O
TOCA
Rita
de Cássia Prates Guimarães
“errava com medo de errar.”
Há um
homem no morro que se chama Toca. É um marginal que desenha o rosto de suas
vítimas na parede da sala, são dezenas de homens e mulheres assassinados.
Parece um imbecil risonho, que mata sempre com um sorriso abestalhado nos
lábios. Baixo, magricelo, ossos das faces salientes, testa larga e cabelos
ralos. Apesar dos vinte e um anos de idade, assemelha-se a um velho coveiro de
filme de terror. Tem-se a impressão que
deve ter vindo das entranhas da terra e, por isso, leva as suas vítimas
para o seu habitat.
Esse ser
estranho, raquítico, meio envergado, olhos vidrados de tanto cheirar cola, não
se abala com mais nada no mundo. Ele veio da toca, da toca da FEBEM onde ele se
instalava. Lá ele ficava horas a fio, e foi batizado com o nome fiel a sua imagem
sombria.
Nasceu
na vila, parte baixa do morro. Vivia aprontando com a mãe, provocava brigas entre os moleques, faltava às aulas e
constantemente os moradores se queixavam
de suas arruaças. A mãe para ter tranqüilidade e poder cuidar dos outros filhos
mandou-o morar com a tia na parte alta do morro. Vivia à vontade para soltar
papagaios e correr pela BR.
No morro
era mais divertido, estava sempre na farra com os outros meninos, nada de
escola, nada de obedecer a chata da tia, pois com o tempo os beliscões
dela já não doíam. Grana era fácil de
arranjar, os garotos do morro faziam serviçinhos de entrega de droga e de
pequenos roubos. Recebiam uns trocados para comprarem roupas e tênis da moda e
acabavam experimentando e gostando do que vendiam: maconha e crack.
Os
marginais não iam muito com a cara dele, menino feio e raquítico, sua feiúra
incomodava. Andava no cortado, se saísse da linha, batiam nele, espancavam-no.
Era o azarão, faziam dele sempre boi de piranha, colocavam-no na roda e lá
vinha pancada. O rosto estava sempre inchado, roxo e o corpo moído de tanto
levar chutes e murros. Para o seu desespero errava com medo de errar. Cansado das agressões sem sentido, quis
se mandar para casa da mãe, mas não o deixaram escapulir, tinha que fazer
entregas e se não obedecesse às ordens da chefia, levava balas nas pernas.
Sentia-se
muito humilhado, odiava olhar-se no espelho. Era um nada. Para aliviar toda a
sua vergonha, cheirava cola em desatino, manhã, tarde e noite. Queria apanhar
sem sentir dor, queria sufocar-se em drogas. Primeiro cola, depois maconha e
agora se encasulava no crack.
Mandaram-no
fazer uma entrega. Um jovem bem vestido esperava a encomenda perto da
passarela, junto a uma camionete prata. O rapaz estava ansioso para pegar o pacote,
mas quando ia efetuar o pagamento foram surpreendidos pelos tiras.
- Sujou!
Sujou! Era pronta de fora, armaram o circo pra pegar a gente.
Houve
trocas de tiros entre o bando e a polícia. Desarmado e assustado, Toca tratou
logo de se esconder em um buraco rente ao bar. Pulou meio tonto e quase atirou
em si mesmo, pois no buraco havia armas cobertas por folhas secas.
Encolheu-se
como um feto naquele buraco acolhedor. Como ninguém podia vê-lo, começou a chupar o dedo como se
fosse um bebê no ventre da mãe.
Mãe! Há
quanto tempo não a via, ela o evitava, e por mais que se esforçasse não se
lembrava da última vez que a beijou ou que foi acariciado. Da sua mão só se
lembra dela no ar a lhe bater com violência. Dos seus lábios nenhum sorriso,
nenhuma palavra de amor, nenhum beijo, só palavras rudes, gritos e pragas
rogadas. Chamava-o de Coisa Ruim,
Bestalhão e que não fazia nada direito. Tratava-o como um verme, um escroto
e sempre lhe dizia que não teria futuro descente e que seria sempre um nada.
Mas ali,
naquele buraco, sentiu uma forte emoção, era como se fosse um colo a lhe
proteger, a lhe acalentar. Chorou baixinho com o dedo na boca e o coração a
palpitar, chorou sentido, suave, como jamais havia chorado na vida. Poderiam
atirar nele, morreria sereno, em paz consigo mesmo.
Acordou
do transe com a pancada de uma metralhadora na sua cabeça, olhou pro alto e viu
uma roda de policiais a cutucá-lo com as armas e a ordená-lo que saísse do seu
ninho. Foi pisoteado, levou tapas no rosto e murros até dentro do camburão.
Descobriram
as armas e prenderam alguns curiosos que logo foram soltos. O garoto, que mal
sabia atirar, foi acusado pelos próprios companheiros de ter matado dois
malandros de outra gangue . Queriam livrar suas caras, estavam com muita raiva
dele ter se escondido justamente sobre suas armas caras, raras e compradas com
muita droga. Pelo prejuízo que tiveram, o peste deveria pagar com cana pra
deixar de ser débil.
Mandaram-no
para a FEBEM, para o inferno. Se antes tinha que apanhar para passar a droga,
agora a escola era outra. Aprendeu como abrir uma bolsa e roubar sem ser
percebido, como assustar as suas vítimas e deixá-las indefesas, ameaçando-as
com cacos de vidros e giletes, como invadir uma casa e saber escolher o que
levar. Aprendeu a se calar pro grupo mais forte e usar todas drogas.
Nesta
escola de marginais aprendeu de tudo, mas a lição que mais o marcou para o
resto de sua vida foi quando lhe enfartaram de drogas e ele, inocente, embarcou
na onda. Lembra-se nitidamente de que havia um grupo de rapazes em círculo ao
seu redor, que dois deles arrancaram os botões de sua calça e a abaixaram
enquanto os outros riam sem parar. Lembra-se de que foi jogado sobre uma mesa e
que o estupraram. Quando quis gritar, picaram o seu braço e o fizeram cheirar
mais pó. Lembra que, de tempo em tempo, um corpo estranho o penetrava, porém já
se sentia anestesiado e uma sensação estranha e distante tomou conta de todo o
seu ser. Lembra-se de risos histéricos, de mãos brutas que lhe batiam nas
nádegas e de um beijo. Sim, alguém beijou a sua boca com ternura.
Ficou na
enfermaria mais de uma semana, ferido por dentro e por fora, destruído
moralmente, Ouviu de tudo, inclusive que era a mais nova dama do pedaço.
Quando
voltou para o pavilhão sentiu-se envergonhado, deprimido, revoltado, Como não
podia reagir, ficava dia e noite entocado no porão. Pensaram que ele havia
pirado.
Toca pra
cá, Toca pra lá, assim ficou conhecido o magricela com olhar de débil que vivia
na Toca da FEBEM.
Um
marginal altamente perigoso beirando os dezesseis anos, que carregava nas costas mais crimes do que a
sua pouca idade se encantou com Toca. Fornecia-lhe droga, mas em troca lhe exigia obrigações
sexuais. Era preferível, já que assim não corria risco de ser violentado
novamente.
Seu
tempo de Toca fora útil, lá arquitetou a sua saída e a sua vingança.
Na
maioridade fora libertado. Bom rapaz, sossegado, amigado, viado, tinha um jeito
de bobo e já não era perigoso para a
sociedade.
Lábios
de Mel lhe dera uma arma para se defender e também lhe ensinara como manejá-la.
Na despedida, um beijo com o mesmo sabor da trágica noite...
Voltou
para a casa da tia no morro, lá se encontrou com outro companheiro de internato
e saíram à caça. Em uma semana matou os três bandidos que o jogara na FEBEM e
no final do mês não havia mais nenhum para pedir compaixão. Caçara-os como se
fossem animais, um a um. Vingara do que fizeram com ele, de sua humilhação, do
seu sofrimento e da sua revolta.
Quando
matou o primeiro estava trêmulo de emoção e satisfação. Não podia mais
desistir, tinha que se impor perante os demais senão seria morto por eles.
Arquitetava cada nova emboscada com precisão e quando tombava um morto, surgia
mais um membro para o bando, fortalecendo-o perante os outros marginais.
Matar
passou a ser o seu maior prazer, assustar os habitantes quando passava pelos
becos, eleva-lhe o ego. Quando surge nos becos com o seu bando, parece que está
vivendo um filme de cow-boy em que as
pessoas entram para as suas casas e se escondem.
Apesar
de não ser chegado a mulheres, escolheu uma menina de quinze anos para ser sua
companheira. Gosta mais de bater na garota, de espancá-la perante seus
companheiros e de humilhá-la. Impõe respeito. Afinal, ele é o chefe, o machão,
o raquítico poderoso.
A menina
já era da pá virada quando passou a ser a sua companheira. Fora namorada de
muitos malandros e se gabava de ter quem ela quisesse. Já havia desfeito dois
casamentos. Toca pegou-a pelos cabelos, dominou-a e transformou-a em sua
mulher. Se ela falasse que não gostava do que faziam, levava porradas. Tinha
que lhe obedecer e fazer tudo que ele pedisse. Caso abrisse o bico, levava
chumbo. Para ela, sexo gostoso nunca mais, para ele sexo gostoso era quando
descia o morro e se encontrava com Lábios de Mel.
Toca
está aí matando quem atravessa o seu caminho e ultimamente nem desce o morro
porque fora jurado de morte. Passara dos limites quando matava inocentes e
bandidos, todos foram colocados no mesmo balaio, sem distinção, extrapolando a
razão da vida.
A sua
última vítima fora um trabalhador que só queria festejar a vitória do seu time.
O torcedor fanático pegou uma arma do seu amigo e começou a atirar pro alto.
Toca ficou furioso pelo resultado e pela barulheira. Falou para o jovem que
também queria festejar, pediu o revólver emprestado, segurou a arma e apontou
para a cabeça do alegre torcedor e disparou à queima roupa. Virou-se para os familiares em pânico com um sorriso débil e disse-lhes
que havia mandado o rapaz festejar no inferno.
Foi para
casa soltar fogos, sinal de que matara mais um. Na sala, desenhou mais um bonequinho na sua parede para não
perder a conta de quantos já havia mandado para o outro mundo.
Perseguido,
sabe que em breve morrerá, mas como nada tem significado para ele, continuará a
matar bandidos e inocentes, pois somente uma coisa o interessa, ser lembrado
como o sanguinário, o terror do morro.
Acho que
agora será mesmo lembrado como o bandido mais temido. Cida encontrou com a
companheira de Toca, grávida, com um enorme barrigão. Ela disse-lhe que ele
ultimamente andava quieto, que só matava quem merecia, não por bondade e sim
porque não queria ser morto antes do filho nascer. Não sabia se era por
curiosidade ou por ternura de pai.
No
morro, ultimamente, andavam ocorrendo várias brigas entre gangues, invasões a
bares e a pequenos armazéns e roubos na BR. A polícia estava aborrecida de ter
que constantemente subir o morro, com todo o aparato policial, e não encontrar
ninguém para pagar o pato.
Toca andou ditando normas de roubo e a punir
quem não as cumprisse. Irritava-se vendo a polícia invadindo o morro e
espancando os seus amigos. Uma onda de violência entre bandidos e moradores
fizera com que houvesse reação da população. Um informante deixou Toca em
apuros. Ele se viu cercado pelos policiais sem chance de se esconder. Não teve
outra, o grupo levou uns pescoções e Toca revidou uma ofensa e levou dois tiros
a queima roupa em ambas as pernas. Calibre 38, pernas estilhaçadas.
Está no
Pronto Socorro, dizem que ficará sem andar, que tiveram que cortar as pernas,
porque não tinham como reconstituí-las. Boatos cheios de desejos de vingança,
porém o mal venceu, ele ficará somente manco. Decepção de muitos que o queriam
em cima de uma cadeira de rodas para o resto de sua vida.
Falam no
morro que quando querem acabar com um marginal perigoso, ou o matam ou atiram
em suas pernas. È grande o número de aleijados que andam de muletas pelo morro.
Dizem que é tiro entre bandidos ou vindo da lei.
Toca
ainda não saiu do hospital.
- Azar
do morro se ele voltar e assustar todos novamente. Dizem angustiados os
moradores.
Azar de
quantos morreram nas suas mãos, azar, azar dele
ter sobrevivido.
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