domingo, 31 de agosto de 2014

MANUSCRITOS




Uma história gráfica

 &


O amor vivido por Heitor


Elton de Assis



Introdução

 

 

O que se encontra aqui é a história de um homem e de uma mulher. Simplesmente, eu diria, a história de um homem. Mas por mais modesto que fossem os objetivos do narrador, ele não poderia negar que se trata também da história de uma época.

 

Em 1973, como revisor de jornal, fui contratado por uma mulher estranha, de fato ela era estranha. Muito estranha. Não tinha nada de misteriosa. Nem era uma bruxa. Era estranha no comportamento. Um comportamento se não estranho, diferente.

 

Primeiro, recusou o contato direto com o revisor contratado. Depois, apareceram os intermediários e foram muitos. Poucos se repetiram. Nem mais me interessaria pelo nome deles, não fosse aquela tendência natural de, em um contato mais longo, de duas, três horas, por exemplo,das pessoas escapulirem do osso do ofício e se abrirem curiosos com o significado e a história de algumas palavras, como com o sabor do café sem açúcar – o que tinha na única garrafa ali na mesa.

 

Ela agia por intermediários porque queria unicamente os meus ofícios de revisor. A vida da gente é piradona, como diz a poesia. Quando acontece uns fatos novos, a gente os devora com fome de leão, a qual deve ser uma fome violenta para entendermos exatamente a expressão.

 

Eu disse que a mulher estranha agia através de uma intermediária. Vamos a ela. Havia uma intermediária mais presente, entre tantos homens e era a única mulher. Esta intermediária, cabelos bem penteados, arquitetonicamente armados. Imagine um palácio ambulante. Isto é, um palácio em cima da cabeça de uma mulher. Pois bem, a mulher carregava um palácio na cabeça, dia verde, dia azul, dia preto, dia castanho. Quando eu e a mulher nos encontramos, pela primeira vez, esta mulher carregava um pacote de manuscritos.

 

O meu contrato, além da revisão, deveria por em ordem os papéis, dar estrutura aos manuscritos, começo e fim. Enfim, reescrever.

 

A senhora de cabelos penteados, excessivamente penteados, eram diariamente penteados ou será que a mulher usava cada dia uma cabeleira diferente?

 

Contrário aos seus cabelos tão bem penteados, os manuscritos chegaram bem desarrumados. Uma bagunça. Folhas sem numeração ou com até três números.

 

Todos os dias às 17:30, você podia marcar no relógio, a mulher de cabelos penteados, transportando o palácio na cabeça, trazia os sons de seus saltos crescendo em volume até parar na porta, tocar a campainha, abrir a porta (já tinha esta liberdade) e entrar.

 

Às vezes, seca e direta. Como anda o trabalho? Alguma dúvida?

 

Ou então se transformava e era mais uma secretária. Atenciosa, gentil, delicada.

 

"Se precisar de ajuda, talvez poderei ajudá-lo".

 

 Permanecia alguns momentos no escritório, outras vezes me tratava com familiaridade. Era a sua face gentil.

 

A rotina dessas visitas no final da tarde mudava constantemente e aquele clima inicial de distância, diminuída, ganhou intimidade.

 

Vezes sem conta, eu me indagava, se não era ela a própria mulher misteriosa, e se não era esta mulher uma velha conhecida, uma amiga quando dos meus 28 anos. A dúvida me intrigava. Tinha de ser assim. Permanentemente, intrigado quanto à mulher misteriosa, quanto a autoria dos manuscritos, quanto à paciente presença da mulher de cabelos penteados, com aquele castelo enorme e que, ao passar tempos sem aparecer, quando aparecia, era como se uma velha amiga me surpreendesse.

 

Quem escreveu tantas histórias, tantas palavras? Certo que era alguém que tinha prática de escrevinhar e tempo ou então uma paixão sensual pelo escrever, escrever, escrever. Ou um compromisso. Ou vaidade. Aquela vaidade que é a vaidade maior do que a vaidade do escritor.

 

O texto prende        

                                                                                                               
Devorei aquela montoeira de manuscritos como se fizesse a leitura de um bom romance. Mas os fatos me traziam suspenso como se eu tivesse sido envolvido por um abraço pegajoso, insano. Colorido. Um abraço vermelho ou amarelo, sem graça. Tímido. Cúmplice. Os  fatos eram muito próximos. Rondavam a minha cidade. Durante sua leitura muitas vezes fui lançado fora do romance para a rua que percorria através do dia e da noite num andar banzo, perdido, na busca da identificação de locais descritos naquele labirinto.

 

 Aquilo era a história da minha própria vida ou estaria diante de uma pessoa que teria vivido os mesmos fatos por mim vividos numa década perdida. Perdida para mim, cujas lembranças vinham mais de fatos relacionados com o meu país do que com a minha experiência pessoal. Seria uma armadilha? Não era possível.

 

Antes de mais nada, o melhor é seguir uma ordem nesse relato. Revelar todos os fatos possíveis de análise. 

Primeiro, a mulher dos cabelos – com um castelo na cabeça. Ela veio numa noite de sábado. Não me procurou no escritório, foi direto à redação do jornal. Não quis recebê-la para não tratar de caso particular dentro de uma outra empresa.

 

Segundo, porque no escritório, saturados de trabalho, negáramos vários pedidos de revisão. Naquela noite de sábado, minha ideia era sair daquele amontoado de máquinas, papéis, revisões, vozes, correrias, gritos, gritos, gargalhadas e ternos e vestidos, gravatas e decotes.

 

Assim, escapar, o mais rápido, daquele amontoado, limpar a poeira e ir até a minha mulher amada. 

Eu e a mulher, a bela Taís, guardávamos cinco anos cheios de alegrias e quatro meninos fortes, explosivos. E somos egoístas dentro dessa nossa alegria. Falei isso apenas para poder dizer porque sou um homem ligado à mulher e aos filhos. Somos assim porque somos felizes.

 

Naquele sábado, a mulher dos cabelos penteados insistiu, esperou, insistiu. Queria de qualquer maneira me entregar os manuscritos. Acabei indo falar pessoalmente com ela e arquitetei assustá-la. Pedir  uma exorbitância, fazer de maluco e pô-la a correr. O tiro saiu pela culatra. Ela riu de minhas brincadeiras e quanto à exorbitância do preço cobrado, ela, sem piscar, aceitou pagá-lo. 

Quem acabou assustado fui eu. Tive que explicar que o preço normal, preço de mercado, não era aquele. Expliquei porque não poderia aceitar o trabalho e fiz uma lista de colegas que trabalhavam como free-lancer em revisão.

 

Estendi-lhe a mão num cumprimento comercial. Antes que eu me afastasse, ela segurou meu braço familiarmente e me dirigiu um olhar como se fôssemos senão íntimos pelo menos velhos conhecidos.

 

  -  Por favor, Heitor, faça esse trabalho você.

 

Estourei. Não tinha mais saco. Áspero, grosseiro e decisivo. Não faria este trabalho. Não tinha tempo. Ia despedir-me, quando ela me surpreendeu. Ela abaixou os olhos. Aqueles olhos cheios de luz sumiram. Fiquei mais assustado ainda. Fui convencido pelo olhar dela, como se os olhos argumentassem em sua calma invasão do outro.

 

No fim, águas calmas, decidi fazer o trabalho. Simpatizei com aquela mulher penteada, um castelo na cabeça. Seus olhos, cheios de luz, de vida, de alegria, quase me cegaram.

           

Logo vi que as palavras nem sempre dizem o que querem dizer e que aquela absurda atitude de negar não era verdadeira. Segundo, em pouco tempo, descobri que a mulher misteriosa existe.

 

Terceiro, que a mulher penteada usa peruca. E que, sem a peruca, seduz e devora.

 

Quarto, que pouca coisa tínhamos em comum no que vulgarmente se costuma considerar que duas pessoas tenham em comum, um passado, uma existência, um conhecimento.

        

Outro dia, no jornal, dentro do barulho grávido das máquinas impressoras, observei aquela mulher em silêncio, um silêncio que atravessava a gente, que estava em nós e que apenas nos pertencia.

 

A memória num raio de segundos resgatou lembranças dilaceradas e trouxe um campo de muita luz. Iluminava muitos fatos inexplicáveis, dez, vinte anos atrás. Algo me despertava em fuga veloz.

           

A mulher de perucas azuis, verdes, castanhas e de cabelos pretos, bonita em seus vestidos, talvez não fosse uma mulher atraente. Apenas, misteriosa. Seu nome Luiza. Está anotado no cartão de visitas, ali, dentro do cesto.

 

Naquela noite de sábado em que os cabelos penteados me impingiram o pacote, anotei no pacote, sem prestar atenção no que escrevia: “Não tem proprietário”. Sublinhei e pus aspas

 

“Não tem proprietário”

 

O pacote embrulhado num papel-papelão azul estava amarrado com cordões de nylon. O embrulho ficou no balcão do jornal. Fui tomar café. 

 

Do bar, via o embrulho. Um monte azul em cima do mármore do balcão. As luzes do recinto expunham o pacote realçado, imenso, sem sombras. Foi naquele sábado, quase no final da noite. 

 

Paguei o pingado e apanhei o pacote.