terça-feira, 14 de janeiro de 2014

MANTRA






Os cegos e a escrita


Jonas Barcos


I.

Meus olhos diminuem, dia a dia, sua capacidade de visão. Escrevo, hoje, porque minhas mãos sabem onde ficam as letras na máquina. É o costume. Escrevo com o tato. Escrevo porque sei que é necessário escrever.

Quando escrever significar sobreviver a escuridão se impôs. É a tirania da escuridão. É ruim não poder ver as figuras perfeitas, ver os seus contornos e as belezas que explicam a vida. Minha imagemé um borão. Sombras, apenas sombras.

Apenas escuro e claro, apenas rastros.

Rastros de homens, rastros de vida, rastros de morros, rastros da doce pitangueira. Se antes descobrira-me nas coisas, agora não via nada senão eu. Eu e o meu futuro. O cego vê dentro de si e olhar para dentro é desafio e loucura onde se vê o tudo e o nada. Vejo, com clareza, apenas o meu futuro. O meu futuro é a não visão. É o não ver.

É o fim.

Hoje, sei que é inútil partir para Baia Blanca. Ninguém mais me espera. Eu passei. Sem ver as linhas abandonadas pelos cargueiros de Baia Blanca. Eu passei. Acabei. Aqui estou vencido.


Meus olhos não me conduzem a lugar nenhum. E nada me transporta tão rápido para tão distante. É inútil explorar as feições dos seres que chegam às minhas páginas. Não sei se ela, a minha personagem, sorria quando devia sorrir ou sequer se ela tinha lábios. Isto é princípio de tragédia. É mais que isso. É o meu fim como homem que teve olhos e não se lançou nos braços das montanhas e não caminhou suas veredas. Unicamente preocupado em encontrar uma rota segura, nunca construiu dois metros de estrada.



Não me interessa levantar e sair. Ter de novo agilidade e contrações faciais. Percebo a derrota e não me sinto bem com a derrota. Sou um mau vencido. Um inconformado. De que adianta convidar Suzu-Suzana para dar uma volta, ir ao cinema. Ela trará café. Eu direi que o seu café é gostoso, que ele está como eu gosto do café, e ela será a mulher feliz de todas as noites. Seu corpo estará macio. Ela mede a sua felicidade pela minha felicidade, por isso tenho escrúpulos em ser bom e amigo para Suzu-Suzana. Tão bom ser feliz com pouco. Contudo, lúcido seria não se contentar.


A casa verde, vermelha e azul, mulheres de pernas estraçalhadas por bombas sem sonoridade, poeiras desenhadas com tinta marrom, reproduções em série de rostos desconhecidos: é assim a casa onde moro. A casa em que moro é aberta, não há cantos escuros, não há mistérios impenetráveis. Os dramas de há muito subiram para as estantes. Sua conservação depende unicamente do manuseio. As tragédias estão na geladeira, onde se conserva a carne gelada que sempre apodrecerá. Ando atarantado em esconder a minha cegueira.

Logo eu, ficar cego! Ninguém acreditará. Temos sempre um momento em que somos surpreendidos por nós mesmos. Na hora da cerveja, meus amigos quase me flagraram em plena cegueira. Ninguém é o suficiente perspicaz para pilhar um cego, como eu, em flagrante cegueira.



Quantas horas são? Minha correspondência está atrasada. Escrevo cartas e não as envio. Vão para a gaveta. Guardo-as para mim. Nada há mais egoísta do que uma carta. Não sei quando marcharei rumo ao Correio e colocarei cada uma rumo ao seu destino. Pelo menos acho que deveria ser urgente fazer isso, principalmente porque devo diminuir a minha expectativa em receber respostas às cartas que não saem da gaveta. Abro a gaveta e apalpo as cartas. Correspondências auto-censuradas? A verdade é que ao invés de escrever para Agnaldo ou Teo, eu escrevo é para mim mesmo e só para mim. O destinatário das minhas correspondências sou eu mesmo. Nenhuma, zero, expectativas de respostas. Jamais haverá correspondência.



O mundo deste quarto apaga-se. Temo me aventurar para lá da avenida. Temo ruídos que não conheço. Os passos estranhos. Temo que descubram que já não posso mais andar sem ser com os passos lentos da agonia, com o cuidado dos passos curtos, pés que são mãos apalpando o desconhecido. Forço e abro as pálpebras. Caminho. Falo, como se soubesse de memória, o mundo que existe na minha frente.



Dez anos ao lado de Suzu-Suzana e neste momento percebo o quanto ela se assenhorou profundamente do meu ser. Ocupou-o. Em tudo o que sou. Farei tudo para destruir os seus traços em mim. Quando esbarrei com a cadeira, ela não falou e não perguntou nada. Acredito que ela sorriu. Será que ela sabe que estou ficando cego? O tamanho da cegueira? Tenho que afastá-la de mim, definitivamente. Inútil para uma mulher um homem que não consegue ver toda a sua beleza e feminilidade. Sem isto, uma mulher não existe. Não?


Suzu-Suzana nunca trocou os olhos com que me observa. Vê certamente a minha carcaça. Vê minhas hesitações. Vê que bosta de gente sobrei. Ela desconhece minha guerra. Na verdade, ela desconhece tudo. Os olhos de Suzu-Suzana são sempre os mesmos. Ela me vê: uma visão de quem está nas entranhas do meu corpo. Olhos como se fossem sangue correndo nas veias da memória. Corre em mim, seu sangue-olho, existindo em meu cérebro, sendo meu cérebro, em minha pele, em meus pés, olho-sangue. Acompanha meu jeito deixado. Suzu-Suzana parece firme. Eu sei que não é assim. Ela parece forte. Não é bem isso. Trata-se de uma fraqueza que não tem a concentração de lágrimas desesperadas, de impotência ou, exatamente, o seu contrário, uma fraqueza tornada força por qualquer misteriosa razão de mulher.


Compreendem porque os seus olhos me incomodam?

Agora, não posso mais descobrir-me neles. A mim não adianta mais parar na sua frente. Não capto silhuetas. Nada vem em substituição à perda deste sentido. Se algo se altera, a alteração é mínima e imperceptível. Eu me vigio e não percebo nada. Não tropeço porque não me aventuro.

E o pior, o mais estranho, é que agora, reduzido a mim mesmo, não consigo extrair de minhas lembranças as pessoas que estiveram próximas de mim, que passaram por mim, que viveram comigo.

Algumas pessoas me deixaram como se eu fosse uma imensa construção, onde depositavam plantas, tijolos, projetos, vigas, escadas, cimento.

Outras houve que tantas se confundiram comigo que não mais sabemos distinguir nossos destinos. Quem era quem? Aconteceram pessoas decisivas em minha vida. Em silêncio tento e não consigo reconstruir estas pessoas. Embaralho-as e meticulosamente busco separá-las. Ao virá-las, como cartas de baralho, percebo que todas elas estão brancas, não há qualquer sinal ou resumo: nenhuma identidade. Ou a identidade delas seria um outro. São cartas em minhas mãos e eu não vou blefar.

Não tirarei a vasta cabeleira do Cabral e a colocarei em Raul. As caricaturas não me confundirão. Os homens são todos eles humoristas e até desenhos de humor. Muitos se perdem porque preferiram encontrar novas pessoas e novos textos. Outras, porque não se levam a sério.

Eu pensava que certas pessoas não merecessem mais atenção do que a dada a um livro. Os livros foram me levando. Levaram meu tempo. O terceiro livro apagava os rastros do primeiro. Os livros vão nos levando, mas de repente uma onda maior pode nos cobrir.

Quem será Suzu-Suzana?

Primeiro, ela foi uma menina, às vezes meu lugar de passear. Depois mesclou-se em milhares de substâncias, em milhares de instantâneos. Tornou-se motivo de tudo, até do que escrevo.

Sem brigar, sem falar, sem reclamar, Suzu-Suzana me jogava contra a parede. Ela confia demais em mim. Eu sou ela. Não quero ter direitos sobre uma pessoa. Nada justifica que uma pessoa perca a vontade. Pois bem, Suzu-Suzana é um ponto importante nisto tudo e em tudo – e no pouco que sou. E dela, eu não consigo reconstruir nada, a não ser os seus olhos, os mesmos olhos de sempre a me abarcar e a me falar carinhosamente e de novo sangue-memória a correr veloz em minhas veias.


Aquela noite ele quase não dormira. À merda com a cegueira.

Suzu-Suzana quase acordou.

II.


Ele ficou quieto, não se moveu. Como ninguém notara ainda o estado de cegueira em que estava? Realmente, ele saia pouco. Seus companheiros de cerveja e aqueles moços contadores de casos porque não notaram, davam-lhe mais confiança. Até quando ninguém perceberia o estado em que estava e que ameaçaria a todos? Haveria outra maneira de compreender o silêncio a que se reduzira? Se ele enxergava e calava, ele era um homem indigno e que não teria outro destino que não a cegueira total. Não podia conceber tanta putrefação e covardia.

Ele não era um homem digno... simplesmente, o que ele via não era verdade, como não podia ser verdade que ele estivesse ficando cego, pois um cego não vê. Ele não era um homem indigno. Ele devia voltar-se para Suzu-Suzana, esquecer o resto, esquecer a cegueira. Mas e os olhos de Suzu-Suzana?

Rachid Rachid viera lhe contar mais uma história de torturas. O torturador como um maestro regia o coro.


- Cantem desgraçados, meus bonzinhos:
                             
Eu sou ladrão
Cheio de bronca
E para o Reis

Eu vou dar




O maestro torna-se diretor de cena e ordena que os dez do coro subam na mesa.


- Atenção, todos em sentido. Atenção! Agora! Cai abacate!


Um por um foram caindo. À ordem de cai abacate, deviam cair durinhos como um pau, pois eles não queriam machucar suas mãos ou gastar energia batendo em ninguém.


Volta o maestro.


- Para encerrar, vamos cantar a Jardineira.
                                 
           

Oh! Jardineira por que estás tão triste?
Mas o que foi que te aconteceu?



Rachid, Rachid, Rachid soltava gargalhadas.

A cegueira se alastra e se espalha nos outros olhos. Hoje veio o doutor Zimmer. Nele, a cegueira é física e o seu processo é progressivo. Agora, mal conseguia distinguir os objetos.


Parou diante da janela. O céu devia estar azul, sem nuvens. Sua barba, grande. Amontoados, na sua gaveta, papéis velhos de anos de trabalho; agora, inúteis. Desde o princípio ele sabia que nunca utilizar-se-ia daquelas anotações, rabiscos, sínteses que não mais decifrava.


Sou cigano. Pouco me importo comigo. Mas se fugir, levo o tacho. Ninguém sabe quanta beleza conheço, quantas páginas de sonhos acumulei. Quantas páginas de vida devorei. Os papéis seriam nada mais do que um prolongamento daquelas vidas. Talvez se os presenteasse de volta ao Rachid Rachid de Araújo Filho... Ele se sentiria honrado pela amizade, pelos escritos e jamais se deixará apanhar pela cegueira. Seu sangue lê no vento. Não sei. Estas drogas sempre pertenceram a mim, só interessam a mim.



Eu vivi errante como um grande e rico diabo; vendi minha alma aos loucos e marginais, atentei contra os monumentos, estive atento ao que disseram os inúteis, os paralíticos, os menores, as mulheres, os miseráveis.

Vivi em locais que poucas pessoas conhecem. Amei mulheres e fonemas, mais fonemas... Quando fiz as minhas opções não supunha que acabaria cego.


O que me aconteceu, além da cegueira?