Para Benedictus Rocha, o Vozeirão
- Pensei que tivesse sido o fim da tragédia. Parece fomos marcados para que a tragédia nos persiga... até o que respiramos é parte daqueles fatos. Um nada.
- Amigo... sei que você é meu amigo. Você foi, será sempre.
- A cada momento tudo torna-se mais distante. Em muitas ocasiões senti que se ficasse aqui sozinho; louco, já estaria dominado pela tragédia.
-...
- Foi quando eu voltei. Entrei em nossa casa. Não deveria fazer aquele percurso. Não devia voltar. Ninguém havia me preparado. Levava uma vida normal e o sucesso você conhece. Eu era um fraco. Isto eu insistia para mim mesmo. Era um fraco porque voltava. E, estúpido. Eu seria o primeiro a voltar.
- “Você será o primeiro a voltar”, ela dissera. Não sei se ela o disse aos gritos. Nunca a ouvi falar mais alto. Hoje, escuto sua voz como um grito. “Você não tem coragem, nunca me abandonará” e ela apontava para as meninas Marta e Maria Clara. Elas tão pequenas. “Olha, filhinha, eu dizia, eu gosto de minhas filhas”.
- Entrei no apartamento que fora nosso. Não havia ninguém. Eu era o primeiro a voltar. Cortinas fechadas. Nesta sala, eu e Maria Célia, minha mulher, brincávamos como crianças. Os jornais, que noticiaram a tragédia, eu os conservei até um ano atrás, mas eles desapareceram de minha memória assim como aqueles fatos que explodiram em nossas vidas com mais poder do que uma colisão de coisas muito pesadas. Fora um grande susto, embora, nada daquilo parecera inesperado... absorver tudo fora fácil? Não. Parece que as tragédias violentas em si mesmas atuam como um achado, indicando o depois em um futuro que dura muito tempo, que nunca acaba, que não se esgota e como um futuro nos amedronta. Temos o conhecimento da tragédia, como uma marca do humano.
- Lá estavam amontoadas as casas de bonecas, as casas partidas, as camas viradas, as bonecas perdidas. Quarto, corredor, o quarto das meninas, o quarto de trabalho, tudo igual à ultima vez. As cortinas fechadas. A pequena Marta quebrou esta boneca por causa do aparelho que faz as bonecas chorarem. Dei-lhe outra boneca, aquela de olhos negros, com uma risca aqui na barriga. A boneca de olhos negros ria, piscava e dizia mamãe. Até agora...quantos dias passaram? Anos? Quantos? Por que ninguém passou por aqui?
Aquela decisão fora sua. Ele a entendia como um compromisso que assumira com a volta. E bastou que o olhássemos para que ele compreendesse a inutilidade da pergunta.
- Veja, alguém passou por aqui. Há rastros na poeira. São nítidos. Foram duas pessoas. Duas mulheres. Olha os pés pequenos. Segui aqueles rastros, antes de você chegar. Os rastros se confundiam e se separavam dos meus, estes mais recentes. Antes, eu não os percebera apesar de ameaçadoramente visíveis. Ameaçadores? Eram passos feitos para mim, como uma estrada de ferro. Por baixo do pó, raspado, encerado, brilhando. No quarto das meninas, os rastros desviaram-se, respeitaram a mancha escura e grande. Pensei em abrir todas as cortinas, ligar o som, a televisão, ter barulho, barulho, dar vida àquilo. Estes são momentos em que o silêncio mete medo, meu amigo. É mais ensurdecedor do que o mais intolerante de todos os barulhos. Conseguiria? Pensei mais um pouco e esqueci do que havia pensado. Sentei-me na cadeira de balanço e ali fiquei.
Seus olhos estavam inchados, porém posso dizer com certeza que ele não chorará e eu o conheço. Sei que ele, de repente, se erguerá e tornará a ser o mesmo senhor elegante e alegre que todos na vida sempre admiraram. Sempre jovial, alegre e inatingível pelas tragédias pessoais.
- Estas janelas um dia estiveram abertas. Minha mulher chorava no quarto. Convulsões sem fim. Acabáramos mais uma cena de ciúmes. Nervos à flor da pele com os exageros e a imaginação dela. Pela primeira vez a espanquei. Era um monstro. E pior, um monstro que não podia dar o braço a torcer. Ela rasgara todos os ternos. A pequenina
- Marta veio. “Papai, não bata nunca mais em mamãe”. Vá filhinha, fique quieta, não faça seu pai ficar mais triste ainda.
- Marta conteve as lágrimas e eu a puxei para os meus braços.
- Filhinha, fiquei com raiva, briguei, foi só, e mais: papai garante não repetir isto que você viu hoje, não vai repetir porque ele gosta de sua mãe. Muito, muito mais do que ela possa imaginar.
- Então, papai não bate mais?
- Não. Vá ficar com sua mãe e fale isto que eu falei. Diga que papai está arrependido, que papai manda beijo para mamãe.
- Vou. Não saia, papai. Fique, aqui.
- Fico.
- Por tudo?
- Por tudo.
- A frágil e pequena Marta fugiu de meus olhos. Escapou dos meus olhos. Eram finos e lindos, seu corpo e seus gestos. Meu olho bom poderia tê-la retido junto comigo. Meu olho poderia salvá-la.
- Lá, no quarto, elas ficaram em silêncio. Os pianos de um orquestra alemã, em gravação, enchiam todas as partes da casa. Os sons vinham do apartamento de baixo. De repente um piano solitário abandonou uma nota aguda. Despertei-me com o sentimento da tragédia. Pressentimento, uma sensação sempre desagradável.
- A pequena menina Marta não voltara. Minha mulher e minhas filhas, Maria Clara não desgrudava da mãe que temiam tanto as loucas ameaças de nos separarmos. Elas aprenderam tão fácil a gostar do nosso pequeno mundo de fantasias e de felicidade, da sala, das manhãs tão nossas, elas estavam ali no chão. Uma mancha negra, escura, brilhando, as envolvia como uma auréola. E eu? Olhei o rosto de da pequena e doce Marta, minha filha. Meu olho não a segurou. Fechei todas as cortinas. Telefonei. Saí.
- Agora, volto. Já estou preparado. Ela tinha razão. Eu fui o primeiro a voltar. Eu fui o único a voltar. Ela tinha razão, eu seria o primeiro a voltar...