Introdução
O que se
encontra aqui é a história de um homem e de uma mulher. Simplesmente, eu diria,
a história de um homem. Mas por mais modesto que fossem os objetivos do
narrador, ele não poderia negar que se trata também da história de uma época.
Em 1973,
como revisor de jornal, fui contratado por uma mulher estranha, de fato ela era
estranha. Muito estranha. Não tinha nada de misteriosa. Nem era uma bruxa. Era
estranha no comportamento. Um comportamento se não estranho, diferente.
Primeiro,
recusou o contato direto com o revisor contratado. Depois, apareceram os
intermediários e foram muitos. Poucos se repetiram. Nem mais me interessaria
pelo nome deles, não fosse aquela tendência natural de, em um contato mais
longo, de duas, três horas, por exemplo,das pessoas escapulirem do osso do
ofício e se abrirem curiosos com o significado e a história de algumas
palavras, como com o sabor do café sem açúcar – o que tinha na única garrafa
ali na mesa.
Ela agia
por intermediários porque queria unicamente os meus ofícios de revisor. A vida
da gente é piradona, como diz a poesia. Quando acontece uns fatos novos, a
gente os devora com fome de leão, a qual deve ser uma fome violenta para
entendermos exatamente a expressão.
Eu disse
que a mulher estranha agia através de uma intermediária. Vamos a ela. Havia uma
intermediária mais presente, entre tantos homens e era a única mulher. Esta
intermediária, cabelos bem penteados, arquitetonicamente armados. Imagine um
palácio ambulante. Isto é, um palácio em cima da cabeça de uma mulher. Pois
bem, a mulher carregava um palácio na cabeça, dia verde, dia azul, dia preto,
dia castanho. Quando eu e a mulher nos encontramos, pela primeira vez, esta
mulher carregava um pacote de manuscritos.
O meu contrato,
além da revisão, deveria por em ordem os papéis, dar estrutura aos manuscritos,
começo e fim. Enfim, reescrever.
A senhora
de cabelos penteados, excessivamente penteados, eram diariamente penteados ou
será que a mulher usava cada dia uma cabeleira diferente?
Contrário
aos seus cabelos tão bem penteados, os manuscritos chegaram bem desarrumados.
Uma bagunça. Folhas sem numeração ou com até três números.
Todos os
dias às 17:30, você podia marcar no relógio, a mulher de cabelos penteados, transportando
o palácio na cabeça, trazia os sons de seus saltos crescendo em volume até
parar na porta, tocar a campainha, abrir a porta (já tinha esta liberdade) e
entrar.
Às vezes, seca
e direta. Como anda o trabalho? Alguma dúvida?
Ou então
se transformava e era mais uma secretária. Atenciosa, gentil, delicada.
"Se precisar
de ajuda, talvez poderei ajudá-lo".
Permanecia alguns momentos no escritório,
outras vezes me tratava com familiaridade. Era a sua face gentil.
A rotina
dessas visitas no final da tarde mudava constantemente e aquele clima inicial
de distância, diminuída, ganhou intimidade.
Vezes sem
conta, eu me indagava, se não era ela a própria mulher misteriosa, e se não era
esta mulher uma velha conhecida, uma amiga quando dos meus 28 anos. A dúvida me
intrigava. Tinha de ser assim. Permanentemente, intrigado quanto à mulher
misteriosa, quanto a autoria dos manuscritos, quanto à paciente presença da
mulher de cabelos penteados, com aquele castelo enorme e que, ao passar tempos
sem aparecer, quando aparecia, era como se uma velha amiga me surpreendesse.
Quem
escreveu tantas histórias, tantas palavras? Certo que era alguém que tinha
prática de escrevinhar e tempo ou então uma paixão sensual pelo escrever,
escrever, escrever. Ou um compromisso. Ou vaidade. Aquela vaidade que é a
vaidade maior do que a vaidade do escritor.
O texto prende
Devorei aquela montoeira de manuscritos
como se fizesse a leitura de um bom romance. Mas os fatos me traziam suspenso
como se eu tivesse sido envolvido por um abraço pegajoso, insano. Colorido. Um
abraço vermelho ou amarelo, sem graça. Tímido. Cúmplice. Os fatos eram
muito próximos. Rondavam a minha cidade. Durante sua leitura muitas vezes fui
lançado fora do romance para a rua que percorria através do dia e da noite num
andar banzo, perdido, na busca da identificação de locais descritos naquele labirinto.
Aquilo
era a história da minha própria vida ou estaria diante de uma pessoa que teria
vivido os mesmos fatos por mim vividos numa década perdida. Perdida para mim,
cujas lembranças vinham mais de fatos relacionados com o meu país do que com a
minha experiência pessoal. Seria uma armadilha? Não era possível.
Antes de
mais nada, o melhor é seguir uma ordem nesse relato. Revelar todos os fatos
possíveis de análise.
Primeiro, a mulher dos cabelos – com um castelo na cabeça. Ela veio numa noite
de sábado. Não me procurou no escritório, foi direto à redação do jornal. Não
quis recebê-la para não tratar de caso particular dentro de uma outra empresa.
Segundo,
porque no escritório, saturados de trabalho, negáramos vários pedidos de
revisão. Naquela noite de sábado, minha ideia era sair daquele amontoado de
máquinas, papéis, revisões, vozes, correrias, gritos, gritos, gargalhadas e
ternos e vestidos, gravatas e decotes.
Assim,
escapar, o mais rápido, daquele amontoado, limpar a poeira e ir até a minha
mulher amada.
Eu e a mulher, a bela Taís, guardávamos cinco anos cheios de alegrias e quatro
meninos fortes, explosivos. E somos egoístas dentro dessa nossa alegria. Falei
isso apenas para poder dizer porque sou um homem ligado à mulher e aos filhos.
Somos assim porque somos felizes.
Naquele
sábado, a mulher dos cabelos penteados insistiu, esperou, insistiu. Queria de
qualquer maneira me entregar os manuscritos. Acabei indo falar pessoalmente com
ela e arquitetei assustá-la. Pedir uma exorbitância, fazer de maluco e
pô-la a correr. O tiro saiu pela culatra. Ela riu de minhas brincadeiras e
quanto à exorbitância do preço cobrado, ela, sem piscar, aceitou pagá-lo.
Quem acabou assustado fui eu. Tive que explicar que o preço normal, preço de
mercado, não era aquele. Expliquei porque não poderia aceitar o trabalho e fiz
uma lista de colegas que trabalhavam como free-lancer em revisão.
Estendi-lhe
a mão num cumprimento comercial. Antes que eu me afastasse, ela segurou meu
braço familiarmente e me dirigiu um olhar como se fôssemos senão íntimos pelo
menos velhos conhecidos.
- Por favor, Heitor, faça esse trabalho você.
Estourei.
Não tinha mais saco. Áspero, grosseiro e decisivo. Não faria este trabalho. Não
tinha tempo. Ia despedir-me, quando ela me surpreendeu. Ela abaixou os olhos.
Aqueles olhos cheios de luz sumiram. Fiquei mais assustado ainda. Fui
convencido pelo olhar dela, como se os olhos argumentassem em sua calma invasão
do outro.
No fim,
águas calmas, decidi fazer o trabalho. Simpatizei com aquela mulher penteada,
um castelo na cabeça. Seus olhos, cheios de luz, de vida, de alegria, quase me
cegaram.
Logo vi
que as palavras nem sempre dizem o que querem dizer e que aquela absurda
atitude de negar não era verdadeira. Segundo, em pouco tempo, descobri que a
mulher misteriosa existe.
Terceiro,
que a mulher penteada usa peruca. E que, sem a peruca, seduz e devora.
Quarto,
que pouca coisa tínhamos em comum no que vulgarmente se costuma considerar que
duas pessoas tenham em comum, um passado, uma existência, um conhecimento.
Outro dia,
no jornal, dentro do barulho grávido das máquinas impressoras, observei aquela
mulher em silêncio, um silêncio que atravessava a gente, que estava em nós e
que apenas nos pertencia.
A memória
num raio de segundos resgatou lembranças dilaceradas e trouxe um campo de muita
luz. Iluminava muitos fatos inexplicáveis, dez, vinte anos atrás. Algo me
despertava em fuga veloz.
A mulher
de perucas azuis, verdes, castanhas e de cabelos pretos, bonita em seus
vestidos, talvez não fosse uma mulher atraente. Apenas, misteriosa. Seu nome
Luiza. Está anotado no cartão de visitas, ali, dentro do cesto.
Naquela
noite de sábado em que os cabelos penteados me impingiram o pacote, anotei no
pacote, sem prestar atenção no que escrevia: “Não tem proprietário”. Sublinhei
e pus aspas
“Não tem proprietário”
O pacote
embrulhado num papel-papelão azul estava amarrado com cordões de nylon. O embrulho
ficou no balcão do jornal. Fui tomar café.
Do bar,
via o embrulho. Um monte azul em cima do mármore do balcão. As luzes do recinto
expunham o pacote realçado, imenso, sem sombras. Foi naquele sábado, quase no
final da noite.
Paguei o
pingado e apanhei o pacote.