domingo, 19 de janeiro de 2014

GRANDE VIEIRA




O amor nunca chega à idade da razão, 

por isso os sábios no-lo pintam sempre menino



Sciens e Nescis



Extraído do Sermão do Mandato - Capela Real em 1645

Padre Vieira







Unindo-se porém, e trocando-se de tal sorte o sciens com o nescis, e o nescis com o sciens, que, estando a ignorância da parte dos homens e a ciência da parte de Cristo, Cristo amou sabendo como se amara ignorando, e os homens foram amados ignorando como se foram amados sabendo.

Só Cristo amou, porque amou sabendo.

O que vulgarmente se chama amor, nunca chega à idade da razão, e por isso os sábios no-lo pintam sempre menino.

A ignorância, no amor, diminui o merecimento.

No mundo, e entre os homens, isto que vulgarmente se chama amor não é amor, é ignorância.


Pintaram os antigos ao amor menino, e a razão, dizia eu o ano passado que era porque nenhum amor dura tanto que chegue a ser velho.

Mas esta interpretação tem contra si o exemplo de Jacó com Raquel, o de Jônatas com Davi, e outros grandes, inda que poucos.

Pois se há também amor que dure muitos anos, por que no-lo pintam os sábios sempre menino?

Desta vez cuido que hei de acertar a causa.

Pinta-se o amor sempre menino, porque, ainda que passe dos sete anos, como o de Jacó, nunca chega à idade de uso de razão.

Usar de razão e amar são duas coisas que não se ajuntam.

A alma de um menino que vem a ser? Uma vontade com afetos, e um entendimento sem uso. Tal é o amor vulgar.

Tudo conquista o amor quando conquista uma alma; porém o primeiro rendido é o entendimento.

Ninguém teve a vontade febricitante, que não tivesse o entendimento frenético.

O amor deixará de variar, se for firme, mas não deixará de tresvariar, se é amor.

Nunca o fogo abrasou a vontade que o fumo não cegasse o entendimento.

Nunca houve enfermidade no coração que não houvesse fraqueza no juízo.

Por isso os mesmos pintores do amor lhe vendaram os olhos.

E como o primeiro efeito, ou a última disposição do amor, é cegar o entendimento, daqui vem que isto, que vulgarmente se chama amor; tem mais partes de ignorância; e quantas partes tem de ignorância, tantas lhe faltam de amor.

Quem ama porque conhece, é amante; quem ama porque ignora, é néscio.

Assim como a ignorância na ofensa diminui o delito, assim no amor diminui o merecimento.

Quem ignorando ofendeu, em rigor não é delinqüente.

Quem ignorando amou, em rigor não é amante.


É tal a dependência que tem o amor destas duas suposições, que o que parece fineza, fundado em ignorância, não é amor, e o que não parece amor, fundado em ciência, é grande fineza.

Quatro ignorâncias podem concorrer em um amante, que diminuam muito a perfeição e merecimento de seu amor.

(1)        Ou porque não se conhecesse a si,

(2)        ou porque não conhecesse a quem amava,

(3)        ou porque não conhecesse o amor,

(4)        ou porque não conhecesse o fim onde há de parar amando.



1.   Se não se conhecesse a si, talvez empregaria o seu pensamento onde o não havia de pôr, se se conhecera.

2.   Se não conhecesse a quem amava, talvez quereria com grandes finezas a quem havia de aborrecer, se o não ignorara.

3.   Se não conhecesse o amor, talvez se empenharia cegamente no que não havia de empreender, se o soubera.

4.   Se não conhecesse o fim em que havia de parar amando, talvez chegaria a padecer os danos a que não havia de chegar, se os previra.




Todas estas ignorâncias, que se acham nos homens, em Cristo foram ciências, e em todas e cada uma crescem os quilates de seu extremado amor.

1.   Conhecia-se a si, conhecia a quem amava, conhecia o amor, e conhecia o fim onde havia de parar amando.

2.   Conhecia-se a si, porque sabia que não era menos que Deus, Filho do Eterno Padre: Sciens quia a Deo exivit[1][Sabendo que saíra de deus].

3.   Conhecia a quem amava, porque sabia quão ingratos eram os homens, e quão cruéis haviam de ser para com ele: Sciebat enim para com ele: Sciebat enim quisnam esset, qui traderet eum[2][ Sabia qual era o que o havia de entregar]

4.   Conhecia o amor, e bem à custa do seu coração, pela larga experiênciado que tinha amado: Cum dilexisset suos (Como tinha amado os seus)

5.   Conhecia finalmente o fim em que havia de parar amando, que era a morte, e tal morte: Sciens quia venit hora ejus [Sabendo que era chegada a sua hora].

E que, conhecendo-se Cristo a si, conhecendo a quem amava, conhecendo o amor, e conhecendo o fim cruel em que havia de parar amando, amasse contudo?

Grande excesso de amor: In finem dilexit!

Primeiramente, foi grande o amor de Cristo porque nos amou conhecendo-se: Sciens quia a Deo exivit (Jo. 13, 3).

Que conhecendo-se Cristo a si nos amasse a nós, grande e desusado amor!



Enquanto Paris, ignorante de si e da fortuna de seu nascimento, guardava as ovelhas do seu rebanho nos campos do Monte Ida, dizem as histórias humanas que era objeto dos seus cuidados Enone, uma formosura rústica daqueles vales.

Mas quando o encoberto príncipe se conheceu e soube que era filho de Príamo, rei de Tróia, como deixou o cajado e o surrão, trocou também de pensamento.

Amava humildemente enquanto se teve por humilde; tanto que conheceu quem era, logo desconheceu a quem amava. Como o amor se fundava na ignorância de si, o mesmo conhecimento que desfez a ignorância acabou também o amor.

Desamou príncipe, o que tinha amado pastor, porque como é falta de conhecimento próprio nos pequenos levantar o pensamento, assim é afronta da fortuna nos grandes abater o cuidado.

Ah! Príncipe da glória, que assim parece vos havia de suceder convosco, mas não foi assim!

Se Cristo não se conhecera, não fora muito que nos amasse; mas amar-nos conhecendo-se foi tal excesso, que parece que o mesmo amar-nos foi desconhecer-se.










Consta que os Guaranis o entendiam muito bem





Voltar a ouvir os Sermões



Cristo é pretexto. As escrituras é um pretexto. O latim, pretexto. A religião também.

Limpe a área e ouça os Sermões, comece pelo Sermão do Mandato proferido em 1645 na Capela Real, em Lisboa

A 1645 chegamos hoje pelas mãos de Lars Von Trier e de Quentin Tarantino. Em Melancolia, o planeta é o pretexto, assim como em Ninfomaníaca, o sexo o é.  Bastardos Inglórios traz Hitler como pretexto, assim como os atos heroicos em que o assassinato (pretexto) torna-se obra-prima.

Com pretextos se pode pensar com segurança (liberdade?) e avançar o raciocínio (a razão?).

Agora, sim, dá para voltar para a Capela Real e ouvir, compreendendo melhor, Vieira em 1645- talvez aí esteja o momento em que ele escrevia A História do Futuro.




Onde ler o sermão completo
http://www.literaturabrasileira.ufsc.br/documentos/?action=download&id=28727