segunda-feira, 30 de julho de 2012

A PERFEIÇÃO


O dia em que Arnold 


foi Roberto Drummond


 



Se houver uma camisa branca e preta pendurada 

no varal durante uma tempestade, 

o Atleticano torce contra o vento.



Roberto Drummond



      Enorme, grandalhão, cicatrizes de violências perdidas no rosto e sem memória das brigas e sem um pedaço da orelha, Arnold ia além da diagramação de um jornal. Eu o observava com orgulho de ser seu amigo. E ele era um amigo de muitos amigos e amigo até mesmo de nossos inimigos. Irrelevante. Arnold era fiel, verdadeiro.

Com as mulheres era mais verdadeiro que fiel, dizia o que queria e sua vida foi um amar continuado. Ao seu lado, paravam amigos talentosos, homens brilhantes, o poder.


Arnold trafegava seu corpo e suas paixões. No seu meio, os homens que mais brilhavam e eram sucesso, como seus amigos, o reconheciam apenas pelo seu talento complementar. Arnold sabia fazer o que ele precisava fazer. Um artista na diagramação de jornais.

Aventurava nas artes dos amigos e se arriscava. Muitas vezes errou, muitas vezes acertou. Foi assim com o seu amigo o escritor Roberto Drumond, já vitorioso homem de letras, ainda não no estrelato das novelas e casos especiais nacionais.

Roberto reverenciado como cronista no maior jornal do Estado, um sucesso, crônicas saborosas e muito lidas. Um sucesso.

Sobre Roberto e Arnold conto o que sei. E o que sei foi, neste caso, um dos sucessos de Arnold. O erro fica pro final da história.

O escritor quando entrava na redação percorria, na realidade, o cenário da  fama. Não aquele externo, onde os aplausos são fartos. O cenário interno, a redação, o cenário dos colegas, os que o admiravam e os que dominavam a inveja.  Arnold o admirava menos pelas qualidades literárias, do que pelas qualidades junto a uma imensa galera de mulheres apaixonadas. Neste ponto, o Arnold cedia e era um grande invejoso.

“Jamais me arriscaria a escrever uma linha, uma palavra sequer, para disputar com o Roberto. Não teria vez. Ele escreve com a caneta muito melhor do que eu, dos que nós todos. Disputo com ele na outra caneta, aí eu aposto, eu sei escrever muito bem e ganharia todas, se as condições não fossem tão desfavoráveis e, para piorar, eu sei que sou muito feio mesmo”......
       
Até que um dia, sem mais nem menos, a ficha caiu.

Absorto no trabalho, em horário de fechamento do jornal, horário em que ele era mais requisitado, correndo de um lado para o outro, em diálogos rápidos, o telefone toca.

-    É da redação?

-         É da redação.

A voz Arnold jamais esqueceria, uma voz suave, leve, uma mudança de som no meio daquele confusão e daquela fenomenal barrulheira da redação.
    Uma voz feminina, suave e firme.
-         É da redação?
     Ele tremeu todo e, imediatamente, desligou-se daquele  de barulho, gritos, ordens e correrias da redação.
-         É, é sim, é da redação.
-         Eu queria falar com Roberto Drumond.
     Arnold não hesitou.
-         É ele que está falando.
-         É o Roberto Drumond?
-         Sim, sou eu, às suas ordens. Como é o seu nome?
-         Angélica.
-         Angélica Almeida, eu moro aqui, em Belo Horizonte, li hoje a sua crônica e estou apaixonada. Liguei para dizer que gosto muito de você, sempre gostei. Hoje, você foi maravilhoso. Está de parabéns e continue assim.

Arnold buscou sobre a mesa um exemplar do dia e abriu apressado na página de futebol, onde estava a crônica de Roberto Drumond. Passou os olhos rapidamente.

-         Obrigado, Angélica, eu escrevi pensando na importância da rosa para todos nós, para as pessoas. O cheiro da rosa é um cheio mais do que especial, você não concorda e a memória do cheiro nos traz de volta muitas vezes uma rosa especial, aquela que levamos para uma namorada, para uma pessoa em um momento especial. Este cheiro é de uma rosa, mas de uma rosa especial. Foi isto o que aconteceu depois daquele lance defendido pelo Raul, ele soube, como um atleta, ir ao coração das mulheres.
-         Era isto, uma boa noite.
-         Boa noite, Angélica. Caso, você queira voltar a ligar, ligue direto para este número e neste horário. Estou sempre aqui e será um prazer falar, te ouvir e eu gosto da opinião de quem lê com o coração.
-         Eu voltarei a ligar.

No dia seguinte e nos outros dias, àquela hora os dois falavam. Arnold montou um esquema para evitar que o telefone acabasse caindo na mesa do Roberto. Dias depois, conseguiu que ela desse o seu número e ele ficou mais seguro ligando para ela.
   
Um mês depois se encontraram, almoçaram e, no dia seguinte, iniciaram uma série de encontros no apartamento de Nelson e nos motéis da BR 040. Consolidaram uma relação agradável e prazerosa. Arnold  andava nas nuvens, apaixonado e angustiado. A qualquer momento poderia perder a mulher.

“Ela é a mulher da minha vida, mas tudo é mentira, eu não sou o Roberto Drumond”.

Porque ele não conversava claramente com ela. Já tinham ido longe o suficiente para que ela pudesse avaliar o que acontecera. Ele não perderia, nem ela, disto eu tinha certeza.

“Mas ela é apaixonada pelo escritor, pelo que o Roberto escreve, pelo talento, pelas histórias, pelas palavras”.

-         Roberto sabe disto?
-         Não.

Um não grande, retumbante. Um não sem convicção.
    
Duas horas da madrugada, na praça estávamos só nós dois. Ele voltava de um encontro com Angélica e de um fim de turno.

-         Decidi, ela não vai saber nunca, se depender de mim. Vou viver até o último momento sem pensar em perdê-la e quando isto acontecer, tudo bem.

Fomos jantar e no restaurante, Roberto Drumond estava sentado com um grupo, onde duas mulheres linda o cercavam.

-         Como elas são belas?

Arnold concordou e ao sentar, pôs as mão no meu ombro.

-         Meu amigo, eu posso lhe dizer isto, ela, Angélica, é muito mais bonita do que todas aquelas mulheres que estão na mesa do Roberto.

Roberto nos cumprimentou, pois olhávamos direto para a sua mesa.


                                                          *

    
Duas semanas depois, Arnold, nervoso, indeciso, angustiado e sem saber o que faria. Roberto recusara atender, como sempre fazia, uma sugestão de tema para a sua crônica diária.

-         Porra, este Roberto é um puto, já cansei de dar-lhe uns temas fodões para escrever. Agora que eu mais preciso dele, mija fora do penico. Não dá, desse jeito não dá.

Arnold tenso e agitado era um perigo. Descemos para tomar um café. Eu tentaria resolver a questão com o Roberto.

-         Pô, eu prometi para a Angélica que amanhã eu falaria sobre o caso do garoto que sonhava em jogar com uma bola vermelha.
-         Falaria?
-         Escreveria. Es-cre-ve-ria... Não encha, pô. Esqueceu, eu sou o Roberto Drumond, será que você esqueceu mesmo. Eu como a mulher que o Roberto deveria estar comendo e que é uma puta de uma mulher gostosa e que eu não quero perder por nada deste mundo.
-         Calma!
-         Não posso mais ter calma. Ela já liga a qualquer hora para a redação e acabará dando de cara com o Roberto. Já imaginou. Alô, quem fala? É o Roberto... pronto tudo vai por água a baixo.
-         Vamos conversar com o Roberto, ele entenderá e vai te apoiar.
-         Ficou louco?
-         Ele me tomará a mulher. Num... nada. Nem. Esqueça, esqueça. 

Tempos depois, Arnold me disse que engatara outra do Roberto.
-         Mesmo esquema e já está funcionando. Esta chama-se Marta e é uma professora de literatura e quer que eu vá até a escola.
-         Uma professora de literatura! Você ficou louco, ela conhece o Roberto, lógico que conhece. Conhece de foto, sabe quem ele é e como ele é.
-         Vou conferir – insistiu.
-         Você ficou louco.
-         Roberto não tem tanto pau para tantas mulheres apaixonadas por ele. Estou apenas dando cobertura a um amigo e à sua fama e talento.


O fato é que, realmente, não deu certo. Marta conhecia  Roberto Drumond de foto, tinha fotos dele e reportagens sobre ele guardadas. Isto, entretanto, não impediu que ela passasse a encontrar com Arnold e a pedir para que ele intermediasse a ida do Roberto à escola.

Angélica continuava com o seu romance com Arnold/Roberto Drumond ainda sob a corda bamba. Ela chegava a um ponto em que poderia ter um desfecho e tudo voltava ao normal.

Até que um dia...
    
O jornal anunciara que haveria uma palestra de Roberto Drumond no Instituto de Educação sobre a literatura brasileira hoje. Angélica anunciou categórica, eu vou estar na platéia para ouvi-lo. Arnold tremeu pela primeira vez. A palestra seria na segunda-feira. Tinha três dias. Foi no jornal e pediu férias.

“Vou viver com tudo o que eu tenho direito os meus três últimos dias com Angélica”.

Passou cedo na casa dela e ficaram dois dias no motel, depois foram para Tiradentes e voltaram direto para o Instituto de Educação. Ele a deixou na porta.

-         Tenho que me afastar de você agora. Vou lá para a frente, tenho que subir no palco. A entrada é pelo outro lado. Ouça-me e depois comente comigo as coisas que vamos debater lá.

Arnold afastou-se.

Ela entrou e sentou numas das primeiras filas.

Ele foi para a galeria, de onde a observava.

As pessoas ocuparam o seu lugar no palco, entre elas, Roberto Drumond.  

A apresentadora falou sobre sua obra e a importância de sua literatura.

Arnold ouvia confusamente tudo o que estava sendo dito. Não tirava o olho de Angélica e de todos os seus movimentos.

Roberto Drumond pegou o microfone e começou a falar. Ela não se movia. Era uma estátua, branca, transparente.

Arnold chorou. Entrou no banheiro e chorou chamando a atenção da segurança.

Controlando-se, saiu para uma longa caminhada na noite.

Subiu a avenida Afonso Pena até que uma dor no pé esquerdo obrigou-o a parar.