I.
Meus olhos diminuem, dia a dia,
sua capacidade de visão. Escrevo, hoje, porque minhas mãos sabem onde ficam as
letras na máquina. É o costume. Escrevo com o tato. Escrevo porque sei que é
necessário escrever.
Quando escrever significar
sobreviver a escuridão se impôs. É a tirania da escuridão. É ruim não poder ver
as figuras perfeitas, ver os seus contornos e as belezas que explicam a vida. Minha
imagemé um borão. Sombras, apenas sombras.
Apenas escuro e claro, apenas
rastros.
Rastros de homens, rastros de
vida, rastros de morros, rastros da doce pitangueira. Se antes descobrira-me
nas coisas, agora não via nada senão eu. Eu e o meu futuro. O cego vê dentro de
si e olhar para dentro é desafio e loucura onde se vê o tudo e o nada. Vejo,
com clareza, apenas o meu futuro. O meu futuro é a não visão. É o não ver.
É o fim.
Hoje, sei que é inútil partir para
Baia Blanca. Ninguém mais me espera. Eu passei. Sem ver as linhas abandonadas
pelos cargueiros de Baia Blanca. Eu passei. Acabei. Aqui estou vencido.
Meus olhos não me conduzem a lugar
nenhum. E nada me transporta tão rápido para tão distante. É inútil explorar as
feições dos seres que chegam às minhas páginas. Não sei se ela, a minha
personagem, sorria quando devia sorrir ou sequer se ela tinha lábios. Isto é
princípio de tragédia. É mais que isso. É o meu fim como homem que teve olhos e
não se lançou nos braços das montanhas e não caminhou suas veredas. Unicamente
preocupado em encontrar uma rota segura, nunca construiu dois metros de
estrada.
Não me interessa levantar e sair.
Ter de novo agilidade e contrações faciais. Percebo a derrota e não me sinto
bem com a derrota. Sou um mau vencido. Um inconformado. De que adianta convidar
Suzu-Suzana para dar uma volta, ir ao cinema. Ela trará café. Eu direi que o
seu café é gostoso, que ele está como eu gosto do café, e ela será a mulher
feliz de todas as noites. Seu corpo estará macio. Ela mede a sua felicidade
pela minha felicidade, por isso tenho escrúpulos em ser bom e amigo para Suzu-Suzana.
Tão bom ser feliz com pouco. Contudo, lúcido seria não se contentar.
A casa verde, vermelha e azul,
mulheres de pernas estraçalhadas por bombas sem sonoridade, poeiras desenhadas
com tinta marrom, reproduções em série de rostos desconhecidos: é assim a casa
onde moro. A casa em que moro é aberta, não há cantos escuros, não há mistérios
impenetráveis. Os dramas de há muito subiram para as estantes. Sua conservação
depende unicamente do manuseio. As tragédias estão na geladeira, onde se
conserva a carne gelada que sempre apodrecerá. Ando atarantado em esconder a
minha cegueira.
Logo eu, ficar cego! Ninguém acreditará.
Temos sempre um momento em que somos surpreendidos por nós mesmos. Na hora da
cerveja, meus amigos quase me flagraram em plena cegueira. Ninguém é o
suficiente perspicaz para pilhar um cego, como eu, em flagrante cegueira.
Quantas horas são? Minha
correspondência está atrasada. Escrevo cartas e não as envio. Vão para a
gaveta. Guardo-as para mim. Nada há mais egoísta do que uma carta. Não sei
quando marcharei rumo ao Correio e colocarei cada uma rumo ao seu destino. Pelo
menos acho que deveria ser urgente fazer isso, principalmente porque devo
diminuir a minha expectativa em receber respostas às cartas que não saem da
gaveta. Abro a gaveta e apalpo as cartas. Correspondências auto-censuradas? A
verdade é que ao invés de escrever para Agnaldo ou Teo, eu escrevo é para mim
mesmo e só para mim. O destinatário das minhas correspondências sou eu mesmo.
Nenhuma, zero, expectativas de respostas. Jamais haverá correspondência.
O mundo deste quarto apaga-se.
Temo me aventurar para lá da avenida. Temo ruídos que não conheço. Os passos
estranhos. Temo que descubram que já não posso mais andar sem ser com os passos
lentos da agonia, com o cuidado dos passos curtos, pés que são mãos apalpando o
desconhecido. Forço e abro as pálpebras. Caminho. Falo, como se soubesse de
memória, o mundo que existe na minha frente.
Dez anos ao lado de Suzu-Suzana e
neste momento percebo o quanto ela se assenhorou profundamente do meu ser.
Ocupou-o. Em tudo o que sou. Farei tudo para destruir os seus traços em mim. Quando esbarrei
com a cadeira, ela não falou e não perguntou nada. Acredito que ela sorriu.
Será que ela sabe que estou ficando cego? O tamanho da cegueira? Tenho que
afastá-la de mim, definitivamente. Inútil para uma mulher um homem que não
consegue ver toda a sua beleza e feminilidade. Sem isto, uma mulher não existe.
Não?
Suzu-Suzana nunca trocou os olhos
com que me observa. Vê certamente a minha carcaça. Vê minhas hesitações. Vê que
bosta de gente sobrei. Ela desconhece minha guerra. Na verdade, ela desconhece
tudo. Os olhos de Suzu-Suzana são sempre os mesmos. Ela me vê: uma visão de
quem está nas entranhas do meu corpo. Olhos como se fossem sangue correndo nas
veias da memória. Corre em mim, seu sangue-olho, existindo em meu cérebro,
sendo meu cérebro, em minha pele, em meus pés, olho-sangue. Acompanha meu jeito
deixado. Suzu-Suzana parece firme. Eu sei que não é assim. Ela parece forte.
Não é bem isso. Trata-se de uma fraqueza que não tem a concentração de lágrimas
desesperadas, de impotência ou, exatamente, o seu contrário, uma fraqueza
tornada força por qualquer misteriosa razão de mulher.
Compreendem porque os seus olhos
me incomodam?
Agora, não posso mais descobrir-me
neles. A mim não adianta mais parar na sua frente. Não capto silhuetas. Nada
vem em substituição à perda deste sentido. Se algo se altera, a alteração é
mínima e imperceptível. Eu me vigio e não percebo nada. Não tropeço porque não
me aventuro.
E o pior, o mais estranho, é que agora,
reduzido a mim mesmo, não consigo extrair de minhas lembranças as pessoas que
estiveram próximas de mim, que passaram por mim, que viveram comigo.
Algumas pessoas me deixaram como
se eu fosse uma imensa construção, onde depositavam plantas, tijolos, projetos,
vigas, escadas, cimento.
Outras houve que tantas se
confundiram comigo que não mais sabemos distinguir nossos destinos. Quem era
quem? Aconteceram pessoas decisivas em minha vida. Em silêncio tento e não
consigo reconstruir estas pessoas. Embaralho-as e meticulosamente busco
separá-las. Ao virá-las, como cartas de baralho, percebo que todas elas estão
brancas, não há qualquer sinal ou resumo: nenhuma identidade. Ou a identidade
delas seria um outro. São cartas em minhas mãos e eu não vou blefar.
Não tirarei a vasta cabeleira do
Cabral e a colocarei em Raul.
As caricaturas não me confundirão. Os homens são todos eles
humoristas e até desenhos de humor. Muitos se perdem porque preferiram
encontrar novas pessoas e novos textos. Outras, porque não se levam a sério.
Eu pensava que certas pessoas não
merecessem mais atenção do que a dada a um livro. Os livros foram me levando.
Levaram meu tempo. O terceiro livro apagava os rastros do primeiro. Os livros
vão nos levando, mas de repente uma onda maior pode nos cobrir.
Quem será Suzu-Suzana?
Primeiro, ela foi uma menina, às
vezes meu lugar de passear. Depois mesclou-se em milhares de substâncias, em
milhares de instantâneos. Tornou-se motivo de tudo, até do que escrevo.
Sem brigar, sem falar, sem
reclamar, Suzu-Suzana me jogava contra a parede. Ela confia demais em mim. Eu sou ela. Não quero
ter direitos sobre uma pessoa. Nada justifica que uma pessoa perca a vontade.
Pois bem, Suzu-Suzana é um ponto importante nisto tudo e em tudo – e no pouco
que sou. E dela, eu não consigo reconstruir nada, a não ser os seus olhos, os
mesmos olhos de sempre a me abarcar e a me falar carinhosamente e de novo
sangue-memória a correr veloz em minhas veias.
Aquela noite ele quase não
dormira. À merda com a cegueira.
Suzu-Suzana quase acordou.
II.
Ele ficou quieto, não se moveu.
Como ninguém notara ainda o estado de cegueira em que estava? Realmente, ele
saia pouco. Seus companheiros de cerveja e aqueles moços contadores de casos
porque não notaram, davam-lhe mais confiança. Até quando ninguém perceberia o
estado em que estava e que ameaçaria a todos? Haveria outra maneira de
compreender o silêncio a que se reduzira? Se ele enxergava e calava, ele era um
homem indigno e que não teria outro destino que não a cegueira total. Não podia
conceber tanta putrefação e covardia.
Ele não era um homem digno...
simplesmente, o que ele via não era verdade, como não podia ser verdade que ele
estivesse ficando cego, pois um cego não vê. Ele não era um homem indigno. Ele
devia voltar-se para Suzu-Suzana, esquecer o resto, esquecer a cegueira. Mas e
os olhos de Suzu-Suzana?
Rachid Rachid viera lhe contar
mais uma história de torturas. O torturador como um maestro regia o coro.
- Cantem desgraçados, meus
bonzinhos:
Eu sou ladrão
Cheio de bronca
E para o Reis
O maestro torna-se diretor de cena
e ordena que os dez do coro subam na mesa.
- Atenção, todos em sentido. Atenção!
Agora! Cai abacate!
Um por um foram caindo. À ordem de
cai abacate, deviam cair durinhos como um pau, pois eles não queriam machucar
suas mãos ou gastar energia batendo em ninguém.
Volta o maestro.
- Para encerrar, vamos cantar a Jardineira.
Oh! Jardineira por que estás tão
triste?
Mas o que foi que te aconteceu?
Rachid, Rachid, Rachid soltava
gargalhadas.
A cegueira se alastra e se espalha
nos outros olhos. Hoje veio o doutor Zimmer. Nele, a cegueira é física e o seu
processo é progressivo. Agora, mal conseguia distinguir os objetos.
Parou diante da janela. O céu
devia estar azul, sem nuvens. Sua barba, grande. Amontoados, na sua gaveta,
papéis velhos de anos de trabalho; agora, inúteis. Desde o princípio ele sabia que
nunca utilizar-se-ia daquelas anotações, rabiscos, sínteses que não mais
decifrava.
Sou cigano. Pouco me importo
comigo. Mas se fugir, levo o tacho. Ninguém sabe quanta beleza conheço, quantas
páginas de sonhos acumulei. Quantas páginas de vida devorei. Os papéis seriam
nada mais do que um prolongamento daquelas vidas. Talvez se os presenteasse de
volta ao Rachid Rachid de Araújo Filho... Ele se sentiria honrado pela amizade,
pelos escritos e jamais se deixará apanhar pela cegueira. Seu sangue lê no
vento. Não sei. Estas drogas sempre pertenceram a mim, só interessam a mim.
Eu vivi errante como um grande e
rico diabo; vendi minha alma aos loucos e marginais, atentei contra os
monumentos, estive atento ao que disseram os inúteis, os paralíticos, os
menores, as mulheres, os miseráveis.
Vivi em locais que poucas pessoas
conhecem. Amei mulheres e fonemas, mais fonemas... Quando fiz as minhas opções
não supunha que acabaria cego.
O que me aconteceu, além da
cegueira?