“...está sempre em véspera de coisa nenhuma...”
O burrinho pedrês,
de João Guimarães Rosa
Deitado com a mulher de novos seios, agora seios duros, você continua a falar da teoria da fuga e lembra do período em que não fugiu.
(Por que eu não fugi naquela época?).
Preso nas celas da Polícia Federal, no Rio de Janeiro, na carceragem da rua Santa Luzia, na Praça Marechal Âncora, uma pequena praça ao lado da Praça 15. Condenado a 33 anos de prisão, ali permaneceu naquela cadeia para ser interrogado pelo órgão da inteligência da Marinha, Cenimar.
(Por que chamam os profissionais da tortura e do assassinato de “inteligência da...”?)
Os interrogatórios, em um ano e dois meses naquela prisão, ocorriam ocasionalmente. Da parte dos militares, havia mais interesse em uma punição extra. Ele já fora condenado à revelia e, no meio da guerra de rua, guerra pesada, não tinham muito tempo para se preocupar com um caso encerrado, um homem condenado, fugitivo capturado e encarcerado.
A não transferência para as celas do Cenimar e as dificuldades opostas a um interrogatório mais violento eram parte da estratégia do advogado Antônio Evaristo de Morais Filho. Todos os dias, na parte da manhã, estando no Rio de Janeiro, o doutor Evaristo passava pela prisão e quando não podia enviava um estagiário do seu escritório - filho de um almirante, uma autoridade para os carcereiros e para os delegados de carreira, além disso alta patente militar, sempre citada na apresentação, intimidava. Era o “filho do almirante Caminha”.
Os interrogatórios, aparentemente, não eram planejados. A punição definida depois de cada visita ou interrogatório relacionava-se com as condições da cela, mantida a maior parte do tempo sem nada dentro, sem colchão, cobertas, toalhas, sem água.
Água era uma vez por dia, no máximo duas vezes, e de uma torneira que ficava fora da cela. O acesso à água da torneira se dava com a intervenção do carcereiro. Por que este destaque à água? Basta você pensar em Rio de Janeiro. Pensar em calor, verão, o cara dentro de uma cela de cimento puro e terá uma ideia do que é dormir e acordar em um caldeirão natural. Isto quando o caldeirão não estava superlotado.
Se o carcereiro não aparecia significava que houvera uma proibição (a punição). A cama e o cobertor, quando permitiam, eram improvisados e feitos de jornais, assim como a madeira para as fogueiras nas noites de inverno – madeira feita de jornais enrolados. Agora, pense o inverno dentro de uma cela que originalmente era uma geladeira para cadáveres enviados à perícia do Instituto de Medicina Legal.
Os jornais enrolados transformavam-se em lenha e a lenha devia ser economizada. A transformação do jornal em lenha era uma arte e um passatempo. Depois de enrolados os pirulitos de jornais eram dobrados, para que permanecessem enrolados. A dobra era a arte em que surgiam figuras geométricas a partir de triângulos. Agora a lenha tinha uma ponta que permitiria movimentá-la dentro do fogo.
1. Este período de prisão na Praça Marechal Âncora durou um ano e dois meses, de janeiro/fevereiro de l970 a março/abril de 1971.
2. O muro em frente à cela número 2 dava para a rua Santa Luzia. Eram três celas, a número 1 era a perna mais curta do L. As outras duas celas ficavam na perna mais longa do L. Na quina do L ficava o tanque, a única fonte de água para as celas.
3. O que era aquela prisão? Antigas geladeiras do IML, Instituto Médico Legal do Estado do Rio de Janeiro, depósito de cadáveres. As geladeiras foram desativadas e adaptadas para uma prisão de três celas.
