sexta-feira, 7 de maio de 2010

A TROCA


Coração antigo


Rufino Fialho Filho e Frederico Garcia Lorca










"Aqui, Senhor, te deixo



meu coração antigo,



vou pedir emprestado



outro novo a um amigo."



Frederico Garcia Lorca, Prólogo, 1920





Sem olhos, sem mãos e sem coração. Perdido o coração, arrancado por mãos felizes, onde encontrar um outro coração que caiba dentro do mesmo peito?



É felicidade, então, entrar na poesia de Lorca. Conhecer as rimas e seu universo de sol e de verde!



Universo deslumbrado, que embriaga, digno de um sonhador, um ser feliz.



Fora uma pequena viagem, Sete Lagoas a Belo Horizonte. Eram mais de meia noite. Eu e Isabella. Vínhamos calados. Ele pôs a mão na minha perna como fazem pessoas carinhosas quando a viagem é pura felicidade. Era um gesto de carinho e de amor.



Isabella cantou e, feliz, contava do show do conjunto Tia Nastácia, de Belo Horizonte. Ela já fora a vários shows, conhecia os cantores. Ganhou um anel, uma garrafa de água, vasilha que ela guarda agora como um troféu e duas palhetas, uma deu para Gracie. 

Cantava e estava feliz com o fim de semana. Um belo passeio que terminou no domingo no degradado cine Rivelo, onde tentamos assistir e não ouvimos o Auto da Compadecida.



Agora, mais uma vez só e sem sono, na tv ouvi pedaços da entrevista de um velho político que acabara de publicar um livro de memórias, velho jurista, dizia da justiça brasileira e de sua experiência, um senhor envelhecido, um senhor extremamente categórico, triste e envelhecido no envelhecer degradado. Mal ouvia enquanto tomava o meu uísque.


Apanhei meu volume de poemas de Lorca e fui ler o poema Prólogo 24 de julho de 1920 (Vega de Zuzaira).









"Meu coração está aqui,


Deus meu,


Senhor, fica nele o teu cetro.


É um marmeleiro


demais outonal


e já apodrecido.


Arranca os esqueletos


dos gaviões líricos


que tanto o feriram,


e se acaso tens bico


picota-lhe a casca


de tédio."





Seguia até o fim, tomado de tremenda felicidade. Percebi, naquele momento, que o grande caminho aberto pelos poetas era o caminho do futuro e do entendimento entre os homens.



Eu lia Lorca, cara. Conseguia, 90 anos depois de escrito o poema, abrir na sua poesia um caminho. Agora, era o meu caminho.



"Mas se não queres fazê-lo


é para mim o mesmo,


guarda teu céu azul


tão tedioso,


o rigodão dos astros.


E teu infinito


que emprestado pedirei


o coração a um amigo.


Um coração com arroios


e pinheiros,


e um rouxinol de ferro


que resista


ao martelo


dos séculos."





O que acontece com os poetas que os fazem homens especiais de fala e de linguagem? São profundamente homens de falares e de compreensão, homens como os atores, como os dramaturgos entranhados na alma, na humanidade, na essência, no ser do homem. São os puros homens políticos, seres especiais, por isso Lorca era um risco, um perigo, um ser revolucionário, uma ameaça, ele ia para o futuro. Leio e entendo a sua fala. Lorca me abre um novo caminho. 








"Satã, inda por cima, me quer muito,


foi companheiro meu


em um exame de


luxúria, e o pícaro


buscará Margarida


- já mo ofereceu –


sobre um fundo de velhas oliveiras,


com duas tranças de noite


de estio,


para que eu separe


suas coxas limpas.


E então, ó Senhor,


serei tão rico


ou mais que tu,


porque o vazio,


não pode comparar-se


ao vinho


que Satã oferta


a seus bons amigos.


Licor feito de pranto.


Quem mais dá!


É o mesmo


que teu licor composto


de trinos.






Dize-me, Senhor,


Deus meu!


Afundas-nos na sombra


Do abismo?


somos pássaros cegos


sem ninhos?"



Entro na madrugada de segunda-feira, manhã de compromissos e meu grande compromisso é com a minha filha Raquel.



Sinto que o desafio do homem moderno não está mais na intriga espiritual, em deuses que possam nos atender. 

Está na grande construção do coração, mesmo de um coração tomado de empréstimo, desde que nos afastemos deste nosso coração vegetal, outonal e já apodrecido.




"Vai-se apagando a lua.


E o azeite divino?


As ondas agonizam.


Tens querido


brincar como se fôssemos


soldadinhos?


Dize-me, Senhor,


Deus meu!


Não chega a nossa dor


a teus ouvidos?


Não fizeram as blasfêmias


Babéis sem ladrilhos


para ferir-te, ou gostas


dos gritos?


Estás surdo? Estás cego?


Ou és vesgo


de espírito


e vês a alma humana


com tons invertidos?










Oh! Senhor sonolento!


Olha meu coração


Frio


Como um marmeleiro


Demais outonal


E já apodrecido!










Se tua luz vai chegar,


os olhos vivos abre;


porém se continuas


adormecido,


vem, Satanás errante,


sangrento peregrino,


depõe-me a Margarida


morena nas olivas


com as tranças de noite


de estio,


que saberei acender-lhe


os olhos pensativos


com meus beijos manchados


de lírios.


E ouvirei numa tarde cega


meu “Henrique!” “Henrique!”,


lírico,


enquanto todos meus sonhos


enchem-se de rocio.


Aqui, Senhor, te deixo


meu coração antigo,


vou pedir emprestado


outro novo a um amigo.


Coração com arroios,


e pinheiros,


coração sem serpentes


nem lírios.


Robusto, com a graça


de um jovem campesino


que atravessa dum salto


o rio."





A poesia de Lorca nos acompanha há 38 anos. Nestas leituras/releituras há sempre surpresas. Sou de repente, como ontem à noite, surpreendido pela leitura do mesmo poema e em que se revelam seus novos significados.

Ontem, era um dia em que pude entender um olhar possível daquele poema. É o mistério do poetar que é o fazer, o criar, o inventar. 

Como é possível ter a singeleza da bela façanha de se construir, de se criar uma imagem cheia de ternura e sensualidade como



"...buscará Margarida


- já mo ofereceu –


sobre um fundo de velhas oliveiras,


com duas tranças de noite


de estio,


para que eu separe


suas coxas limpas."





Para que eu separe suas coxas limpas, afirma o poeta no momento em que ele cria, em meio a um debate entre deus e satã, uma personagem feminina de contrapeso, expondo a vida humana em toda a sua dimensão e possibilidades, dizendo direto em que mundo vivem estas imagens tão marcadas na memória coletiva e que dispersam o essencial, a troca de corações, um coração outonal e apodrecido por um coração novo



"Coração com arroios,


e pinheiros,


coração sem serpentes


nem lírios.


Robusto, com a graça


de um jovem campesino


que atravessa dum salto


o rio."



Um cinema com história

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