quinta-feira, 27 de junho de 2013

CAPTURADO DO VIADUTO





Onde eu vivo

Uma canção antiga


Abelardo Juca de Mato





I


Não sei onde eu vivo

Não sei se é realidade

A realidade e este país

Onde eu apareci

Ao despencar

de paraquedas



II


Puta bagunça!

Vivo num lugar  

Aqui, vive-se de empréstimos

Dívidas seculares

Dívidas que nunca acabam

Liberdade é vencer

A puta dívida

igual à cabresto

igual à viseira

igual à bitola

Dívida que nos tira

Tudo o que fazemos

Arranca o chão dos nosso pés


Onde eu vivo?

não sei

Sei que é incompleta a resposta

Isso posso saber


Aí, a insensatez

a angústia de que quem produz

a dor, as desproporções desumanas

Uma putaria grossa

lugar complicado de consumo de gentes


Caem fronteiras!

Muito de constrói

Gentes nas pontes

Que troço bom

a certeza de que no íntimo

o homem sabe escolher

a gente não pode esquecer

as nossa responsabilidades





III


Nos jardins públicos, as crianças brincam

Que todas as crianças brinquem 

nos jardins públicos

Vocês se conhecem.

Sabem o que eu querem?

Todos queremos, que se dê às crianças

o direito de brincarem nos jardins públicos




IV

Passam os anos e os dias e as noites

e as manhãs e os crepúsculos

Em cada dia uma nova e bela manhã

(Quanta bobagem)

Não há escuridão suficiente 

que modifique um homem






V


Nossas identidades

Quem somos?

O que queremos?

Não sei, é difícil dizer

(de dentro de todos estes cárceres)

Talvez sejamos um povo

que quer a liberdade

imediatamente



VI


imediatamente

para sempre

abandonar o sonho e a cama

tudo desarrumados

esquecer de manhã cedo o ser,

vestir a calça e o nome

sair na calçada, para a rua

atravessar pessoas, iguais a si,

vazias, cidades vazias lotadas de gentes

e sujas

parar onde se começa a gastar-se,

não fazer longas frases

Cartas sintéticas,

Sorrir para o logo depois de você

Rir contar a última piada



Acabar aí o dia,

voltar nos rastros visíveis

para o mesmo lugar, o mesmo tempo

feito para gastar o que já não se tem

assim para sempre até quando estiver o camisa puída.












1971, no cárcere, pela liberdade