O dia em que Arnold
foi Roberto Drummond
Se houver uma camisa branca e preta pendurada
no varal durante uma tempestade,
o Atleticano
torce contra o vento.
Roberto Drummond
Enorme,
grandalhão, cicatrizes de violências perdidas no rosto e sem memória das brigas
e sem um pedaço da orelha, Arnold ia além da diagramação de um jornal. Eu o
observava com orgulho de ser seu amigo. E ele era um amigo de muitos amigos e
amigo até mesmo de nossos inimigos. Irrelevante. Arnold era fiel, verdadeiro.
Com as mulheres era mais verdadeiro que fiel, dizia
o que queria e sua vida foi um amar continuado. Ao seu lado, paravam amigos
talentosos, homens brilhantes, o poder.
Arnold trafegava seu corpo e suas paixões. No seu meio, os homens que mais brilhavam e eram sucesso, como seus amigos, o reconheciam apenas pelo seu talento complementar. Arnold sabia fazer o que ele precisava fazer. Um artista na diagramação de jornais.
Arnold trafegava seu corpo e suas paixões. No seu meio, os homens que mais brilhavam e eram sucesso, como seus amigos, o reconheciam apenas pelo seu talento complementar. Arnold sabia fazer o que ele precisava fazer. Um artista na diagramação de jornais.
Aventurava nas artes dos amigos e se arriscava.
Muitas vezes errou, muitas vezes acertou. Foi assim com o seu amigo o escritor
Roberto Drumond, já vitorioso homem de letras, ainda não no estrelato das
novelas e casos especiais nacionais.
Roberto reverenciado como cronista no maior jornal
do Estado, um sucesso, crônicas saborosas e muito lidas. Um sucesso.
Sobre Roberto e Arnold conto o que sei. E o que sei
foi, neste caso, um dos sucessos de Arnold. O erro fica pro final da história.
O escritor quando entrava na redação percorria, na
realidade, o cenário da fama. Não aquele
externo, onde os aplausos são fartos. O cenário interno, a redação, o cenário
dos colegas, os que o admiravam e os que dominavam a inveja. Arnold o admirava menos pelas qualidades
literárias, do que pelas qualidades junto a uma imensa galera de mulheres
apaixonadas. Neste ponto, o Arnold cedia e era um grande invejoso.
“Jamais me arriscaria a escrever uma linha, uma
palavra sequer, para disputar com o Roberto. Não teria vez. Ele escreve com a
caneta muito melhor do que eu, dos que nós todos. Disputo com ele na outra
caneta, aí eu aposto, eu sei escrever muito bem e ganharia todas, se as
condições não fossem tão desfavoráveis e, para piorar, eu sei que sou muito
feio mesmo”......
Até que um dia, sem mais nem menos, a ficha caiu.
Absorto no trabalho, em horário de fechamento do
jornal, horário em que ele era mais requisitado, correndo de um lado para o
outro, em diálogos rápidos, o telefone toca.
- É da
redação?
-
É da redação.
A voz Arnold jamais esqueceria, uma voz suave, leve,
uma mudança de som no meio daquele confusão e daquela fenomenal barrulheira da
redação.
Uma voz
feminina, suave e firme.
-
É da redação?
Ele tremeu
todo e, imediatamente, desligou-se daquele de barulho, gritos, ordens e correrias da
redação.
-
É, é sim, é da redação.
-
Eu queria falar com Roberto Drumond.
Arnold
não hesitou.
-
É ele que está falando.
-
É o Roberto Drumond?
-
Sim, sou eu, às suas ordens. Como é o seu nome?
-
Angélica.
-
Angélica Almeida, eu moro aqui, em Belo Horizonte, li hoje a sua
crônica e estou apaixonada. Liguei para dizer que gosto muito de você, sempre
gostei. Hoje, você foi maravilhoso. Está de parabéns e continue assim.
Arnold buscou sobre a mesa um exemplar do dia e
abriu apressado na página de futebol, onde estava a crônica de Roberto Drumond.
Passou os olhos rapidamente.
-
Obrigado, Angélica, eu escrevi pensando na importância da rosa para
todos nós, para as pessoas. O cheiro da rosa é um cheio mais do que especial,
você não concorda e a memória do cheiro nos traz de volta muitas vezes uma rosa
especial, aquela que levamos para uma namorada, para uma pessoa em um momento
especial. Este cheiro é de uma rosa, mas de uma rosa especial. Foi isto o que
aconteceu depois daquele lance defendido pelo Raul, ele soube, como um atleta,
ir ao coração das mulheres.
-
Era isto, uma boa noite.
-
Boa noite, Angélica. Caso, você queira voltar a ligar, ligue direto
para este número e neste horário. Estou sempre aqui e será um prazer falar, te
ouvir e eu gosto da opinião de quem lê com o coração.
-
Eu voltarei a ligar.
No dia seguinte e nos outros dias, àquela hora os
dois falavam. Arnold montou um esquema para evitar que o telefone acabasse
caindo na mesa do Roberto. Dias depois, conseguiu que ela desse o seu número e ele
ficou mais seguro ligando para ela.
Um mês depois se encontraram, almoçaram e, no dia
seguinte, iniciaram uma série de encontros no apartamento de Nelson e nos
motéis da BR 040. Consolidaram uma relação agradável e prazerosa. Arnold andava nas nuvens, apaixonado e angustiado. A
qualquer momento poderia perder a mulher.
“Ela é a mulher da minha vida, mas tudo é mentira,
eu não sou o Roberto Drumond”.
Porque ele não conversava claramente com ela. Já
tinham ido longe o suficiente para que ela pudesse avaliar o que acontecera.
Ele não perderia, nem ela, disto eu tinha certeza.
“Mas ela é apaixonada pelo escritor, pelo que o
Roberto escreve, pelo talento, pelas histórias, pelas palavras”.
-
Roberto sabe disto?
-
Não.
Um não grande, retumbante. Um não sem convicção.
Duas horas da madrugada, na praça estávamos só nós
dois. Ele voltava de um encontro com Angélica e de um fim de turno.
-
Decidi, ela não vai saber nunca, se depender de mim. Vou viver até o
último momento sem pensar em perdê-la e quando isto acontecer, tudo bem.
Fomos jantar e no restaurante, Roberto Drumond
estava sentado com um grupo, onde duas mulheres linda o cercavam.
-
Como elas são belas?
Arnold concordou e ao sentar, pôs as mão no meu
ombro.
-
Meu amigo, eu posso lhe dizer isto, ela, Angélica, é muito mais bonita
do que todas aquelas mulheres que estão na mesa do Roberto.
Roberto nos cumprimentou, pois olhávamos direto para
a sua mesa.
*
Duas semanas depois, Arnold, nervoso, indeciso,
angustiado e sem saber o que faria. Roberto recusara atender, como sempre
fazia, uma sugestão de tema para a sua crônica diária.
-
Porra, este Roberto é um puto, já cansei de dar-lhe uns temas fodões
para escrever. Agora que eu mais preciso dele, mija fora do penico. Não dá,
desse jeito não dá.
Arnold tenso e agitado era um perigo. Descemos para
tomar um café. Eu tentaria resolver a questão com o Roberto.
-
Pô, eu prometi para a Angélica que amanhã eu falaria sobre o caso do
garoto que sonhava em jogar com uma bola vermelha.
-
Falaria?
-
Escreveria. Es-cre-ve-ria... Não encha, pô. Esqueceu, eu sou o Roberto
Drumond, será que você esqueceu mesmo. Eu como a mulher que o Roberto deveria
estar comendo e que é uma puta de uma mulher gostosa e que eu não quero perder
por nada deste mundo.
-
Calma!
-
Não posso mais ter calma. Ela já liga a qualquer hora para a redação e
acabará dando de cara com o Roberto. Já imaginou. Alô, quem fala? É o
Roberto... pronto tudo vai por água a baixo.
-
Vamos conversar com o Roberto, ele entenderá e vai te apoiar.
-
Ficou louco?
-
Ele me tomará a mulher. Num... nada. Nem. Esqueça, esqueça.
Tempos depois, Arnold me disse que engatara outra do
Roberto.
-
Mesmo esquema e já está funcionando. Esta chama-se Marta e é uma
professora de literatura e quer que eu vá até a escola.
-
Uma professora de literatura! Você ficou louco, ela conhece o Roberto,
lógico que conhece. Conhece de foto, sabe quem ele é e como ele é.
-
Vou conferir – insistiu.
-
Você ficou louco.
-
Roberto não tem tanto pau para tantas mulheres apaixonadas por ele.
Estou apenas dando cobertura a um amigo e à sua fama e talento.
O
fato é que, realmente, não deu certo. Marta conhecia Roberto Drumond de foto, tinha fotos dele e
reportagens sobre ele guardadas. Isto, entretanto, não impediu que ela passasse
a encontrar com Arnold e a pedir para que ele intermediasse a ida do Roberto à
escola.
Angélica
continuava com o seu romance com Arnold/Roberto Drumond ainda sob a corda
bamba. Ela chegava a um ponto em que poderia ter um desfecho e tudo voltava ao
normal.
Até que um dia...
O jornal anunciara que haveria uma palestra de
Roberto Drumond no Instituto de Educação sobre a literatura brasileira hoje.
Angélica anunciou categórica, eu vou estar na platéia para ouvi-lo. Arnold
tremeu pela primeira vez. A palestra seria na segunda-feira. Tinha três dias.
Foi no jornal e pediu férias.
“Vou viver com tudo o que eu tenho direito os meus
três últimos dias com Angélica”.
Passou cedo na casa dela e ficaram dois dias no
motel, depois foram para Tiradentes e voltaram direto para o Instituto de
Educação. Ele a deixou na porta.
-
Tenho que me afastar de você agora. Vou lá para a frente, tenho que
subir no palco. A entrada é pelo outro lado. Ouça-me e depois comente comigo as
coisas que vamos debater lá.
Arnold afastou-se.
Ela entrou e sentou numas das primeiras filas.
Ele foi para a galeria, de onde a observava.
As pessoas ocuparam o seu lugar no palco, entre
elas, Roberto Drumond.
A apresentadora falou sobre sua obra e a importância
de sua literatura.
Arnold ouvia confusamente tudo o que estava sendo
dito. Não tirava o olho de Angélica e de todos os seus movimentos.
Roberto Drumond pegou o microfone e começou a falar.
Ela não se movia. Era uma estátua, branca, transparente.
Arnold chorou. Entrou no banheiro e chorou chamando
a atenção da segurança.
Controlando-se, saiu para uma longa caminhada na
noite.
Subiu a avenida Afonso Pena até que uma dor no pé
esquerdo obrigou-o a parar.