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O Leito de Morte, de Ernest Meissonier. Quadro desaparecido |
Rostos
I
Meu pai morre
são poucos os seus dias
seu rosto é o rosto de vó
na morte
É de vô João, seu pai
É de Cici
seu rosto magro
Seus olhos vêem
o vazio
sem deus, sem desejos,
sem sonhos,
silencioso
Ele está feliz
e resiste
quer viver
quer a sua chance
(sem chance nenhuma)
- Nenhuma
Meu pai morre
E, em volta, voam
Voam todas as aves
todas as flores
No ar, na vida
Ele olha, sua vida
olhos, olhar, ver,
ir pelos olhos
Olhos no vazio
Olhar firme
de quem resiste
Mas, mas, mas
Quer viver,
orgulhoso, eu amo meu pai
sua luta, sua vida pela vida
Vida frágil, frágil agora? dolorosa
Dolorosa, agora
Outras foram as dores da vida
Agora
Ela é vida feliz, vista, revista,
vida feliz, feliz,
sempre boa
e bela
e gostosa
Ele quer viver
Desesperadamente
Ele quer viver
Quer mais uma chance
Não tem nenhuma – ele sabe
E como o grego Zorba
Ele vai enfrentar
De olhos bem abertos
O que virá
No fim
II
Os homens sabem
seu tempo
Homens
Sabem o gosto do sal
a dor de perder
Geniais, conhecem a alegria,
o sorriso e a aventura feliz
Os homens são bons
e felizes
É próprio do homem
ser feliz
mesmo aqueles
condenados à liberdade
Queres conhecer um homem
busque o seu sorriso
Hoje, aprendo com o meu pai
o valor do pão salgado,
quente e com a manteiga
que amarelece
Hoje, aprendo com o meu pai
o quanto é bom ter companhia
Como foi difícil, como demorou
aprender, saber, ser bom
III
Meu pai morre
abençoado pela vida
Meu pai morre
arrebentado no dia,
corpo cortado,
fezes que saem no umbigo
e ele é um homem feliz
sem voz
O que eu não entendo?
O que eu devo saber?
Meu pai morre
sorri feliz
ainda quer falar da sua alegria
de ter um cachorrinho
que chora e sofre,
tenso e sensível,
um animal que sabe
o dia próximo
Como todos nós, animais,
ele sofre e chora
- Santo Briguelo!
Como os bois e as vacas lá no pasto,
da fazenda de Pavão,
choravam, ele chora
na tristeza do entardecer
para lá, para cá
levantando a poeira fina e leve,
baixa e fraca, poeira que não é
poeira de nenhuma corrida
Poeira de um triste pensar, andar
Poeira também triste
Todo, tudo, chora um choro
que não se entende
não se sabe
Ninguém sabe chorar um morto
Os animais saberiam?
Sol se indo,
acompanhei os lamentos
dos bois na manga
Tristes, perdem o rumo
e, em círculo, abraçam o vento
IV
Meu pai vive
Traz de volta Poté,
as estradas do Norte
Vive e faz viver
tempos, pessoas e riscos
A longa caminhada da família
No lombo de burros
Do Jequitinhonha
Ao Mucuri.
Vive e dilacera vidas
em seu frágil gesticular
sem voz, só olhos.
V
Por que meu pai não pode saber
da guerra que mata
da violência
e de todas
as nossas agonias?
Ele morre.
VI
Todos mentem
para um homem que morre
Todos enganam a morte do outro
Ninguém diz a verdade a quem morre
morrendo na morte de todos os dias
Ninguém arrisca diálogos verazes
Por que?
Por que o homem que morre é poupado?
Por que a morte poupa os vivos?
VII
Pai olha, olhar perdido
Olha
O que ele vê, eu não vejo
O que ele percebe
tenho a sensação de que está
atrás de mim
Além do que sou
Estarei desnudo
Estarei futuro
Apanhado no meu escuro,
visto, flagrado inteiro, perfeito
Ele sabe quem eu sou
(Eu ainda não sei)
Saberei?
VIII
Não desperdice nada do seu pai
Ouça-o
Fale pouco
Observe, veja, veja
Olhe bem seus olhos frágeis,
suas mãos trêmulas,
seus braços magros e enrugados
Guarde cada gesto, cada respirar
Respire no seu ritmo
como fazia para Quequel
e Thiago dormirem
Não perca nada
Ele vai embora
e já a partir de agora,
só estará em seu coração
em suas veias
em sua mente
nos ossos, na ponta do seu nariz
em suas mãos e em seu cheiro
em sua maneira de dizer
e em seu sorriso
Seu pai foi um homem feliz
e bom
Foi um homem bom,
um homem feliz
IX
Há no coração
muito ódio
Descubra que o ódio
está só no coração
Fácil dissolvê-lo,
jogar todo o ódio
na merda.
Há em meu coração
muito ódio
Burro, o ódio
que entrou
e que domina
eu não posso viver
Se viver for odiar
nem quero viver
se viver for matar
(é matar-me)
X
Meu pai morre
Morre em mim
a mais bela, pura,
possibilidade de vida
Morre em mim
não a capacidade de sonhar
morre o sonho
do que quis ser para ele
Ele jamais saberá
do meu esforço
nem das minhas derrotas
(Melhor assim)
XI
Os que fingem
diante da dor verdadeira
(deles mesmos)
estão assustados
nada ainda entendem
Perdoá-los
Sempre perdoá-los
Os que fingem
não sabem que é curta
a passagem e o tempo
até mesmo o susto.
Os que fingem diante de si
fingem e riem de todos
Não imaginam a violência
da tempestade
Ignoram a frágil
ignorância
XII
Os olhos de pai estão vazios,
no vazio, Dã
Eles não buscam nada
Nada mais querem explicar
Seus olhos
agora são ouvidos e boca
são olhos-ouvidos
Olhos que como mãos
afagam e perscrutam
a nossa dor
a nossa passagem
Eu sei o que eles olham
Olham em mim
a essência que não encontro
Hoje, eu sei quem sou
Sei?
Não sei.
XIII
Meu pai morre
Morre em meus braços
Cheio de apetite, vivaz
Feliz, ele olha
Eu estou aqui
em meus braços, ele sonha
Olha além de mim
Entendo que meus filhos,
todos distantes, talvez jamais
terão em mim ele
ou serão ele
Eu sei, eu jamais serei ele.
XIV
“...desacredito no azar da minha sina...”
Meu pai morre
e ri
Está feliz
Viveu, amou
e pôde viver o amor
passá-lo a limpo
e pode, viver só
depois do amor, amado
Amou e depois ainda
um tempo viveu só
retomando, dia seguido de dia,
o amor amado
agora somado
amor também imaginado
cheio de perdões
sem senões, sem dores
sem peias
Ele foi feliz, depois do amor
Meu pai morre,
morre feliz, amando
amado na vida vivida
XV
ab intestato (*)
Na sala, pai olha
A fala não sai
Sua voz, frágil
frágil
Ele sabe inútil
qualquer palavra a mais
Nenhuma palavra
além de viver mais um dia
Mais um dia, dia século
Dia tempo sem medida
Só mais um dia
Mais um tempo
Um tempo a mais
Agora, tempo silêncio
sem palavras
Só seu olhar fixo
triste e alegre
feliz, silencioso
triste, eu
alegre, ele
feliz, ele
silencioso, eu
Eu e ele
no fim do viver
ab intestato.
XVI
Em seu silêncio, ele observa
movimento, vozes, presenças
O movimento das aves-bombas
aves-homens
saindo de espaços que se revelam
inesperados como um corredor,
uma sala, um quarto, uma cama
Vozes que falam para não serem ouvidas
em código, em profusão
ignorando que tudo, tudo, ele ouve
traduz e acompanha
rastreando a vida
Amargas umas, doces outras
Vozes dilaceradas de pessoas-aves
Movimentam sombras sem luzes
sombras sem corpos
sombras inúteis, sombrias
Pessoas vivas, amargas, aves-gente
Chegam para limpar
Não deixam rastros
Levam tudo
todo o possível.
XVII
- Faça nascer, em si,
o seu próprio pai!
É desafio e necessidade
- Arranque-o de onde está!
Aqui está, eis!
Nasceu das minhas memórias
saltou das minhas memórias-felizes.
Como nasce um pai?
(*) ab intestato - sem testamento