Homem
sem Beatriz
“Como poderia ser feliz o homem
que faz depender a sua felicidade
de algo que não depende dele?”
Huberto Rohden, in “O poder da felicidade”,
Ela
O Livreiro
abria a porta da minha loja e aquele homem
estava ao lado dele.
Ouvi “esta porta é pesada”.
Não prestei muita atenção nele. Naquele dia eu estava de óculos escuros e cansada.
Ouvi “esta porta é pesada”.
Não prestei muita atenção nele. Naquele dia eu estava de óculos escuros e cansada.
O Livreiro
- Quer saber a
história daquele homem?
Ela não se
lembrava. Disse O Livreiro: “Ele trouxe
uns livros que foram da mulher dele para vender.”
Ela lembrou.
O homem na porta da loja – “esta
porta é pesada” – carregava um embrulho. Ela lembrou.
Hoje,
ficamos sabendo o nome da mulher. Beatriz. É o nome que está escrito na primeira
página. Um nome: Betariz. Uma data: Neste livro, 2003. Um livro lido, grifado e
estudado.
Beatriz morreu
há quatro meses. Ela pediu que O homem
fosse ao mercado e quando ele voltou a encontrou morta, já fria, no sofá.
Suicidara.
O homem
Conheci Beatriz há 22 anos. Quando casamos, ela tinha 40 anos e eu 35. Fomos muito felizes,
viajamos muito não indo, nem sempre muito longe. Escolhíamos lugares
diferentes, aconchegantes. Ela tinha decidido que não viveria os seus 60 anos,
“uma idade muito ruim, muito triste e com todos os males chegando”.
- Quando ela fez 60 anos?
- Um mês
antes.
Ela
O Livreiro
percebeu que, mais do que vender os livros, o homem procurava alguém com
quem conversar. Precisava falar.
Z
Temos que
localizar este homem. Vamos ajudá-lo a entrar em outra história. Ainda não fez
60 anos e não repetirá a mulher. Aos 55 anos, ainda é um homem distante dos 60.
Ela
Hoje,
cheguei cedo antes do O Livreiro, o livreiro vizinho. O homem estava na minha porta e carregava um volume de livros. Se
ofereceu para ajudar a abrir a porta.
- Esta porta
é muito pesada.
Convidei
para entrar na loja, acendi as luzes e, mais apressada do que o normal, queria
ouvi-lo antes do O Livreiro chegar.
O homem
Esta era a Beatriz. (Mostra a foto de uma mulher loura, bonita e, aparentemente, alegre.)
Sim, sim, ela era muito alegre, muito feliz. Nós decidimos que não teríamos
filhos, eu já tinha uma filha do primeiro casamento. Decidimos que iríamos ser
felizes e viveríamos nós dois, nossos sonhos, nossos caminhos. Leitora voraz,
como psicóloga, em seu consultório, ela ouvia muito mais e lia a vida de todas
aquelas pessoas.
Ela
Ele falava.
Não o interrompi. Não perguntei nada para permiti que ele dissesse o que queria
e precisava falar.
O homem
Beatriz estava
morta no sofá. Nada de diferente. Estava adormecida. Estava morta. Em um bilhete ela alertava de que ele não
devia cheirar, inalar, aquele veneno. Era fatal. Em outro trecho, pedia para
que sua morte fosse comunicada por uma prima dela e não por ele, o homem. Quis ser enterrada vestida com uma minha
camisa. Tinha detalhes, era muito vaidosa.
Ela
Ele parecia
ser um homem magoado, machucado. Não sei se é isso, sentia que ele se sentia
traído pela decisão dela se matar. Havia, em si, respeito pela mulher e pela vontade dela. Não
via em seu rosto ainda nenhuma tristeza – parecia ainda em estado de choque.
O Livreiro
chegou. Logo depois, o homem voltou e me deu um livro que não conseguira
vender. Era “O poder da felicidade”, um livro-clipping
