segunda-feira, 18 de abril de 2011

NA NOITE

      

Nunca as estrelas são as mesmas

"Eu queria fazer eu mesmo a minha vida"
Penitenciária Agrícola de Neves





Para Pimenta em sua última fuga




A sirene anuncia a divisão do tempo. O último toque é do jantar. Servem arroz, feijão, carne e verdura. Farinha à vontade.

- Isto é comida, diz um uniforme. Ele quer ser irônico e repete a frase dando outra pontuação.

- Isto! É comida.


Em cada mesa tem uma vasilha onde jogam o que rejeitam. As vasilhas estão cheias. Aa maioria recusou a carne e a verdura.

- Muito neguinho, aqui, come melhor do que na própria casa.


Os internos foram recolhidos às cinco horas. Uma gravação do capelão que reza duas ave-marias e um padre nosso. Mais de trezentas paredes estão abertas para um céu fantasiado de estrelas.

- Vinte anos. Há vinte anos estou nesta cadeia.

Aquele homem me olha e sabe que eu ainda não tenho vinte anos.

Ele continua.

- Eu conheço este céu como conheço a terra que eu sempre lavrei. O senhor – ele me chama sempre de senhor -  talvez não saiba o que é um homem revoltado. O senhor está diante de um. Vinte anos! Vinte anos saindo e sendo recapturado, cumprindo períodos de dois, três, até de cinco anos sem ver uma cara alegre, uma mulher, sem saber do mundo e dos meus filhos.

Ele fala das grandes distâncias, as distâncias que separam um homem preso de um homem livre; fala das distâncias de muitos dos seus sonhos.

Continua.

- Quando sai de casa, meu filho era um menino com uma pastinha, um merendeira indo para um grupo escolar. Voltei, o meu filho era um homem alto, forte com uma mulher dentro de casa.

Ele olha para suas estrelas.

- Nesses períodos de prisão, parado aqui dentro, eu sempre olhei para o céu. A luz apagava às nove. O céu ficava bem ali. A princípio olhei para o céu para pedir a Deus um milagre. Afinal, eu queria fazer eu mesmo a minha vida. Eu queria fazer eu mesmo a minha vida. Eu queria ser dono da minha vida, da minha história, do meu dia. Eu tinha certeza de que, se cometi algum crime, o meu crime fora perdoado por Ele. Queria, então, que me salvasse. Me salvar era me libertar. A liberdade para mim era tudo e estava disposto a tudo pela minha liberdade, até mesmo negociar com deus.

Os presos passavam por nós dois e riam. Riam porque eu ouvia seu Oswaldo, o Badu, o maior matador do nordeste mineiro.

Ele continua.

- Era um tempo difícil. Eu estava sofrendo. Depois disso, eu esqueci de Deus, passei a não gostar de Deus. Eu acho que quando a gente morre tudo acaba. Deus não existe. Não sei porque, mas entre mim e o céu outras coisas aconteceram. Ganhei todas estas estrelas e, assim, passava horas tranqüilas. Cada vez me sentia um homem diferente, e um homem melhor. Era o céu, eram as estrelas. Acabei descobrindo que as estrelas nem sempre são as mesmas. Que uma estrela chega, fica um pouco e depois leva um tempo para voltar de novo. Esqueci muitas vezes de mim mesmo. Aqui minha vida acabou. O que sou agora? Olhe para mim. Sou um homem, mas não sou nada. Eu, morrer ou não, tudo é a mesma coisa. Não me sinto mais como um homem capaz de viver no mundo, no meio de outros homens. Sei que agora somos de matéria diferente. Eu sou cheio de nada. Ódio? Nem isto. Veja se há em mim sinais humanos?


Ele está vestido com o uniforme azul da penitenciária e com uma blusa vermelha. A calça desbotada, no bolso da camisa tem uma caneta velha, a botina velha e rasgada, suja de terra vermelha.

Voltou as costas, sem se despedir e caminhou com passos firmes em direção a sua cela e às suas estrelas.