Todos os Rostos
I
Meu
pai morre
são
poucos os seus dias
seu
rosto é o rosto de vó
Na
morte
é
o rosto de vô João, seu pai
É
de Cici
seu
rosto magro
Seus
olhos vêem
o
vazio
Sem
deus, sem desejos,
Sem
sonhos,
é
um deus silencioso
Ele
está feliz
Resiste
Quer
viver
-
Tem chance?
-
Nenhuma
Meu
pai morre,
em
volta, voam
Voam
todas as aves
Voam
todas as flores
No
ar, na vida
Ele
olha, sua vida
são
os seus olhos,
é
o olhar, ver,
ir
pelos olhos
Olhos
no vazio
Olhar
firme
de
quem resiste
Quer
vive.
Orgulhoso,
eu amo meu pai
sua
luta, sua vida pela vida
Vida
frágil
-
Frágil agora?
-
Dolorosa?
Dolorosa,
agora
Outras
foram as dores da vida
Agora
é a dor pura dor
do
agora
A
vida é vida feliz,
vista,
revista,
Vida
feliz, feliz,
sempre
boa
sempre
bela
Muito
gostosa
-
Não mais
II
Os
homens sabem
seu
tempo
Homens
sabem
o gosto do sal
Sabem
a dor de perder
Geniais,
conhecem a alegria,
o
sorriso e a aventura feliz
Os
homens são bons
e
felizes
É
da natureza do homem
ser
feliz
-
Queres conhecer um homem?
Encontre
o seu sorriso
Hoje,
aprendo com o meu pai
o
valor do pão salgado,
pão
quente e com o sabor da manteiga
que
amarelece
Hoje,
aprendo com o meu pai
o
quanto é bom ter companhia
Como
foi difícil, como demorou
aprender,
saber, ser bom
Aprender
na jardinagem, a aprendizagem
da
bondade
Nunca
deixar seca a terra do sentir.
Todo
amor precisa de água
III
Meu
pai morre
abençoado
pela vida
Meu
pai morre
arrebentado,
corpo
cortado,
As
fezes saem no umbigo
e
ele é um homem feliz
Voz
fraca, sem voz
O
que eu não entendo?
O
que eu devo saber?
Meu
pai morre
e
sorri feliz
Fala
da sua alegria
de
ter um cachorrinho
Briguelo
que,
tenso e sensível, chora e sofre,
tenso
e sensível,
ele
sabe do desfecho, do dia que chega
Como
todos nós, animais,
sofre
e chora
Como
os bois e as vacas lá no pasto,
da
fazenda de Pavão,
choravam.
Choram
na
tristeza do entardecer
A
montoeira de gado caminha
para
lá e para cá
levanta
a poeira fina e leve,
baixa
e fraca, poeira que não é
poeira
de nenhuma corrida
Poeira
arrancada de um triste pensar,
do
andar ritual do ser gado
Poeira
também triste
Todos,
tudo chora um choro
que
não se entende
não
se sabe
Ninguém
sabe chorar um morto
(no fim
daquele boi companheiro)
como os
animais no pasto
IV
Meu
pai vive
traz
de volta Poté,
das
estradas do Norte
Vive
e faz viver
tempos,
pessoas e todos riscos
vividos
Vive
e dilacera vidas
em
seu frágil gesticular
quase
sem voz, só olhos.
V
Por
que meu pai não pode saber
da
guerra que mata
da
violência do mundo hoje
das
agonias de sempre?
Ele
morre.
VI
Todos
mentem para um homem que morre
Todos
enganam a morte do outro
Ninguém
diz a verdade a quem morre
morrendo
na morte de todos os dias
Ninguém
arrisca diálogos verazes
Por
que?
Por
que o homem que morre é poupado?
Por
que a morte poupa os vivos?
VII
Pai
olha, olhar perdido
Olha
O
que ele vê, eu não vejo
O
que ele percebe?
A
sensação é de que está
atrás
de mim
ou
além do que sou
Estarei
desnudo
Estarei
futuro
Apanhado
no meu escuro,
visto,
flagrado inteiro, perfeito
Ele
sabe quem eu sou
(Eu
não sei)
VIII
Não
desperdice nada do seu pai
Ouça-o
Fale
pouco
Observe,
veja
-
Veja
Olhe
bem seus olhos frágeis,
suas
mãos trêmulas,
seus
braços magros e enrugados
Guarde
cada gesto, cada respirar
E
no respirar dele, respire no seu ritmo
como
fazia para minha Quequel dormir
Não
perca nada
Ele
vai embora
Já
a partir de agora,
só
estará em seu coração,
em
suas veias,
em
sua mente,
nos
ossos, na ponta do seu nariz
em
suas mãos e em seu cheiro
em
sua maneira de dizer
e
em seu sorriso
Seu
pai foi um homem feliz
e
bom
Foi
um homem bom, foi um homem feliz
IX
Há
no coração
muito
ódio
Descubra
que o ódio
está
só no coração
Fácil
dissolvê-lo,
jogar
todo o ódio
na
merda
saindo
pelo umbigo.
Há
em meu coração
muito
ódio
Burro,
o ódio
que
entrou
e
que domina
Eu
não posso viver
Se viver for odiar
nem
quero viver
se
viver for matar
(e
matar-me)
X
Meu
pai morre
E
morre em mim
a
possibilidade de vida
Morre
em mim
não
a capacidade de sonhar
morre
o sonho
do
que quis ser para ele
Ele jamais
saberá
do meu
inútil esforço
(Melhor)
XI
Os
que fingem
diante
da dor verdadeira
(deles
mesmos)
estão
assustados
nada
ainda entendem
Perdoá-los
Sempre
perdoá-los
Os
que fingem
não
sabem que é curta
a
passagem e o tempo
e
até mesmo o susto.
Os
que fingem diante de si
fingem
e riem de todos
Não
imaginam a violência
da
tempestade
Ignoram
a nossa frágil
ignorância
XII
Os
olhos de pai estão vazios
-
No vazio, Dã
Eles
não buscam nada
Nada
mais querem explicar
Seus
olhos
agora
são ouvidos e boca
são
olhos-ouvidos
Olhos,
como mãos,
afagam
e perscrutam
a
nossa dor
a
nossa passagem
Eu
sei o que eles olham
Olham
em mim
uma
essência que não encontro
Hoje,
eu sei quem sou
Sei?
Não
sei.
XIII
Meu
pai morre
Morre
em meus braços
Cheio
de apetite de vida,
vivaz
Feliz,
ele olha
-
Eu estou aqui,
em
meus braços, ele sonha
Olha
além de mim
Entendo
que meus filhos,
todos
distantes, talvez jamais
terão
em mim ele
ou
serão ele
Eu
sei, eu jamais serei ele.
XIV
“...desacredito
no azar da minha sina... (1)
Meu
pai morre
e
ri
Está
feliz
Viveu,
amou
e
pôde viver o amor
passando
a limpo
e
pode, viver só
depois
do amor amado
Amou
e depois ainda
um
tempo viveu só
retomando,
dia seguido de dia,
o
amor amado
agora
somado
amor
também imaginado
cheio
de perdões
sem
senões, sem dores
sem
peias
Ele
foi feliz, depois do amor
Meu
pai morre,
morre
feliz, amando
amado
na vida vivida
XV
Ab
intestato (2)
Na
sala, pai olha
A
fala não sai
Sua
voz, frágil
é
frágil
Ele
sabe inútil
qualquer
palavra a mais
Nenhuma
palavra
além
de viver mais um dia
Mais
um dia, um século num tempo
Dia
tempo sem medida
Só
mais um dia
Um
tempo a mais
Agora,
tempo silêncio,
sem
palavras
Só
seu olhar fixo
triste
e alegre
feliz,
silencioso
triste,
eu
alegre,
ele
feliz,
ele
silencioso,
eu
Eu
e ele
no
fim do viver
Ab
intestato.
XVI
Em
seu silêncio, ele observa
movimento,
vozes, presenças
O
movimento das aves-bombas
aves-homens
saindo
de espaços que se revelam
inesperados
como um corredor,
uma
sala, um quarto, uma cama
Vozes
que falam para não serem ouvidas
em
código, em profusão
ignorando
que tudo, tudo, ele ouve
traduz
e acompanha
rastreia
a vida
Amargas
umas, doces outras
Vozes
dilaceradas de pessoas-aves
Movimentam
sombras sem luzes
sombras
sem corpos
sombras
inúteis, sombrias
Pessoas
vivas, amargas, aves-gente
Chegam
para limpar
Não
deixam rastros
Levam
tudo
todo
o possível.
XVII
- Faça
nascer o seu próprio pai
Desafio
e necessidade
Arranque-o
de onde está
Aqui
está, eis!
Nasceu
das minhas memórias
Saltou
das minhas memórias-felizes.
- Como
nasce um pai?
Assim
nascem todos os pais?
25.04.2013
05.04.2022
(1) “...desacredito no azar da minha sina...
Bom cabrito é o que mais berra onde canta o sabiá
Desacredito no azar da minha sina
Tico-tico de rapina, ninguém leva o meu fubá

2. Que é legado em testamento (bens ab intestato)
3. Diz-se de herdeiro que recebe herança sem testamento
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