Lúcio Flávio Pinto
O escândalo teve repercussão internacional: uma
menor estava presa na mesma cela com 26 homens na delegacia de Abaetetuba. Mas
isso já é coisa do passado. Lidiane atingiu a maioridade - e continua na senda
do crime. Quem ainda se interessa por ela?
L. S. P.
já pode ser tratada por seu nome completo: Lidiane Silva Prestes. Ela deixou de
ser menor de idade. Completou 20 anos. A partir de agora, talvez já não
interesse mais senão a uma microscópica parcela da multidão de gente que se
chocou com a situação dela quatro anos atrás.
Seu caso
se tornou escândalo - nacional e internacional - no dia 20 de novembro de 2007.
Ela foi descoberta numa cela coletiva com 26 homens em Abaetetuba, onde
permaneceu presa durante 26 dias. Queixou-se de ter sido submetida a violência
sexual, abuso sexual, ameaças, agressões físicas, maus tratos e fome. Seus
cabelos foram cortados, os pés queimados.
A juíza
da 3ª vara criminal de Abaetetuba, responsável pelo processo da menor, Clarice
Maria de Andrade Rocha, então com 50 anos, foi absolvida pelo Tribunal de
Justiça do Estado, que não acatou o parecer do Corregedor Geral, Constantino
Guerreiro, pela punição da magistrada. Mas ela acabou sofrendo a aplicação da
pena mais rigorosa da carreira da magistratura, a demissão compulsória, com
vencimentos proporcionais ao tempo de serviço (de nove anos), pelo Conselho
Nacional de Justiça, que avocou para si o processo.
O diretor
de secretaria da vara de Abaetetuba, Graciliano Chaves da Mota, disse na
sindicância instaurada para apurar a responsabilidade da juíza: ao invés de
atender de imediato o pedido do delegado de polícia, ela guardou o ofício na
gaveta e só tomou uma providência depois que a notícia foi divulgada e virou
escândalo.
Para
ocultar seu erro, obrigou Graciliano a expedir uma certidão falsa e adulterou a
data do expediente, através do qual cientificava a Corregedoria do pedido da
polícia e solicitava autorização para a remoção da presa. No seu depoimento,
Graciliano assumiu a sua parte de culpa na trama. Explicou que agiu dessa maneira
por pressão da magistrada.
Ao se
defender na sindicância, a juíza revelou que a Polícia Federal investigava na
mesma época a ação do narcotráfico em Abaetetuba, inclusive com a proteção de
autoridades locais. Um dos visados seria justamente o diretor de secretaria da
vara. Clarice disse que, “obviamente”, nada ficou provado contra o diretor de
secretaria, “mas não poderia ser diferente em razão de ter tido ele
conhecimento da quebra do sigilo”. Ou por ser realmente inocente, já que a
investigação da PF não avançou sobre ele.
A reação
de Graciliano, ao saber que a juíza autorizara a quebra do seu sigilo
telefônico, a pedido da PF, “foi de revolta”. Na presença da própria juíza e da
secretária do gabinete, “ameaçou todos que tinham contribuído para isso,
citando o nome do promotor”, declarou a magistrada. A denúncia sobre a
falsificação do documento para a corregedoria, com data anterior, seria a forma
de vingança que Graciliano adotou.
A
comissão de sindicância da Corregedoria de Justiça do Interior, no entanto, deu
mais crédito ao depoimento dele do que ao da juíza na reconstituição dos
acontecimentos. Entendeu que a magistrada não percebeu a gravidade da situação
da presa em dois momentos nos quais se manifestou no processo: ao manter o
flagrante da prisão e ao receber o pedido de transferência. Por isso, reclamou
de Graciliano não a ter alertado sobre a urgência do pedido e foi surpreendida
pela repercussão da notícia.
Só então
teria preparado o ofício à Corregedoria, solicitando autorização para a transferência
da menor. Para preparar o documento, recebeu ajuda da sua assessora Ana Dias.
Apesar de ter participado da fraude, Ana referendou a versão de Graciliano.
Segundo a juíza, por ser amiga do diretor. O único fato incontroverso nessa
história é que a comunicação só foi recebida em Belém no dia 23 de novembro de
2007, quando o escândalo já se tornara incontornável.
Por 15 a
7 (com uma abstenção e seis ausências, pelo menos duas delas inexplicáveis),
porém, a maioria dos desembargadores do TJE decidiu rejeitar a abertura do
processo administrativo disciplinar contra a juíza, arquivando os autos da
sindicância. A decisão provocou revolta e indignação, no Pará e fora do Estado,
levando o CNJ a intervir no caso. Menos de um ano depois da aposentadoria de Clarice,
determinada pelo Conselho em abril de 2010, o Tribunal de Justiça do Pará a
nomeou para o cargo em comissão de assessora de juiz junto ao gabinete da 6ª
vara cível de Belém.
Independentemente
do dolo ou culpa individual no episódio, que pode revelar os erros cometidos
pela juíza, quando da prisão da menor, Clarice acumulava a direção do fórum, a
execução penal e o juizado cível e criminal, além de realizar o tribunal do
júri. Uma estrutura que pode induzir a erros, como acontece em quase todos os órgãos
do governo no interior do Estado. E que acaba transferindo o preço dos erros
para a parte mais fraca, que paga a conta. A da juíza não foi a maior, muito
pelo contrário.
O
processo disciplinar, que contra ela não foi adiante na justiça estadual,
instaurado pelo Estado em 19 de dezembro de 2007, resultou no indiciamento dos
delegados Antônio Fernando Botelho da Cunha, Celso Iran Cordovil Viana, Flávia
Verônica Monteiro Pereira e Rodolfo Fernando Valle Gonçalves, embora a
conclusão da comissão, formada por três delegadas, não tenha sido unânime.
A
Consultoria Geral do Estado concluiu seu parecer, em agosto de 2010, e endossou
as recomendações do PAD para a demissão de todos por justa causa. Só os
investigadores Sérgio Teixeira da Silva e Adilson Pires de Lima foram
inocentados. Também a promotora da comarca foi absolvida pelo Conselho do
Ministério Público. Mas a história não foi contada por inteiro. Nem terminou.
Retirada
do Pará depois de muitas manifestações de protesto e indignação pelo fato,
Lidiane entrou, no final de 2007, para o Programa de Proteção a Crianças e
Adolescentes Ameaçados de Morte da Secretaria de Direitos Humanos da
Presidência da República. Mas fugiu várias vezes da clínica Mansão Vida, em
Brasília, onde tinha tratamento especial, quase luxuoso, sob a premissa de que
era uma pessoa plenamente recuperável.
Uma vez
na rua, se prostituía e praticava pequenos furtos para comprar crack, droga da
qual se tornou dependente. Pelos furtos, acabou sendo presa e condenada, aos 17
anos, por tentar matar uma jovem com uma faca. Passou pela unidade de
internação para menores infratores do Distrito Federal e, depois, por uma
comunidade terapêutica mais simples, a 35 km de Brasília, onde ficou durante 18
meses, até completar a maioridade.
Outras
tentativas foram ainda feitas para reajustá-la, mas não parecem ter dado certo.
Ela ganhou o mundo, sumiu. Entrou de vez na delinquência. Talvez não volte
mais. Deixou de ser iniciais, recuperou seu nome, mas, por ironia, se tornou
anônima. Como milhares de jovens que atravessam o limite da menoridade e
ingressam na senda do crime.
L.S.P. se
tornou famosa no final de 2007, mas nesse mesmo ano por 13 vezes ela foi
autuada pela delegacia de Abaetetuba, sendo quatro em flagrante. Uma vez como
autora do fato, uma como infratora, cinco como indiciada e seis como suspeita.
Não era noviça no crime. Ficou por três vezes presa na delegacia. Só na última
é que foi descoberta.
A
primeira prisão de 2007 foi em 24 de junho, feita pelo delegado Rodolfo
Gonçalves. Foi liberada com o pagamento de fiança. A segunda prisão, por
tentativa de furto, um mês depois (em 21 de julho), pela delegada Flávia
Pereira. A menor foi liberada pelo Conselho Tutelar. A terceira prisão
aconteceu dois meses depois (em 14 de setembro), pelo delegado Celso Viana. A
menor foi solta pelo mutirão da justiça.
Todas as três prisões foram em
flagrante. Mas ela não era caso isolado de violência carcerária.
Em 26 de
fevereiro de 2007, Antonio Fernando Botelho da Cunha, superintendente regional
do Baixo Tocantins, com sede em Abaetetuba, solicitou à juíza Clarice Andrade a
transferência, “com a máxima urgência”, da presa de justiça Hilma Carla
Oliveira Brabo, para o Centro de Recuperação Feminino, em Belém.
No dia 4
de março a polícia prendeu Sandra Brandão Bahia, que foi colocada na mesma cela
de Hilma, “encontrando-se ambas no corredor do xadrez” da delegacia, “expostas
ao risco de serem vítimas de todo tipo e qualquer tipo de violência, uma vez
que se encontram juntamente com presos do sexo masculino”, conforme outro
ofício do superintendente. No dia seguinte o delegado reiterou o pedido da
semana anterior.
No dia 9
voltou a pedir a transferência urgente de Sandra Bahia, “uma vez estar
dividindo cela com outros presos do sexo masculino, em situação vexatória e de
risco”. Em 10 de abril pediu que fosse transferida pelo menos a metade dos 43
presos da delegacia “para as outras casas penais da Susipe [Superintendência
do Sistema Penal], especialmente o Centro de Recuperação Regional de
Abaeté”. Uma mulher, Adriana Lopes Andrade, “divide espaço junto a outros
presos de Justiça”. Só depois do escândalo é que 22 presos foram transferidos,
restabelecendo-se a lotação prevista.
No dia 3
de maio Fernando Cunha fez o mesmo pedido em relação a Adriana e outra mulher,
Raimunda Socorro Lobato, que também estava presa, “uma vez inexistir
dependência especial para mulheres nesta Depol, permanecendo as mesmas
misturadas com os presos masculinos no corredor do xadrez”.
Em 5 de
novembro o superintendente pediu à juíza a transferência, “em caráter de
urgência”, de Lidiane Silva Prestes, para ficar sob custódia do Centro de
Recuperação Feminino de Ananindeua, “uma vez que não possuímos cela para o
abrigo de mulheres, estando a mesma custodiada com outros detentos, correndo
risco de sofrer todo e qualquer tipo de violência por parte dos demais”. O
ofício foi protocolado na secretaria da 3ª vara penal dois dias depois.
A juíza
Clarice havia concedido liberdade provisória para Lidiane durante mutirão de
audiências da 3ª vara em 18 de setembro de 2007. A promotora Rosana Parente
Souza concordou com o pedido da defensora pública. A detenta foi tratada pelo
nome completo e não pelas iniciais, como manda o Estatuto da Criança e do
Adolescente, porque foi considerada como tendo 19 anos. filha de Joicecleia de
Nazaré da Silva e Aluízio Alberto da Silva Prestes, residente em Abaetetuba.
Ela foi presa em flagrante.
Uma
certidão de um cartório de Agildo da Costa Campos, de Barcarena, de outubro de
2001, a declara como nascida em 10 de dezembro de 1991, com o nome de Lidiany
Alves Brasil, filha de Roberly Silva Brasil e Joisecléa Félix Alves. Mas só foi
registrada em agosto de 1997.
Já a
certidão do cartório do Aicaraú, na mesma comarca de Barcarena, de Waldomiro da
Costa Campos, de maio de 2008, declara que o nome dela é Michelle de Nazaré
Alves Brasil, nascida em 29 de outubro de 1991. Os nomes dos pais são os mesmos
(só a mãe que tem o nome ligeiramente modificado para Francicléa). Mas ela
seria registrada em 7 de dezembro de 1995. Depois que ela foi retirada da cela,
laudo do IML lhe atribuiu entre 15 e 17 anos.
A
responsabilidade pela carceragem era da Superintendência do Sistema Penal,
através dos seus agentes prisionais, encarregados exclusivos da guarda de
presos. Os agentes prisionais Benedito Amaral de Lima, João de Deus de Oliveira
e Marcos Serrão Pureza é que ficavam com as chaves da carceragem; Eram os
responsáveis pelo recolhimento dos presos e o fornecimento da alimentação. Em
Abaetetuba a transferência da carceragem passou para a Susipe no final de 2006.
A superintendência foi criada em 2004.
Eliane
Belém Pinheiro ingressou no sistema penal em 1993. Doze anos depois, em 2005,
assumiu a direção do Centro de Recuperação Regional de Abaetetuba. No
depoimento que prestou à comissão processante, em março de 2008, a advogada,
residente em Abaetetuba, mas nascida em Belém em 1967, disse que, durante sua
gestão à frente da Casa Penal de Abaetetuba, “nunca recebeu informação por
parte dos agentes [prisionais] no que diz respeito a agressão física ou
violência sexual praticada contra mulheres dentro da Delegacia de Polícia de
Abaetetuba”. Admitiu que a guarda dos detentos “é de responsabilidade dos
agentes prisionais”. Que quem promovia a transferência de presos era o sistema
penal e não o judiciário ou a polícia.
Mas
quando Fernando Cunha assumiu a superintendência de polícia da região, o
relacionamento entre a delegacia e a casa penal ficou “mais distante”. Cunha
adotou essa atitude porque “questionava a responsabilidade sobre a carceragem”,
considerando-a de inteira responsabilidade do sistema penal. Por isso, a partir
de agosto de 2007, os alvarás de soltura, que eram encaminhados para o
delegado, ficando arquivados no cartório da delegacia, passaram a ser entregues
diretamente aos agentes prisionais.
Antes,
“os alvarás de soltura eram entregues na delegacia para os policiais e estes
então apresentavam para os agentes prisionais, que retiravam o preso da
carceragem, tanto que os alvarás de soltura eram dirigidos aos delegados”. Com
a mudança feita pelo novo superintendente, embora os alvarás de soltura fossem
endereçados à Casa Penal, eram encaminhados pela justiça “diretamente ao agente
prisional, pois o Fórum sabia onde os presos estavam recolhidos”.
Com essa
nova situação, Eliane consultou através de ofício o superintendente da Susipe,
“a fim de que fosse definido a quem pertencia a responsabilidade pela
carceragem de Abaetetuba”. Não recebeu qualquer resposta.
Mas no
ano anterior a direção da Susipe lhe havia pedido “verbalmente” (como era feito
boa parte dos pedidos e orientações) que ela “fiscalizasse aquela carceragem,
bem como a de Vila dos Cabanos”. Por esse motivo - e diante do novo
procedimento do delegado Fernando Cunha - Ellen decidiu “por planejar num tipo
de cadastramento dos presos que estavam na delegacia, porém, como saiu de
férias, não pode dar início aos trabalhos”. Soube do escândalo através de um
telefonema que um agente prisional lhe deu. Disse que até esse momento nada
soubera sobre a menor. Nada lhe fora comunicado a respeito.
Muitas
das normas e ordens seguidas rotineiramente pelos integrantes do sistema penal
em Abaetetuba não constavam de qualquer documento escrito: eram dadas
verbalmente. Os agentes prisionais, por exemplo, não tinham nenhuma orientação
por escrito sobre o recolhimento de mulheres à carceragem, admite Ellen,
ressalvando: “os agentes regionais participaram de vários cursos e palestras
relativos ao tratamento do homem encarcerado, e com relação à prisão das
mulheres, eles sabiam verbalmente que o procedimento a ser adotado era ligar
para a direção da casa penal para a transferência imediata”.
Inexistia
igualmente norma escrita de orientação sobre como proceder “em caso de não
haver condições de receber determinado preso”. Mais uma vez os agentes deviam
lançar mão do que aprenderam “através de cursos e palestras realizados pela
Susipe”. Como “não havia condição de se negar o recebimento de um preso, o que
acontecia era que quando a carceragem estava superlotada, os agentes e também
os delegados telefonavam solicitando vagas” na casa penal.
A
conclusão desses fatos é de que os maiores responsáveis pelos erros, que
continuam a ser praticados, encontraram nos personagens de linha de frente o
escudo para se proteger, ou bodes expiatórios para imolar no altar da opinião pública.
Dramas como o vivido pela menor continuam a se repetir. O escândalo é questão
de oportunidade. Ou acidente. Lidiane parece carta fora do baralho. Perdeu sua
história.
LFP @
fevereiro 1, 2012