segunda-feira, 28 de outubro de 2013

DARCY







A METAMORFOSE        

Arkmeh Jacó





Era homem e hoje é tigre

Era uma bela raposa e hoje é dona Dora

Falavam com palavras

Agora, grunhem

O latido guiava os bois

E o grito é de socorro




O homem vira bicho

O bicho vira homem

O homem ganha pelos e garras

come sua caça e anda sorrateiro

em galhos finos, frágeis


Não há equilíbrio precário


O gato ganha botas e voa em jatos

veste-se de roupas de frio

vive sem pelos e pisa no chão da nave

peso que não vale nada



“a monjinha se vê no que é:

da cintura pra cima

 é uma pantera de duas patas,

pelame prateado,

olhos verdes cintilantes,

negros lunares,

e aquela elástica, sedutora presença,

que paralisa, encantado,

todo bicho, toda gente.

Encanta e mata.

Da cintura para baixo é cobra boiúna,

escamada, serpenteante.

...Aí vieram as metamorfoses 

de Tivi e Calibã,

um olhando pro outro

e se vendo mutuamente.

Ele e ela,

sucessivamente sendo

e deixando de ser

todos os entes que contêm”.





Darcy agora é da terra

onde transforma-se em terra

em coisa de cheiro e seres

que correm muitos

Darcys, mil Darcys

anárquicos, verdadeiros

poetas, belos,

raça forte, todos têm a sua cara

seu olhar amigo e debochado,

solidário e feroz,

depois será onça também

jacaré também



Calibã, Darcy-Calibã

apaixonado pela Tivi

transformador da Tivi

vivendo em ser Tivi também



Ali, Darcy te vi forte, melhor

mais palavroso, mais criador

carinhoso com seus mil Darcys


Prudente com seu sonhar desenfreado.

Prudente, prudente, 

o homem que aventura ser

na aventura de ver





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O meu Darcy
Darcy disse certa vez: Na América Latina só temos duas saídas: ser resignados, ou ser indignados; eu não vou me resignar nunca. Não fez outra coisa na vida

Eric Nepomuceno




Descalço.
Darcy Ribeiro, até nisso, foi embora como viveu. Chegava em casa e tirava os sapatos. Dizia que era por causa de seu sangue índio. Eu sempre achei que não: que era para sentir o chão nos pés.

Muito diferente que sentir os pés no chão: sentir o chão nos pés, porque era aquele chão, o da realidade, que ele quis mudar, transformar, como quis transformar o Brasil e a América Latina. O mundo.

No dia em que foi eleito Senador da República, vestiu um terno branco, de linho formidável, e ficou andando pela sala do apartamento de Copacabana, sorrindo agitado e vendo o mar, andando e andando - descalço.

Na noite do dia 31 de dezembro de 1995, Darcy estava na varanda desse mesmo apartamento, olhando a multidão espalhada pela praia e pelo asfalto e pelas calçadas da avenida Atlântica.

Das alturas daquele quinto andar ele contemplava tudo, os olhos de aviador percorrendo as pessoas, as ondas, as embarcações iluminadas.

Quando faltava pouco para a virada do ano duas amigas chegaram na varanda, aproximaram-se da cadeira em que ele estava sentado e colocaram no chão um grande balde prateado, desses que são usados para manter garrafas de vinho geladas.

No balde havia água do mar Atlântico e alguns punhados de areia. Quando ouviu o foguetório da meia-noite ele mergulhou os pés no balde.

Darcy queria virar o ano com os pés no mar. Ele não podia mais ir ao mar. Deu um jeito fazer o mar ir até ele. Até seus pés descalços.

Também assim quero me lembrar de Darcy Ribeiro para sempre. Também assim: Darcy acreditando profundamente na capacidade transformadora do bicho humano, rejeitando limites, desafiando barreiras, convocando desafios. Não era homem de sonhar com pouco. Sonhava grande, e se lançava aos sonhos para transformá-los em realidade e assim, mudar essa realidade que estava ali, cercando, imposta.

E lembrar também o que ele disse certo dia de santa ira e lúcida rebelião: “Na América Latina só temos duas saídas: ser resignados, ou ser indignados; e eu não vou me resignar nunca”.

Não fez outra coisa na vida além de traduzir essa frase-guia em cada ato, cada ousadia, cada sonho.

Convivi com ele durante vinte e dois anos. Um convívio denso, rico, intenso. Aquele furacão de vida, sonhos e ideias, varreu da minha frente, durante esse tempo todo, os fantasmas das derrotas e das desesperanças.

Fazia parte de meu cotidiano a inquietante sensação de conviver, lado a lado, com alguém que nasceu no mesmo ano de meu pai e conseguiu ser mais jovem que meu filho. Esse vazio, ninguém nem nada poderá preencher, jamais.

De todas as imagens deixadas por ele, de todas as memórias, acalanto uma, definitiva.

Certo fim de tarde de um sábado, ele saiu do escritório de Oscar Niemeyer, na avenida Atlântica. Vestia um terno branco formidável, de linho, e foi caminhando devagar pela calçada até o automóvel que o esperava.

Do mar, vinha uma brisa certeira. Visto lá do alto, o paletó branco esvoaçando, caminhando devagar, Darcy Ribeiro parecia um veleiro desafiando os ventos, rumo a um futuro que só ele poderia adivinhar.

Guardo essa imagem e guardo a certeza de que o porto, aquele porto, é preciso merecê-lo.

Darcy Ribeiro não perdeu, não foi derrotado. Mudou de rumo.

Onde quer que esteja, continua como sempre: indignado. E descalço.

http://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Educacao/O-meu-Darcy/13/29368