O
perigo da fala
Para
José Altino Machado
Dentro
da selva, no mais emaranhado da selva, no mais profundo da selva, éramos trinta
garimpeiros e duas cozinheiras.
As
mulheres cozinheiras de garimpo eram mulheres básicas para a sobrevivência do
grupo. Entre as suas funções deviam cozinhar, lavar, arrumar e transar com quem
quisesse e equilibrar as relações entre todos, isto é, não haveria exclusividade
e nem haveria privilégios. Nada de namoro. Nada de paixão.
No
meio do mais dentro da selva e daquele gigantesco silêncio aqueles homens
tinham pouco contato com a civilização, um aparelho de rádio comunicação e a
comida lançada de helicóptero duas vezes por mês. Mais nada.
Para
dentro da mata, dentro ainda do mais absoluto silêncio a cerca de três semanas
subindo o caudaloso rio Juruba vivia um homem de não mais de 50 anos. Seco e
forte. Aparentava, no rosto, ter mais de 80 anos. Vivia sozinho há mais de
vinte anos, desde a morte do seu último companheiro, um irmão mais velho tragado
pelas águas em dia de violência quando tudo era arrastado pela enchente, que
naquele dia surgiu de uma só vez em um só dia.
Este
homem era um homem calado, de muitas poucas palavras, com certeza esquecera a
maior parte das palavras que aprendera ao longo daqueles 50 anos. Era um amigo
dos garimpeiros. Ao longo de seis anos aparecera uma quatro ou seis vezes.
Chegava silencioso. Seus passos eram vinham do movimento das águas do rio
Juruba.
Deixava
a canoa distante e se aproximava cauteloso. Ficava por perto. Aparecia e depois
de dois, três dias, não mais, desaparecia mais silencioso do que o silencia da
floresta e mais discreto do que os vôos dos insetos. Assim como chegava sumia,
sem que muitas vezes ninguém percebesse. Falava pouco, muito pouco e
cumprimentava a todos com um olhar. Picapau, o garimpeiro de Minas, que mais
ficava com ele, dizia que ele tinha um olhar para o bom dia e um outro olhar
para o boa noite.
Isto
também no julgamento dos garimpeiros que concordavam com as observações de
Picapau e que, com o tempo, acostumaram-se com aquele silêncio do Homem da
Canoa dentro do silêncio da floresta. Aprenderam que com o tempo e com as
lições do silêncio, todos ele passaram a cortar palavras inúteis, passaram a falar
pouco, gestos substituem palavras, olhares substituiram palavras e o ritmo da
vida do garimpo impôs no vocabulário o silêncio. Agora eram homens e gestos.
Aquele
homem do meio do mais profundo da mata, daquele silêncio enorme, subia o rio
conduzindo sua canoa pela proa, sem que o seu remar alterasse o romper das
águas na folhas, seu remo era apenas como mais uma folha abraçada pelas águas.
Os
garimpeiros imaginavam a vida daquele homem e sua solidão, assim quando o
garimpo começou a ser reduzido, não mais que dez homens e as duas mulheres,
eles decidiram arranjar uma das mulheres para o homem do silêncio. A mulher
queria ficar naquele silêncio e ela era a única pessoa que mais tempo ficava
com o homem, mais até mesmo do que o garimpeiro Picapau, lá de Minas.
Muitas
vezes, os dois, o Homem da Canoa e a mulher, ficavam parados, de frente um para
o outro, olhando apenas nos olhos ou através dos olhos. Assim, combinaram, da
próxima vez que ele viesse, ela iria com ele. Tudo seria dito e combinado. Tudo
foi dito. Tudo foi combinado. O garimpo poderia, mais tarde, ser reativado e
ela voltaria a cozinhar, lavar, arrumar e transar.
Trinta
e dois dias depois, a canoa parou, o homem silencioso levou a mulher.
Seis
meses depois, ele voltou sozinho e contou o que aconteceu:
Na
subida do rio, já navegavam há sete dias, ele na proa, ela na popa. Em todos
estes sete dias, como sempre, raramente, ele olhava para trás. Com o tempo e
com as horas, com o silencio e com o navegar, ele esqueceu de que havia uma
mulher na sua canoa.
Ela
falou.
Ele
assustou.
Rápido, virou e acertou-lhe um tiro em cheio no peito.
- Cadê ela?
Picapau perguntou e não esperava resposta.
- Virou espuma.
- Cadê ela?
Picapau perguntou e não esperava resposta.
- Virou espuma.
(História
contada pelo garimpeiro José Altino Machado)