o meu, cobrir os seus lábios quentes, senti-los de repente tornarem-se frios como a morte e secos, antes de voltarem à temperatura normal, sei lá. Eu te abandonei porque não queria ser esculachado, ridicularizado, todos riam de mim. Cansei do esculacho e das risadas das piadas do pátio.
Augusto, à medida que suas cartas chegavam, lia-as para o Peri, eram as suas histórias de traição.
Os dois passavam por mim, pra lá e pra cá, no pátio do meio. Eu, sentado na porta do depósito de roupas, perseguindo o vôo dos pombos. Cada contração de um e de outro indicava o calor da aventura.
Os guardas negligenciavam com a vigilância e me entregavam suas cartas que a mim não eram endereçadas. Olha, chegou uma carta da senhora Dirce Maria. Eles sabiam que não era eu o destinatário. O guarda deixava a carta na cela e sumia. Na manhã seguinte, eu devolvia a carta sem ler, eu te respeito, respeito sua intimidade.
“Não era para você?” O guarda percebia que eu não havia lido. Dizia para quem era. Isto já satisfazia sua zorra para cima de mim. Eles liam todas as cartas dos presos. Era obrigação deles.
Um dia, eu olhava a chuva na janela do fundo do refeitório da D. Um velho me pergunta se eu estou com dor de corno, ele queria dizer dor de cotovelo, afinal embaraçou-se, pois ele sabia que eu era um ser de calma exemplar. Pedro, ao meu lado, sorri. O velho preso compreende a estupidez que dissera e para se desculpar coça o cotovelo, e eu?
Coço os cabelos.
Lembro de quando seu namorado chegou à sua terra, aquele rapaz do conjunto, ainda eras mocinha. Como fazer para continuar sua história onde a parastes?
Não queria te ver nunca mais. Eu continuaria nossa conversa no alfabeto dos mudo.
A carta que me chegou do Uruguai diz que a menina de Baunilhas morreu de gripe. Tomaram tudo do velho Peredo. Disseram que ele era um traidor. Quando a menina adoeceu... muito tarde... muito tarde mesmo... era madrugada, o velho alcançara a cidade, fizera oito léguas a pé, a menina morrendo nos seus braços. Ninguém quis ajudar o velho, ninguém gosta de traidores.
A menina, ele deixou-a dependurada na parede de nossas abreviaturas, abreviaturas feitas de cobre e amarradas com um cordão branco.
(*) cu’ei’o = cruzeiro
Um dia, eu olhava a chuva na janela do fundo do refeitório da D. Um velho me pergunta se eu estou com dor de corno, ele queria dizer dor de cotovelo, afinal embaraçou-se, pois ele sabia que eu era um ser de calma exemplar. Pedro, ao meu lado, sorri. O velho preso compreende a estupidez que dissera e para se desculpar coça o cotovelo, e eu?
Coço os cabelos.
Lembro de quando seu namorado chegou à sua terra, aquele rapaz do conjunto, ainda eras mocinha. Como fazer para continuar sua história onde a parastes?
Não queria te ver nunca mais. Eu continuaria nossa conversa no alfabeto dos mudo.
A carta que me chegou do Uruguai diz que a menina de Baunilhas morreu de gripe. Tomaram tudo do velho Peredo. Disseram que ele era um traidor. Quando a menina adoeceu... muito tarde... muito tarde mesmo... era madrugada, o velho alcançara a cidade, fizera oito léguas a pé, a menina morrendo nos seus braços. Ninguém quis ajudar o velho, ninguém gosta de traidores.
A menina, ele deixou-a dependurada na parede de nossas abreviaturas, abreviaturas feitas de cobre e amarradas com um cordão branco.
(*) cu’ei’o = cruzeiro