
Noite sobre noite
Consultei o relógio, cinco para as duas.
Tempo de sobra para a hora marcada. Eu estava bem em frente ao lugar de destino. Daqui até o quarto de dormir posso calcular os passos, os minutos e os movimentos do vento e do barulho. Empurrei a porta da frente. Tudo fora ensaiado. Tudo.
A porta estava aberta, como de costume. Ninguém morava ali naquela casa, uma enorme casa amarela, com as portas interrompidas por portas que muitas vezes eram as próprias paredes. As paredes eram deslocadas como se fossem de papelão.
Ninguém teria condições de interromper meus passos. No entanto, eu me preocupava em não fazer barulho. Virgínia do Aragão não estava na sala. Suas peças de roupas espalhavam-se pelas paredes. Sabíamos que as paredes não tinham mãos para tirar as roupas de Virgínia. Virgínia habituara-se à nudez. Nua, com o corpo caído, com os seios estrategicamente colocados pelo maquiador.
Como o programado, Virgínia fingia dormir. Suas pálpebras tremiam, vacilavam com a claridade terrível daquela noite cuada. Também fingi e, de propósito, não notei que ela não dormia. Cuidei para não despertá-la do sonho moleque.
Os cabelos de Virgínia corriam pela cama, um rio de águas negras e cujos fios, compondo um vasto delta, percorriam o chão. Seios firmes e fartos, seios de um corpo magro, calculado. Ela também era uma mulher maquilada. Tudo ensaiado. Virgínia era, ali, obrigatoriamente, uma mulher. Todo o conjunto devia inspirar a sede de carinho de todas as luzes.
Tinha ímpetos de tocar aquele ventre iluminado, amarelado, e de beijar tudo o que nele havia. Deixava de tocar seus cabelos e deixava de beijar suas pernas por não saber mudar o programado.
Ela alterava a respiração e dormia ou fingia dormir enquanto eu me preparava para o ponto final. Seria Virgínia de fato a sedutora esmolambada do quarteirão da Cruz? Agora, eu estava nu. Tive vergonha do meu corpo. Sempre tive.
Olhei-a, ela abriu os olhos. Eram duas horas, três minutos, 15 segundos e quatro décimos.
Seus olhos ainda estavam semicerrados, ela quis sorrir. Por que? Seus lábios tremiam.
Ela levantou rápido, pulou em meus braços. Não suportei o impulso, não consegui evitar a queda. Reagi com rapidez e recuperei-me a tempo. Virgínia não chegara a tocar o chão. Imitei seus abraços violentos. Senti que o chão estava molhado. Virgínia gemia e chorava. Largava-se em impulsos. Ao mesmo tempo tentava fugir e procurava segurar-me, definitivamente. Virgínia firmava o corpo sem ternura e seus lábios corrompiam uma língua gelada que me feria. Virgínia segurou meu ombro.
Lemos no letreiro luminoso
PARE
Escutamos a voz do alto-falante acabando com tudo. Que nada tivesse dado errado!
Eram exatas duas horas seis minutos e 1 décimo de segundos.
Quase erraríamos de novo... por pouco.