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O amor nunca chega à idade da razão, por isso os sábios no-lo pintam sempre menino |
Sciens e Nescis
Extraído do Sermão do Mandato - Capela Real em 1645
Padre Vieira
Unindo-se
porém, e trocando-se de tal sorte o sciens
com o nescis, e o nescis com o sciens, que, estando a ignorância da parte dos homens e a ciência
da parte de Cristo, Cristo amou sabendo como se amara ignorando, e os homens
foram amados ignorando como se foram amados sabendo.
Só Cristo amou, porque amou sabendo.
O que
vulgarmente se chama amor, nunca chega à idade da razão, e por isso os sábios
no-lo pintam sempre menino.
A
ignorância, no amor, diminui o merecimento.
No mundo, e entre
os homens, isto que vulgarmente se chama amor não é amor, é ignorância.
Pintaram os antigos
ao amor menino, e a razão, dizia eu o ano passado que era porque nenhum amor dura tanto que chegue a ser
velho.
Mas esta
interpretação tem contra si o exemplo de Jacó com Raquel, o de Jônatas com
Davi, e outros grandes, inda que poucos.
Pois se há também
amor que dure muitos anos, por que no-lo pintam os sábios sempre menino?
Desta vez cuido que
hei de acertar a causa.
Pinta-se o amor
sempre menino, porque, ainda que passe dos sete anos, como o de Jacó, nunca
chega à idade de uso de razão.
Usar de razão e amar são duas coisas que não se
ajuntam.
A alma de um menino
que vem a ser? Uma vontade com afetos, e um entendimento sem uso. Tal é o amor
vulgar.
Tudo conquista o
amor quando conquista uma alma; porém o primeiro rendido é o entendimento.
Ninguém teve a
vontade febricitante, que não tivesse o entendimento frenético.
O amor deixará de
variar, se for firme, mas não deixará de tresvariar, se é amor.
Nunca o fogo
abrasou a vontade que o fumo não cegasse o entendimento.
Nunca houve
enfermidade no coração que não houvesse fraqueza no juízo.
Por isso os mesmos
pintores do amor lhe vendaram os olhos.
E como o primeiro
efeito, ou a última disposição do amor, é cegar o entendimento, daqui vem que
isto, que vulgarmente se chama amor; tem mais partes de ignorância; e quantas
partes tem de ignorância, tantas lhe faltam de amor.
Quem ama porque conhece, é amante; quem ama porque
ignora, é néscio.
Assim como a
ignorância na ofensa diminui o delito, assim no amor diminui o merecimento.
Quem ignorando
ofendeu, em rigor não é delinqüente.
Quem ignorando
amou, em rigor não é amante.
É tal a
dependência que tem o amor destas duas suposições, que o que parece fineza,
fundado em ignorância, não é amor, e o que não parece amor, fundado em ciência,
é grande fineza.
Quatro
ignorâncias podem concorrer em um amante, que diminuam muito a perfeição e
merecimento de seu amor.
(1)
Ou porque não se conhecesse a si,
(2)
ou porque não conhecesse a quem amava,
(3)
ou porque não conhecesse o amor,
(4)
ou porque não conhecesse o fim onde há de parar
amando.
1.
Se não se conhecesse a si, talvez empregaria o seu
pensamento onde o não havia de pôr, se se conhecera.
2.
Se não conhecesse a quem amava, talvez quereria com
grandes finezas a quem havia de aborrecer, se o não ignorara.
3.
Se não conhecesse o amor, talvez se empenharia
cegamente no que não havia de empreender, se o soubera.
4.
Se não conhecesse o fim em que havia de parar
amando, talvez chegaria a padecer os danos a que não havia de chegar, se os
previra.
Todas estas ignorâncias,
que se acham nos homens, em Cristo foram ciências, e em todas e cada uma
crescem os quilates de seu extremado amor.
1.
Conhecia-se a si, conhecia a quem amava, conhecia o
amor, e conhecia o fim onde havia de parar amando.
2.
Conhecia-se a si, porque sabia que não era menos
que Deus, Filho do Eterno Padre: Sciens
quia a Deo exivit[1][Sabendo que
saíra de deus].
3.
Conhecia a quem amava, porque sabia quão ingratos
eram os homens, e quão cruéis haviam de ser para com ele: Sciebat enim para com ele: Sciebat
enim quisnam esset, qui traderet eum[2][ Sabia qual era o que o havia de entregar]
4.
Conhecia o amor, e bem à custa do seu coração, pela
larga experiênciado que tinha amado: Cum
dilexisset suos (Como tinha amado os seus)
5.
Conhecia finalmente o fim em que havia de parar
amando, que era a morte, e tal morte: Sciens
quia venit hora ejus [Sabendo que era chegada a sua hora].
E que,
conhecendo-se Cristo a si, conhecendo a quem amava, conhecendo o amor, e
conhecendo o fim cruel em que havia de parar amando, amasse contudo?
Grande excesso
de amor: In finem dilexit!
Primeiramente,
foi grande o amor de Cristo porque nos amou conhecendo-se: Sciens quia a Deo exivit (Jo. 13, 3).
Que
conhecendo-se Cristo a si nos amasse a nós, grande e desusado amor!
Enquanto Paris,
ignorante de si e da fortuna de seu nascimento, guardava as ovelhas do seu
rebanho nos campos do Monte Ida, dizem as histórias humanas que era objeto dos
seus cuidados Enone, uma formosura rústica daqueles vales.
Mas quando o
encoberto príncipe se conheceu e soube que era filho de Príamo, rei de Tróia,
como deixou o cajado e o surrão, trocou também de pensamento.
Amava
humildemente enquanto se teve por humilde; tanto
que conheceu quem era, logo desconheceu a quem amava. Como o amor se
fundava na ignorância de si, o mesmo conhecimento que desfez a ignorância
acabou também o amor.
Desamou
príncipe, o que tinha amado pastor, porque como é falta de conhecimento próprio
nos pequenos levantar o pensamento, assim é afronta da fortuna nos grandes
abater o cuidado.
Ah! Príncipe da
glória, que assim parece vos havia de suceder convosco, mas não foi assim!
Se
Cristo não se conhecera, não fora muito que nos amasse; mas amar-nos
conhecendo-se foi tal excesso, que parece que o mesmo amar-nos foi
desconhecer-se.
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Consta que os Guaranis o entendiam muito bem |
Voltar a
ouvir os Sermões
Cristo é
pretexto. As escrituras é um pretexto. O latim, pretexto. A religião também.
Limpe a área
e ouça os Sermões, comece pelo Sermão do Mandato proferido em 1645 na Capela
Real, em Lisboa
A 1645
chegamos hoje pelas mãos de Lars Von Trier e de Quentin Tarantino. Em
Melancolia, o planeta é o pretexto, assim como em Ninfomaníaca, o sexo o
é. Bastardos Inglórios traz Hitler como
pretexto, assim como os atos heroicos em que o assassinato (pretexto) torna-se
obra-prima.
Com
pretextos se pode pensar com segurança (liberdade?) e avançar o raciocínio (a
razão?).
Agora, sim,
dá para voltar para a Capela Real e ouvir, compreendendo melhor, Vieira em
1645- talvez aí esteja o momento em que ele escrevia A História do Futuro.
Onde ler o sermão completo
http://www.literaturabrasileira.ufsc.br/documentos/?action=download&id=28727