quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

ÉRAMOS UM










O silêncio de pai



Depois da segunda operação, colostomizado, pai não mais fala. A voz não sai. Explicação: teria sido em virtude do processo de oxigenação. Talvez. Talvez a nova realidade pós cirurgia. Se eu o conheço, sei que ele brigará pela vida.

Ali estávamos nós dois. Um pai e um filho. Vivíamos iguais e diferentes realidades.

Realidade igual. Havíamos perdido as nossas mulheres. Ele viúvo e eu solteiro de novo, divorciado.

Realidade diferente. Agora, eu seria seu parceiro, seu companheiro, seu auxiliar de enfermagem, seu acompanhante. E ele, a minha memória do seu tempo e de suas histórias. Estava ali para ouvir e ouviria o tempo que pudesse e estava ansioso com as suas falas, mesmo as repetidas que só me traziam alegria pela exatidão.

Não conseguia entender seus silêncios.

Paro na sua frente. Seu corpo magro, pele e osso, braços finos, ombros à mostra, rosto seco. Pai se cala para tudo. Ele optou por calar?  Falar para ele tornou-se impossível, desnecessário. Agora seus diálogos estão nos olhos, se quiséssemos ouvi-lo deveríamos aprender a olhar.

- Use os olhos.

- Olhe.

- Fale também com os seus olhos.

A amizade que chega de diferentes vozes, não era um alerta, era uma inspiração, um carinho.


Dias depois, pai levantou falando normalmente. Recuperara a voz. Naquele dia, tornou-se crítico e ácido com Mirtes, “aqui, eu mando”, percorrendo um caminho em que seu rosto revelava o seu inconformismo. Ele não sustentou esta fase durante muito tempo, nem a sua voz normal. Não durou nada a sua vontade de manifestar-se.

Calou mais uma vez. Já era uma voz cansada, um raciocínio quebrado por esquecimento, mais esquecia do que lembrava, já era uma voz diante de uma porção de vozes de jovens e de pessoas maduras, que se expressavam, com talento, sem esquecimentos e com vida.

Ele calou-se. Ele pouco ouvia. Ele muito ouvia?


De novo, o olhar se impunha e aos poucos ele retomaria sua fala, agora curta, de poucas palavras, mas certeiras.

Vinha depois de silêncios e de olhares cruzados de uma nova amizade.

Confiávamos um no outro. Éramos amigos. Éramos um.