A arte da mentira e
da sobrevivência
da sobrevivência
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Fim da fuga: Chuí, no extremo sul do Brasil |
Vivi num tempo em que fugir
era, em quase todos os momentos, condição de sobrevivência. Ou fugia ou morria.
Ou fugir ou ser preso. E prisão significava tortura e morte. A sobrevivência,
dura, difícil e, quase sempre, impossível.
A arte da fuga era imperativa.
Aprender a fugir, estar sempre pronto para escapar, uma necessidade como o
alimento de todo dia.
Entre as muitas fugas, a mais
longa foi feita no percurso Juiz de Fora, Belo Horizonte, São Paulo, Porto
Alegre, Santa Maria e Chui, onde a fuga terminou e onde fui preso e transferido
na mesma noite para Santa Maria e depois Porto Alegre, no Rio Grande do Sul.
Na capital gaúcha, fiquei
preso mais de 30 dias, exatos 45 dias. No quartel da Polícia do Exército,
num casarão velho no centro da capital, a carceragem tinha três celas, uma
grande e duas de isolamento, castigo, nos fundos da cela maior. As duas celas
não tinham latrina e nem água. Ali, isolado, era vigiado por um soldado suicida,
preso na cela maior.
Foi a fuga em que perdi a
parada. Incompetente para fugir. Capturado, iniciei uma outra arte, a arte para
a sobrevivência, a arte da mentira, num jogo de gato e rato, onde teria que ser
sempre o perdedor. Ganhar significaria morrer. Não poderia cometer a burrice da
criança que quer ganhar todas, desde jogo de bola de gude, partida de futebol e
a menina mais bonita do lugar.
Neste jogo de sobrevivência,
onde a mentira tornar-se-ia uma arte, perder fazia parte essencial do jogo,
assim ser capturado na mentira, perder, no jogo da investigação e da
inteligência, também fazia parte da estratégia da sobrevivência no
interrogatório. O policial tinha que apanhá-lo mentindo, era a jogada da
“Mentira de Pernas-curtas”. A mentira de pernas-curtas tinha uma medida precisa,
pois não se podia abusar da inteligência do outro.
No jogo de polícia e bandido,
onde além de ser sempre o bandido, o derrotado, você também era um prisioneiro
totalmente dominado e submetido ao poder policial do torturador, poder sem
limites, poder sobre a sua própria vida e integridade física. Ele tanto podia
te arrebentar, matá-lo, machucá-lo como podia esquecê-lo, sem água e comida, no
fundo daquela micro-cela, sem nada, sem água, sem vaso sanitário, em meio a
fezes e urina, suas próprias fezes, sua própria urina, dois, três dias, uma
semana, trinta dias sem tomar banho, sem nenhuma higiene. O cheiro insuportável
de si mesmo.
Ali, na cela da PE de Porto
Alegre, da Polícia do Exército, do Exército Brasileiro, em um quartel que,
tenho notícia, teria sido demolido, ao lado da escola de engenharia da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, ali, naquela cela, cela de castigo,
dentro de outra cela, ali, eu li um único livro, o livro que escolhi para me
acompanhar aqueles 30 dias, o Ulysses, de James Joyce. Naquela cela, encontrei
a salvação.
Aconselho, a quem quer ler
uma grande obra, volumosa, intrigante, genial, como Ulysses, a experimentar
este isolamento. Se possível, não em uma prisão. Muito menos em uma cela de
castigo. Nem na da PE de Porto Alegre, no velho casarão. Ele não existe mais.
Ulysses de Joyce jamais será
demolido, como não o foi por nenhuma tradução mundo afora, e é uma obra literária eterna.