quinta-feira, 25 de abril de 2013

A INVENÇÃO PATERNA


Todos os Rostos






 

I

 

Meu pai morre

são poucos os seus dias

seu rosto é o rosto de vó

 

Na morte

 

é o rosto de vô João, seu pai

 

É de Cici

seu rosto magro

 

Seus olhos vêem

o vazio

 

Sem deus, sem desejos,

 

Sem sonhos,

 

é um deus silencioso

 

 

Ele está feliz

 

Resiste

 

Quer viver

 

- Tem chance?

 

- Nenhuma

 

Meu pai morre,

 

em volta, voam

 

Voam todas as aves

 

Voam todas as flores

 

 

No ar, na vida

 

 

Ele olha, sua vida

são os seus olhos,

é o olhar, ver,

ir pelos olhos

 

 

Olhos no vazio

 

Olhar firme

de quem resiste

 

Quer vive.

 

Orgulhoso, eu amo meu pai

sua luta, sua vida pela vida

 

Vida frágil

 

- Frágil agora?

 

- Dolorosa?

 

Dolorosa, agora

 

Outras foram as dores da vida

 

Agora é a dor pura dor

 

do agora

 

 

 

A vida é vida feliz,

 

vista, revista,

 

Vida feliz, feliz,

 

sempre boa

 

sempre bela

 

Muito gostosa

 

- Não mais

 

 

 

 

II

 

Os homens sabem

seu tempo

 

Homens

sabem o gosto do sal

 

Sabem a dor de perder

 

 

 

Geniais, conhecem a alegria,

o sorriso e a aventura feliz

 

Os homens são bons

e felizes

 

É da natureza do homem

ser feliz

 

- Queres conhecer um homem?

 

Encontre o seu sorriso

 

 

Hoje, aprendo com o meu pai

o valor do pão salgado,

pão quente e com o sabor da manteiga

que amarelece

 

 

 

Hoje, aprendo com o meu pai

o quanto é bom ter companhia

 

 

Como foi difícil, como demorou

aprender, saber, ser bom

 

Aprender na jardinagem, a aprendizagem

da bondade

 

Nunca deixar seca a terra do sentir.

 

Todo amor precisa de água

 

 

 

III

 

Meu pai morre

abençoado pela vida

 

Meu pai morre

arrebentado,

corpo cortado,

 

As fezes saem no umbigo

e ele é um homem feliz

Voz fraca, sem voz

 

 

O que eu não entendo?

 

O que eu devo saber?

 

 

Meu pai morre

e sorri feliz

 

 

Fala da sua alegria

de ter um cachorrinho

Briguelo

que, tenso e sensível, chora e sofre,

tenso e sensível,

 

ele sabe do desfecho, do dia que chega

 

 

Como todos nós, animais,

sofre e chora

 

 

 

 

Como os bois e as vacas lá no pasto,

da fazenda de Pavão,

choravam.

Choram

na tristeza do entardecer

 

A montoeira de gado caminha

para lá e para cá

 

levanta a poeira fina e leve,

baixa e fraca, poeira que não é

poeira de nenhuma corrida

 

Poeira arrancada de um triste pensar,

do andar ritual do ser gado

 

Poeira também triste

 

Todos, tudo chora um choro

que não se entende

não se sabe

 

Ninguém sabe chorar um morto

(no fim daquele boi companheiro)

como os animais no pasto

 

 

 

IV

 

Meu pai vive

traz de volta Poté,

das estradas do Norte

 

Vive e faz viver

tempos, pessoas e todos riscos

vividos

 

Vive e dilacera vidas

em seu frágil gesticular

quase sem voz, só olhos.

 

 

V

 

Por que meu pai não pode saber

da guerra que mata

da violência do mundo hoje

das agonias de sempre?

 

Ele morre.

 

 

VI

 

Todos mentem para um homem que morre

Todos enganam a morte do outro

Ninguém diz a verdade a quem morre

morrendo na morte de todos os dias

 

Ninguém arrisca diálogos verazes

Por que?

 

Por que o homem que morre é poupado?

Por que a morte poupa os vivos?

 

 

 

 

VII

 

Pai olha, olhar perdido

 

Olha

 

O que ele vê, eu não vejo

 

O que ele percebe?

 

A sensação é de que está

 

atrás de mim

 

ou além do que sou

 

Estarei desnudo

Estarei futuro

 

Apanhado no meu escuro,

visto, flagrado inteiro, perfeito

 

Ele sabe quem eu sou

(Eu não sei)

 

 

 

VIII

 

Não desperdice nada do seu pai

 

Ouça-o

 

Fale pouco

 

Observe, veja

 

- Veja

 

Olhe bem seus olhos frágeis,

suas mãos trêmulas,

seus braços magros e enrugados

 

Guarde cada gesto, cada respirar

 

E no respirar dele, respire no seu ritmo

como fazia para minha Quequel dormir

 

Não perca nada

Ele vai embora

 

Já a partir de agora,

só estará em seu coração,

em suas veias,

em sua mente,

nos ossos, na ponta do seu nariz

em suas mãos e em seu cheiro

em sua maneira de dizer

e em seu sorriso

 

Seu pai foi um homem feliz

e bom

 

Foi um homem bom, foi um homem feliz

 

 

IX

 

Há no coração

muito ódio

Descubra que o ódio

está só no coração

 

Fácil dissolvê-lo,

jogar todo o ódio

na merda

saindo pelo umbigo.

 

Há em meu coração

muito ódio  

 

Burro, o ódio

que entrou

e que domina

 

Eu não posso viver

 

Se  viver for odiar

nem quero viver

se viver for matar

(e matar-me)

 

 

X

 

Meu pai morre

 

E morre em mim

a possibilidade de vida

 

Morre em mim

não a capacidade de sonhar

morre o sonho

do que quis ser para ele

 

Ele jamais saberá

do meu inútil esforço

(Melhor)

XI

 

Os que fingem

diante da dor verdadeira

(deles mesmos)

estão assustados

nada ainda entendem

 

 

Perdoá-los

 

Sempre perdoá-los

 

 

 

Os que fingem

não sabem que é curta

a passagem e o tempo

e até mesmo o susto.

 

 

Os que fingem diante de si

fingem e riem de todos

 

Não imaginam a violência

da tempestade

 

Ignoram a nossa frágil

ignorância

 

 

 

XII

 

Os olhos de pai estão vazios

 

- No vazio, Dã

 

Eles não buscam nada

 

Nada mais querem explicar

 

Seus olhos

agora são ouvidos e boca

são olhos-ouvidos

 

Olhos, como mãos,

afagam e perscrutam

a nossa dor

a nossa passagem

 

Eu sei o que eles olham

 

Olham em mim

uma essência que não encontro

 

Hoje, eu sei quem sou

 

Sei?

 

Não sei.

 

 

 

XIII

 

 

Meu pai morre

 

Morre em meus braços

 

Cheio de apetite de vida,

 

vivaz

 

Feliz, ele olha

 

- Eu estou aqui,

em meus braços, ele sonha

 

Olha além de mim

 

Entendo que meus filhos,

todos distantes, talvez jamais

terão em mim ele

ou serão ele

 

Eu sei, eu jamais serei ele.

 

 

XIV

 

“...desacredito no azar da minha sina...  (1)

 

Meu pai morre

e ri

 

Está feliz

 

Viveu, amou

e pôde viver o amor

passando a limpo

e pode, viver só

depois do amor amado

 

 

Amou e depois ainda

um tempo viveu só

retomando, dia seguido de dia,

o amor amado

agora somado

amor também imaginado

cheio de perdões

sem senões, sem dores

sem peias

 

 

Ele foi feliz, depois do amor

 

Meu pai morre,

morre feliz, amando

amado na vida vivida

 

 

 

XV

 

Ab intestato  (2)

 

Na sala, pai olha

A fala não sai

 

Sua voz, frágil

é frágil

 

Ele sabe inútil

qualquer palavra a mais

 

Nenhuma palavra

além de viver mais um dia

 

Mais um dia, um século num tempo

 

Dia tempo sem medida

 

Só mais um dia

 

Um tempo a mais

 

Agora, tempo silêncio,

sem palavras

 

Só seu olhar fixo

triste e alegre

feliz, silencioso

triste, eu

alegre, ele

feliz, ele

silencioso, eu

 

Eu e ele

no fim do viver

Ab intestato.

 

 

 

XVI

 

Em seu silêncio, ele observa

movimento, vozes, presenças

 

O movimento das aves-bombas

aves-homens

saindo de espaços que se revelam

inesperados como um corredor,

uma sala, um quarto, uma cama

 

 

Vozes que falam para não serem ouvidas

em código, em profusão

ignorando que tudo, tudo, ele ouve

traduz e acompanha

rastreia a vida

 

 

Amargas umas, doces outras

Vozes dilaceradas de pessoas-aves

Movimentam sombras sem luzes

sombras sem corpos

sombras inúteis, sombrias

 

 

Pessoas vivas, amargas, aves-gente

Chegam para limpar

Não deixam rastros

Levam tudo

todo o possível.

 

 

 

 

XVII

 

 

- Faça nascer o seu próprio pai

 

Desafio e necessidade

 

Arranque-o de onde está

 

Aqui está, eis!

 

Nasceu das minhas memórias

 

Saltou das minhas memórias-felizes.

 

 

 

 

- Como nasce um pai?

 

Assim nascem todos os pais?

 

 

 

25.04.2013                                                   05.04.2022

 

 

 

 

 




.............

(1) “...desacredito no azar da minha sina... 

Lero Lero  Edu Lobo e  Pierre Onassis

Diz um ditado natural da minha terra
Bom cabrito é o que mais berra onde canta o sabiá
Desacredito no azar da minha sina
Tico-tico de rapina, ninguém leva o meu fubá
https://www.youtube.com/watch?v=4nJCpAbGLgM


Herança sem testamento
(Lat./ab intestáto) Jur.
loc.a.
1. Que morre sem deixar testamento.
2. Que é legado em testamento (bens ab intestato)
3. Diz-se de herdeiro que recebe herança sem testamento


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