Um Conto em 27 Atos e Uma Sexta-feira
Alfredo Collins
1ª
parte – A matéria
2ª
parte – Os elementos
3ª
parte – A metamorfose
1a
parte
A matéria
“... toda criatura humana constitui profundo segredo e mistério
para todas as outras”
Charles Dickens
1º
Ato
Bete ergue os braços. Firma os seios. Seu corpo praticável ganha
volume e presença.
Ela era Cassandra (*). Fecham as cortinas. Aplausos, aplausos.
- Bete não é volúvel.
Lembro de Bete. Loura. Traz o caderno. Um volume guardado no
pequeno apartamento da rua do Ouro, em Belo Horizonte. Ali, no
apartamento-porão e no caderno ela relaciona os nomes de alguns amantes,
característica e desempenho.
Carlos é pretensioso.
Rui, o Eco, tudo repete.
Joaquim Piscador.
John Citador.
Cláudio, Pura Alegria.
Lembro de Bete chorando.
Seu amigo se entristece e nega-se a compor a figura de menina.
Bete seios volumosos, uma fonte de complexos. Bete pernas finas. Duas fontes de
complexos.
- Vou fazer plástica.
Bete lábios voluptuosos, Bete mãos carícias.
- Amar é apalpar.
- Ainda percebes as minhas mãos?
Bete sorriso, Bete criança.
- Cuidado, isto não é amor.
- Deslumbramento insaciável.
- Bete não se contenta.
- Ela é volúvel.
- Infiel.
(*) “Enamorado da jovem troiana, Cassandra, filha de Príamo, Apolo
concedeu-lhe o dom da mantéia, da profecia, desde que a linda jovem se
entregasse a ele. Recebido o poder de profetizar, Cassandra se negou a
satisfazer-lhe os desejos. Não lhe podendo tirar o dom divinatório Apolo
cuspiu-lhe na boca e tirou-lhe a credibilidade: tudo que Cassandra dizia era
verídico, mas ninguém dava crédito às suas palavras”.
In Mitologia Grega, de Juanito de Souza Brandão, Editora Vozes,
1987
1º Ato
Segunda Cena
Bete e
Cassandra
Ou
Quando se
chega ao fim do que resta?
De A. Alcaide
Direção de Arnould Ernandez
Quem é Bete?
Talvez eu seja a
pessoa menos indicada para responder a esta pergunta. Talvez, não. Considerando
a paixão, os sentidos de uma paixão e os estragos que a paixão faz em um homem,
eu deixaria de ser a pessoa indicada. Tento ser honesto. A dificuldade é
grande, não que não acredite em honestidade como valor, nem como possibilidade.
Nada disso. A honestidade começa agora.
Quem sabe se não seria útil mentir um pouco para que possamos jogar o
jogo da verdade e o jogo da mentira e da simulação. As mentiras serão separadas,
identificadas, catalogadas mesmo quando elas contenham toda a beleza das nossas
vidas.
Lembro-me agora
de Bete. Ela está nítida na minha frente. Atriz precoce em Antígone, de
Sófocles.
Uma menina de 14 anos e uma memória gigante. Ela ergue os braços,
firma os seios. No praticável, no usual, seu corpo ganha volume e presença.
Este é o momento em que ela é Cassandra.
Quem é
Cassandra?
Um personagem
da mitologia e do teatro grego que traga as pessoas. Nele se encontram o terror
do destino, da sua verdade, da sua irreversibilidade e nele está também a
coragem humana para não se submeter. Como um contraponto ao destino
irreversível, a força da nossa vontade e a liberdade de todo dia, todo dia
conquistada. Ali, em Cassandra, a beleza daqueles que são capazes de caminhar
inexoravelmente para a morte. Em Cassandra, a consciência de si e o
conhecimento de si e do outro. Cassandra, uma mulher marcada pelos deuses, seu
destino seria o daqueles que são capazes de ver o futuro, mas em quem ninguém
acredita. Ninguém iria acreditar em Cassandra. Ninguém nunca acreditou em Bete
e ninguém jamais conseguiu enxergar sua beleza e sua magia.
“Nascemos
e, apesar de não termos cometido nenhum crime, somos condenados à morte”.
Woody Allen, in Magia ao Luar
2º
Ato
- Por que você quer
falar sobre Bete?
- Por que? Porque
Bete destruiu muitas coisas belas enquanto dizia Cassandra.
Na paisagem, onde o
sol dissipa nevoeiros, consome nuvens, na pele do homem moreno, em tudo
acontecia um momento de tristeza. Seria só um momento. Tudo isto nos permitem
grandes reordenamentos. Por exemplo, a bicha não mais emprestará seu
apartamento para Bete amar. Temia um processo por pedofilia. Bete tem 14 anos.
Cassandra? Não
importa. Bete dizia Cassandra e a imagem construída tinha seios. Bete tinha
seios. Ela era máscula, sem medo. Sorria sem poder sorrir, antes e depois das
histórias de Bete (em seu pequenino laboratório, um apartamento construído pelo
papai nos fundos da casa, com passagem independente, pela garagem, Bete
ensaiava, pintava, mentia, amava, além de me contar histórias fantásticas).
Com onze anos
aconteceu a primeira fuga, deixou sua casa, deixou Belo Horizonte, deixou a
escola de artes, fugiu para uma fuga inacabável e que durou treze dias esta primeira
grande fuga inesquecível. Tudo terminou numa fazenda. E Bete não quis casar,
por que?
- O Ruivo era covarde e
mesquinho.
Estamos naquele bar,
ali, em frente do cine Metrópole, o Ruivo entra, senta próximo de nós, não
cumprimenta ninguém, pede uma cerveja.
- Ele está condenado
pela Justiça Militar, não sei o que aconteceu, apenas sei é que ele está
tirando toda a cadeia em liberdade.
Bete insiste em censurar o
Ruivo. Bunda mole. Chorou quando disseram que ele teria que casar. Aí, vi que a
fuga valeu a pena. De passagem ao pagar a conta, ele nos cumprimenta e diz que
hoje o jornal trabalha causando vômitos.
Bete diz que o absurdo faz
parte da vida. O absurdo é a própria vida. O teatro é a vida. Ela diz e beija o
Ruivo.
2º Ato
Segunda Cena
O Teatro
Francisco Nunes, construído no início do século XX, foi palco de apresentações
internacionais e de grande óperas.
Bete não é volúvel.
Lembro-me de Bete. Era loura. Seu corpo tinha a maciez que minhas
mãos capturavam. Ela guardava no seu pequeno apartamento da rua do Ouro aquele
caderno de capa preta. O caderno está destruído no fundo do quintal. Lá,
relacionados, por ordem de entrada, alguns dos amantes, homens e mulheres do
destino de Bete. De novo, vamos lá, vamos conferir.
- Carlos,
pretensioso. Continua pretensioso. Ele se julga o senhor garanhão e não
consegue enxergar quem está debaixo, do lado ou em cima dele. Ele se acha.
- Rui, o eco,
aquele que repete-se e é monótono. Tudo é previsível com o Rui, sempre irá
tirar a calça do mesmo jeito, é organizado, tirará a camisa e a dependurará na
cadeira do motel, dobrará a cueca e será só uma posição, dormir, tomar banho e
um beijo de despedida. Mais nada.
- Joaquim era pescador. Uma imensa rede
armada na cidade, tudo o que caia ali ele traçava. Um dia, Joaquim apanhou uma
mendiga, deu-lhe banho de mangueira e comeu. O vigia do estacionamento assistiu
tudo, bateu uma senhora punheta – dez anos depois, dez anos depois, Roberto
Batata, o vigia que virou motorista, contaria a história da mendiga como se
tivesse acontecido com ele tão perfeita foi a punheta. Joaquim comeu o cu da
mendiga e ficou cagado, fedendo por mais de 20 dias. O que não aconteceu com
Roberto Batata, o vigia que virou motorista, fez uma bariátrica e suicidou
enforcando-se num galho na avenida José Cândido da Silveira, na Cidade Nova.
- John, um ditador,
um cidadão de um grande país, por isso ele se sentia superior, lá existia isto
e aquilo que não tínhamos aqui.
- Cláudio, a
alegria, pura e grande alegria. Era o grande companheiro de Bete, quando
aparecia. A tristeza sempre chegava quando ele dizia que partiria no dia
seguinte. Não era só Bete quem ficava triste, nós todos. A alegria que contagia
vinha da sua simples presença.
Lembro-me de Bete chorando. Suas lágrimas eram fartas e doces.
Seu amigo torna-se triste e não quer mais falar de Bete.
Ele nega-se a
compor a imagem de Bete, uma menina
de seios volumosos, uma fonte de complexos
de pernas finas, mais uma fonte de complexos
(Vou fazer operação
plástica)
Bete lábios, sim, sim, estes sim, voluptuosos, Bete mãos
carícias.
Faço uma interferência no relato: Na minha opinião, amar é apalpar
mesmo às apalpadelas.
bete sorriso
quando bete criança.
- Cuidado isto não é
amor.
- Um
deslumbramento - e o homem de muxoxos, que assim define Bete, cospe um pouco de
cerveja fora do bar, na calçada.
- Ora por que
deslumbramento, meu? Por que Bete não se contenta nunca?
(Ele é que é volúvel???)
- Não digo tanto, digo
quase infiel... isto se considerarmos que o outro participe.
Olhei para este
último, que vestia uma camisa branca e era mais claro em sua linguagem curta.
- Por que você quer falar
sobre Bete?
- Por que? Porque
Bete destruiu muitas coisas belas enquanto dizia Cassandra ali no palco. Não
posso suportar. Cassandra é mais que um personagem é algo que está em todos
nós. É uma parte do nosso caráter e em mim eu vi que Bete destruía Cassandra.
Cassandra é a mãe de todos os homens que inovam, que fazem os grandes
trabalhos, de todos os heróis. O que é o herói? Herói é o homem consciente de
sua tragédia e da inevitabilidade da sua tragédia. Pode dar-lhe este nome?
3º
Ato
O dia em que
Bete decidiu se entregar ao senhor de idade amigo do papai.
- Estava cansada de
tanta punhetada, de tanto menino e das mesmas histórias e de tantas vantagens
contadas pelos homens.
O dia em que Bete participou com vizinhos do bacanal no
apartamento de Suzana, sua coleguinha.
- O corpo e toda a
nossa dimensão. Tudo o que podemos e tudo o que nos limita.
O homem de idade
amigo do papai voltou para a Alemanha, depois que Bete ameaçou-o de contar tudo
para todos, se ele não voltasse para a Alemanha. Ela o obrigou a fugir do
escândalo. Cruel, terrivelmente cruel. Afinal, ela tinha só 14 anos. Era a sua
arma.
-
Está lá.
-
Ficará
lá.
Naquela brincadeira
quem pegou a pior foi Suzana. Grávida, dizia para o pai que esperava um filho
de deus.
- Durante muito
tempo, Suzana foi a Virgem Maria da rua do Ouro.
- Incrível, benzinho, ninguém acreditou!
- Lembra do médico
com a mãe da Suzana? Ele ouviu tudo. Sem falar, nada abriu a janela e ficou
olhando para o céu. O que foi, doutor? Ele voltou-se para as duas e disse que,
muitos séculos atrás, quando isto aconteceu, uma estrela cadente apareceu, três
reis magos se aproximaram e nasceu um deus...
“e eu não vou perder um espetáculo destes por nada deste mundo”.
Suzana pariu em um
Sanatório devido à insistência em que conceberia o filho de um deus.
- Como as coisas
mudam!
Os críticos de arte formaram uma caravana,
convidam Bete como artista, para acompanhá-los a Uberaba. Numa noite, Bete
disputou com dois homossexuais as preferências de um belo e inexperiente rapaz.
Bete venceu, claro. Usou astúcia mas os seus companheiros vingaram deixando-a
sozinha na cidade, sem dinheiro, sem roupa e sem a passagem de volta. E sem o
já experiente rapaz, que eles sequestraram.
3º Ato
Segunda Cena
De novo, estou
na primeira fila, é a décima segunda apresentação da peça, e cada dia no teatro
é uma dia especial. Hoje, ela me esmaga e me acrescenta.
Quem é Bete? Quem é Cassandra?
Na paisagem
onde o sol dissipa nevoeiros, onde uma criança rouba porque roubar é viver,
onde o namorado beija a amante e lembra da namorada, onde os cínicos sorriem
para os hipócritas, onde uma dor de barriga esvazia todo o seu ser, onde as
nuvens se consomem em óleos e meretrizes, onde na pele do homem moreno você
encontra todos os produtos químicos norte-americanos. Ah! onde havia uma grande
tristeza para felicidade geral dos hotentotes.
Seria um
momento. Precisamos de grandes remodelamentos, mudar muitas coisas (a bicha não mais emprestará seu apartamento
para Bete me amar.)
Cassandra?
Não importa. Grega ou baiana? Mineira? Polonesa?
Bete dizia
Cassandra e a imagem construída tinha seios, e Bete tinha seios. Ela era
máscula, sem medo. Sorria sem poder sorrir, antes e depois das histórias de
Bete. Bete dizia que seu pequeno apartamento era um laboratório onde ela, pela
passagem independente, podia pitar, pintar, mentir e amar, contando histórias
fantásticas.
Com doze anos
na primeira fuga de Bete (relataremos outras fugas, algumas sensacionais, pois
cinematográficas), ela deixou sua casa, deixou a escola de arte, fugiu para uma
fuga inacabável embora tenha durado treze dias em uma fazenda, aquela onde se
vê no primeiro plano uma vaca, belo desenho, sempre achei assim.
Um susto para
a tranqüila família quando Bete sentenciou que ela não queria casar. São as
novas regras e a mudança de comportamento que já se desenhava no hemisfério sul
naquele fim de década. Anos 60 do século XX.
- Quem levou alguém nesta história
fui eu, quem seduziu alguém nesta história fui eu. Se houve sedução, eu o
seduzi. Se houve estupro, eu fui a autora do estupro. Garanto que ele está
inteiro e leve. Eu o levei e eu o devolvi para sua casa.
Bete dizia isto tudo com frescor.
Lembro deste dia e da gargalhada do seu
pai. O pai de Bete era um colosso. Velho alemão com todo o mistério de um
guerreiro de Hitler em terras sulamericanas.
Quem fugiu com Bete foi o Ruivo, um pinta
covarde e mesquinho. Lembre que já falamos dele em outra apresentação da peça,
em outro dia.
Estávamos ali naquele bar, em
frente do cine Metrópole quando o Ruivo entrou e sentou perto de nós. Não
cumprimentou nem a mim nem a Bete e pediu uma cerveja. Olhou para Bete como se olhasse uma
pessoa que estivesse vendo pela primeira vez.
- Ele está condenado pela Justiça
Militar, não sei o que aconteceu, apenas sei que tira toda a cadeia em
liberdade vigiada. Liberdade vigiada? Pode-se vigiar a liberdade? Então, não
é...
Bete sempre
procurou uma maneira de censurar o Ruivo, falar mal dele. Enquanto eu pagava a
conta, ele aproximou-se e me disse que hoje o jornal trabalha causando vômitos.
Bete diz que
o absurdo faz parte da vida, que o absurdo sendo a própria vida não é tão
inquietante como se supõe.
O
dia em que Bete decidiu se entregar ao senhor de idade amigo de seu pai.
- Na verdade quem estava cansada de
tanta expectativa era eu e não agüentava mais substituir ninguém. As pessoas
necessitam de outras pessoas, base, base, base de qualquer princípio. A
experiência conta e ele era muito experiente, calmo e fazia questão de ser todo
meu, de ser um ser do outro ser.
O
dia em que Bete participou com os vizinhos do bacanal no apartamento de Suzana
- O senhor de idade amigo do pai voltou para a
Alemanha.
Bete foi o
seu diabo ameaçando-o. Por que esta mudança?
- Você um homem velho! Você um senhor
respeitável! Amigo do meu pai! Quem irá confiar mais em você! Vou contar tudo!
Agora.
/ Naquela
brincadeira quem ficou na pior foi Suzana/
- A saída de Susana foi convencer à sua
família, purulenta em beatas e beatos, que ela, Suzana, concebeu por obra e
graça do Espírito Santo e que ela estava esperando um filho de Deus, já que ela
não sabia quem era o pai.
/ Durante
muito tempo Suzana foi a Virgem Maria da rua do Ouro/
Os santos hoje,
infelizmente, estão desacreditados, ninguém mais valoriza o milagre. Suzana
pariu em um Sanatório, pois ela resolveu insistir em tudo o que dissera de
princípio.
O dia em que
Bete embarcou na caravana dos críticos de arte e foi para Uberaba.
Em uma mesma noite,
Bete disputou com dois críticos a experiência de um belo e divulgado rapaz.
Capa de revista. Cabelos cheios de óleo. Cheio de músculos. Bete venceu.
Astuta, indicava que abriria mão e enganou-os. Os seus companheiros aprontaram
pra cima dela. Vingança, vingança: Bete ficou sozinha em Uberaba, sem dinheiro,
sem roupa, pois eles a deixaram nua enquanto ela dormia e levaram até o seu belo ragazo.
Sem passagem, Bete
chegou de volta e surpreendeu a todos, entrando nua no restaurante onde os
críticos jantavam. Pediu de volta a sua roupa, imediatamente. Ou todos iriam
para a cadeia pelo furto. Por isso, os
críticos promoveram uma jantar em sua homenagem e para que ela narrasse todas
as loucas aventuras na viagem de volta como a nova Ulissisinha e a sua Odisséia.
4º
Ato
Na saída da escola
de belas artes, ali estava o Olho de Peixe Morto esperando Bete. Ela caminhava
um passo atrás. Ela dizia seus segredos. Não quero ser rica e quero ter tudo.
Minha ambição pode ser a ambição de riqueza, de ouro, de joias, de castelos,
praias e muitos outros lugares e um verão de 12 meses. Quero tudo isto como
resultado do meu trabalho em arte.
- Ah ah
ahah aha ah ahah.
4º Ato
Segunda Cena
Ela possui também um olho como um
olho morto, um olho de peixe morto ou de boi. Um olho como um talismã. Na saída
da escola de belas artes ela se deixava distrair e caminhava um pouco atrás.
Caminhávamos para o teatro e ela misturava falas dos personagens às suas falas.
- Não quero ser
rica e quero ter tudo. Minha ambição pode ser a ambição de riqueza, de ouro, de
joias, de castelos, praias e muitos outros lugares. Gosto do verão permanente
das nossas terras tropicais. A riqueza para mim é o belo. Quero, quero de tudo
o mais belo.
Belo, belo terei tudo quanto quero.
Tudo isto eu quero como resultado do meu trabalho.
Houve uma grande gargalhada espalhada durante dias pelo
quarteirão, quem não gostasse de riso era persuadido pelo guarda civil a
desviar-se.
5º
Ato
- Vou te apresentar a
minha família.
Pela primeira vez eu os
via. O pai um estrangeiro, um homem embriagado. O velho alemão (criminoso de
guerra?) era amigo de um amigo meu, o vendedor de laboratórios estrangeiros.
Segundo o vendedor, o velho bebia porque muito antes já se havia encharcado em
decepções, lá e cá.
- Um ex-oficial Nazista!
- Não, meu amigo, um
ex-militar alemão, um oficial do Exército alemão. Um homem. Apenas, um homem.
Dias depois, na porta do
Teatro Chico Nunes, passei pela mãe de Bete e “você nem a cumprimentou”
(censura correta de Bete).
Não podia
cumprimentá-la, eu não a havia reconhecido.
- Não tenho costume,
Bete, de cumprimentar quem eu não conheço.
Outras vezes vi o velho
pai de Bete, o bom velho alemão, cheio de pinga, comedor de queijo podre,
dividindo pedaços de gorgonzolas e sua cerveja e pinga.
- O senhor aceita?
Olhei bem para a cara do
velho. Será que o filha da mãe quer que eu coma aquela porcaria que vinha de
sua mão suja. Não era o queijo. Era a mão suja.
Bete fingia que não ouvia e
nem via nada.
- Não. Obrigado,
senhor Hans Magnus Etzemberg. Eu comi
agora mesmo (sua filha e um bom almoço com truta e alcaparras).
- Etzemberg é a porra!
Gritava o velho bêbado e dizia versos do seu poeta preferido.
- Experimente. Ande,
rapaz.
O velho insistia,
insistia. Seu corpo exalava álcool e queijo. Experimente, experimente,
experimente. Veja que é uma boa comida, de primeira qualidade, vem da Alsácia para
mim e para você, meu rapaz.
Experimento sim, experimento sim.
- Gostoso? Não é mesmo?
Gostoso, não? Anh! Anh! Apesar do cheiro...
- A vida, a vida, isto
resume a vida, concluía o velho e escondia dos três filhos o seu sorriso
fescenino, licencioso.
Além de cerveja e queijo,
o bom alemão sabia escolher as menininhas da rua e comi-as todas com muito
queijo. A partir dali tinha que esquecer a imagem da sua mão ou eu vomitava.
5º Ato
Segunda Cena
Mais uma vez, 18ª
apresentação da peça e os meus pensamentos mituravam-se e tudo voltava. Ao meu
lado, hoje, está o padre Frederico, o ex-padre Frederico.
No Chico, no Teatro
Chico Nunes, passei pela mãe de Bete e não cumprimentei ninguém. Semanas de
censuras. Quem você pensa que é? Ela esquecia que o seu pai, o velho
estrangeiro, não gastava cumprimento com ninguém.
- Que ninguém me
reconheça.
Ele comia queijo podre
e gostava de insinuar mistério. Quem teria sido ele, oficial alemão, na guerra?
Um chefe de campo de concentração? Oficial da inteligência alemã? Um caçado
pelos judeus do holocausto ou orgasmocausto? Como dizia o debochado Eiras.
- Aceita? Um amigo de minha filha tem que ser
meu amigo, experimente um pedaço.
Olhei bem para a cara
do velho. Será que isto não passa de uma tramóia? Ele me empurra o queijo
podre. Ele está muito enganado comigo.
Bete fazia de conta que
não acontecia nada.
- Experimente, ande,
experimente, experiência, nunca provará outra vez sabor tão bom, o braço do
estrangeiro espichava-se, sua mão exalando álcool. Mãos sujas. E ele coçava o
saco.
- Veja que é uma boa
comida.
- Experimentosia,
experimentosia...
- Gostoso? Não é mesmo?
Gostoso, não? Que grande paladar! Amigo de minha filha, que belo paladar,
paladar alemão!
- A vida, a vida...
concluía o velho e escondia dos três filhos, sentados à mesa, um sorriso
fescenino.
O velho alemão
afasta-se e o padre Frederico começa a falar.
- O senhor sabe eu
conheço muita gente aqui em Belo Horizonte, nasci e sempre morei aqui, sai muitas
vezes, Portugal, Equador, rodando por aí, um pouco fixo, um pouco solto. Eu
conheci esta pessoa sim, tivemos um caso. Um romance? Não propriamente um
romance, isto é coisa de novela, um encontro, dois, cinco, tudo esparso. Quem
não se prende a nenhum lugar, a nada, nem a ninguém, sabe que uma das melhores
coisas para se conhecer um lugar e as pessoas de um lugar, notadamente a terra
da gente, é a viagem até outras pessoas e outros locais. Nunca me apeguei às
pessoas, mais por conseqüência do meu caráter, pois sou ciumento, quase
doentio. Tenho ciúmes destes livros, são livros variados, que significam tanto
para mim tanto um Cervantes quanto um Balzac.
E ele fala sobre a
Bete, a filha, e puxando seus cigarros especiais com a dedicação e a calma
esperada em um religioso devido aos seus anos de isolamento, apesar de para mim
esta calma significar mais um temor religioso dos homens, mas ele era realmente
calmo. O padre Frederico, ex-padre, acreditou que conquistaria Bete e chegou a
programar o casamento. Um dia, ela o surpreendeu, taxativa, firme e o afastou,
em definitivo.
- Eu gosto da mesma
coisa que você gosta, padre. Eu também gosto de mulher.
-
O padre, o ex-padre,
repetiu duas, três vezes a frase. Ele não a aceitava. Bete também me dizia esta
frase pontuando-a com extraordinária força de convicção. Sem rir e séria.
-
-
6º
Ato
Bete estava carinhosa esse dia. Passamos a
tarde juntos. Quando voltei do banheiro, ela datilografara um poema de meia
lauda. É para você. Li.
Nunca gostei daquele
tipo de poesia, naquela hora, ela ainda com gosto de porra na boca. Era minha
ignorância sentimental, estética e cultural. Simplesmente, nunca havia lido
bons poemas, depois de Poe, depois de Pessoa, depois de Camões, depois de
Drumond, depois de Murilo Mendes. Os novos me assustavam, assim como me
assustou Cecília Meireles e a sua Elegia... no outono, as cigarras... que
trabalhávamos nas aulas do Teatro Universitário.
Passei a vista na metade
do papel escrito. A mesma disposição de versos, uma ou outra rima acidental. Eu
não sabia, mas nascia ali uma das nossas maiores artistas plásticas e eu só
queria me concentrar no seu corpo e em seus cheiros. Anh, esperando o amor voltar do banheiro. O
perigo é darmos às nossas filhas um quarto independente e isolado. Na parede, a
tela, um rosto.
- Quem é esse sujeito?
- Meu primo.
- Priminho tarado,
primo taradinho, primo de conversa?
- Porra, já te falei.
Ele é meu primo.
- Pera aí, Bete. Vamos
com calma. Ele afinal de contas...
- Ele gosta de mim, simplesmente porque
gosta.
- E que mais?
- Porque, simplesmente,
porque eu fui a sua primeira amante, a sua primeira mulher, a sua primeira
experiência sexual.
Bete estava irritada.
Do quadro para o nosso dia a dia, aquele rapaz moreno entrava e saía. Era o
primo.
O rapaz estava
impaciente. Tinha que esperar.
- Onde você pensa que
vai?
- Vou-me embora, Bete.
- Deixa de ser estúpido
e ciumento, fique aqui.
- Certo, há tempo para
todos. Veja como ele está! Sacanagem, pô!
- Miserável... é
verdade, há tempo para todos e para tudo. Escroto, bobo, fique!
- Tenha pena do
camarada.
- Ele é um pobre
apaixonado, humilde, sem coragem para tomar decisões, eu violentei-o, não
entendo porque ele perde todas as garotas que consegue. É meu primo, calma, eu
tenho responsabilidade sobre ele e o seu destino. Ele está perdido. Vou
ajudá-lo.
- Com a boceta? Dia
sim, dia não? Todos os dias? Uma vez por dia? Boceta é remédio? Tem prescrição?
E a minha receita?
- Três vezes por dia,
quatro. Nos finais de semana, o dia inteiro.
6º Ato
Segunda Cena
-
No teatro,
acabara de assistir à trigésima segunda encenação. Um sucesso, já reconheciam o
seu talento. Não era a artista principal. Mas Cassandra contagiava a todos. Os
seios, os seios sob a túnica transparente, com toda a luz em cima. Às vezes
percebia um certo exagero do técnico e imaginava-o masturbando.
-
-
Bete sempre foi
carinhosa. Era da sua essência. Um ser de carinho. O poema era um gesto de
carinho, mais do que uma simples poesia. Nunca gostei de poesia, um caso de
ignorância sentimental, não estética ou cultural. Não há quem não dê a menor
importância ao Louvre? Assim também há quem não gosta de poesia, como eu, por
nunca a ter frequentado no silêncio, na solidão ou em um grande espetáculo..
Simplesmente sempre, por hábito, somente lia os poemas. Eu acho que poema é
também poeta, é vida poética, é o viver do poeta, é um caso patológico de
identificação poética. Veja Fernando Pessoa, sua vida também é poesia, você não
sabe onde começa o que, se a poesia de Fernando Pessoa era poesia antes dele ou
se da poesia de Fernando Pessoa saiu Fernando Pessoa. Sua multiplicação e sua
devoradora personalidade criaria mil poetas. Era só dar-lhe tempo e nasceria
toda uma literatura completa. Com aquela
lauda de papel datilografado na mão, eu senti que ali havia disposição do verso
no acidental das rimas dentro do ritmo da paixão.
-
Lembro de Bete e do perigo de nossas
filhas possuírem um quarto independente e isolado. Esse desgarramento do filho,
caso aconteça, como deveria acontecer?
“Para todos os pais, os filhos
hoje são uns elementos sem reconhecimento pelo sacrifício dos pais, não tem
amor à família, não recompensam o sofrimento dos pais, são ingratos”.
A psiquiatra é puro verbo,
palavra, palavra. Havia um país conhecido por Gulliver onde a ingratidão era
tida como o mais grave delito que pudesse ser praticado pelo cidadão. Pois a
ingratidão não era um crime do indivíduo contra o indivíduo, mas de um
indivíduo contra todos e, por isso, a
ingratidão era condenada com a pena de morte.
Bete vivia o apodo da ingratidão.
E ela sabia não ser ingrata. O não ingrato poderia também ser penalizado? Por
que existe a gratidão e a ingratidão? Bete questionava. Aquele velho alemão que
ela fez fugir para a Alemanha, de volta, era primo carnal do pai dela. Ela deu
para ele e depois fez o diabo com o velho. O homem não podia ver a menina. Era
tomado por um verdadeiro medo, pavor. Ela perseguiu o homem. Isto, perseguiu, literalmente. Pisou e
amoldou o velho para a viagem que ela lhe impôs.
Como eu me separei de
Bete? Por causa de uma pessoa que ela dizia ser o primo. Perguntei-lhe um dia,
diante de um quadro que ela pintara.
- Quem é esse sujeito?
Este primo passou um mau
bocado, pois se apaixonou, Bete o seduziu e o dominou durante uns bons meses.
Aquilo tudo, uma mulher, era um deslumbramento para o rapaz, que nunca havia
conseguido uma garota. E ele era um chato. Era obrigado a dividir nosso tempo com
ele.
7º
Ato
A mãe de Bete nos levará
ao teatro, no seu Volks. Antes, passamos na universidade. A mulher desceu e
Bete começou uma bolinação exagerada.
- Por que estamos casados
não devemos esquecer os carinhos.
O carro voltou a descer
as ruas.
- Aceita descobrir uma
nova maneira de amar?
Porra o que Bete sabia
mais do que eu? Assustei-me. Não era possível. Era eu quem sabia mais? Gozação
daquele menina mulher de 14 anos e uma puta experiência.
- Bete você está com
ciúmes de quem?
- De Dininha.
- Esqueça, eu arranjo uma
melhor, Naninha.
- Vamos parar com isso.
- Eu quero saber de tudo
o que você anda fazendo, com quem, onde e como.
A mãe de Bete escutara uma
parte. Ela olha-me pelo retrovisor.
- Posso dizer para a senhora
que Bete é Bete, Bete não é Cassandra. São as falas da peça.
- Uma peça clássica e
diálogos modernos, muito modernos.
Respondo aos olhos que me
olham no espelho.
- Aqui, há apenas uma
adaptação do texto clássico. Um novo roteiro para uma nova peça.
7º Ato
Segunda Cena
Por que no teatro, a
relação do ator se dá a partir do talento e da certeza de que aquela história
será verdadeira? Observo que as falas ganham tom diverso a cada dia e que o
público integra a peça. É uma simbiose, algo único. Uma forma de vida, a mais
profunda reflexão sobre a vida. A peça é a mesma, mas cada dia é um
diadiferente. Nada se repete. Nada se repete.
Sou a mãe de Bete. Leciono e este carro quem comprou fui eu. A
minha filha teve a oportunidade de ser uma moça livre. Talvez esta liberdade
possibilitou-lhe se revelar como artista. Ela é uma verdadeira artista. Sou uma
mãe orgulhosa, embora cansada. O cansaço é que é pior. Além de Bete, tenho mais
dois filhos, um menino e uma menina. Concordo que Bete ainda não tenha sido uma
eficiente Cassandra. É muito difícil a gente imaginar o que seja a liberdade ou
mesmo o que seja um ser livre hoje em nosso mundo, pois para nós todo homem
pobre é um ser escravo, potencialmente escravo quando não. Quando a gente
agride para ser livre temos a impressão de que se rompe toda a relação possível
para o nascimento do ser livre. Eu gosto de Bete, não porque eu seja mãe, antes
a sua mãe, mas totalmente porque eu sou mulher.
- Olha esta turma aí
tentou me derrubar disseram que eu não passava de um gigolô, eles estão totalmente
por fora, não que eu seja contra o status gigolô, sou muito a favor, uma
mulher, quando pode, deve e é sua obrigação sustentar seu homem. Outra coisa,
eu sou pela vida boa e folgada do amante. Sou muito eu. Não obrigo, não bato,
não humilho, tudo aí ta por fora. O bom é uma mina que te agarra, que goste de
você, você dedica a ela, é gamadão, dá lições de gamação para ela espalhar para
as outras minas amigas dela, faz sua presença, mantém sua força, é todo amor e
paixão. Bete rodou na minha. Ela não me sustentou de dinheiro, ela não tinha,
ela me sustentou no ideal, eu me julgo um artista. Não sou pintor, não desenho,
não canto, não sou ator. Não faço nada disto que se convencionou chamar arte e
expor. Eu faço uma arte mais limitada a mim. Eu amo. Esta é a minha profissão,
amar. (Texto a ser decorado, repetido e repetido)
7º Ato
Terceira Cena
“Um ator, acima de tudo,
tem de ser um bom entendedor, seja por intuição ou observação, seja por
ambas, isto o coloca no mesmo nível de um médico, um padre ou um filósofo. Se
puder tirar dele mais do que apenas fé, então sinto-me afortunado e feliz...são
muitas as dimensões da arte de representar, mas nenhuma delas... é boa ou
interessante... a menos que esteja investida com a aparência ou a completa
ilusão de uma verdade. A diferença entre a verdade real e a ilusão da verdade é
o que vocês estão prestes a aprender. A lição continua até o momento da morte”.
Carta de Laurence Oliver à Joan Plowright, in Ser ator, de
Laurence Olivier, Editora Globo, 1987
Como JD eu abusei de carregar fora de mim os muros de Ávila, por
esnobismo; às vezes somos tão culpados de um assassínio, que assistimos ao
ligarmos a tv antes de dormir. Ao despertarmos, no outro dia, nada em nós nos
convence do contrário, nada nos convence da nossa inocência. Quantas vezes
deixei de ficar em um lugar por estar cansado, quantas vezes trabalhei para
acalmar-me. Falo muito porque a verdade é que esta gente não me entende, acham
que sou oportunista, que faço apenas o que me interessa, dizem isto como se em
mim apontassem um defeito, acontece que faço questão de ser oportunista, de
estar atento para as oportunidades, de não fazer senão aquilo que me interessa.
Essa gente, esses babacas estão colecionando imaginações pensam
que Bete era uma grande sacana. Nada disso. Ela não sabia de nada. Era uma
criança. Uma menina de 14 anos. Ainda uma criança. Era infantil, precisava de
alguém. Pode ser que as mulheres que procuram um gigolô se fantasiam com esta
personalidade. Bete não é Cassandra. Ela não me enganava. Para que uma mulher
seja Cassandra é necessário ser muito mais do que uma simples mulher, ela deve
perceber o quão frágil é a condição humana, quão embrutecedor é o destino
humano. Olhe par mim, muitos me vêem como um bagaço de homem. Para dizer a
verdade, eu também me vejo assim, mas tremendamente claro e lógico que não
existe bagaço humano, ou é ou não é. Tão simples, tão claro.
Lembro de Bete? Sim, eu me lembro muito bem. Ela possuía uma
maneira muito interessante de se relacionar, com a mãe. Eu conheço sua
estrutura. Um dia estávamos no volks, eu e ela atrás, e a mãe dirigindo. Bete
disse que ela nunca devia ter insistido em ser a sua mãe. Era como se ela
dissesse para a mãe dela que tinha dúvidas sobre a sua maternidade. Quem seria
a mãe de Bete? Quem seriam os pais de Bete?
8º
Ato
Era fevereiro. Eu não
tinha só Bete. Ela sabia. Bete não ficava apenas comigo. Eu sabia. Bete era
incapaz de se aproximar da minha vida. Eu estava noivo, para ela minha noiva
não significava nada. Bete trazia os jornais para avisar-me de que eu devia
fugir e não fugia. A qualquer hora, você será preso e a repressão joga duro, é
tortura e morte. Bete não tinha medo. Bete, minha noiva e eu nos encontramos no
saguão do Teatro Marília, para assistir a peça Numância, de Cervantes, uma das mais belas encenações do teatro
universal no século XX e produzida nos anos 60 em meio a maior repressão de
todos os tempos. Bete se humilhou na nossa frente. Seus olhos, entretanto, eram
exigentes. As duas conversavam. Estivemos juntos. Quando Bete se afastou, vi
que Bete era mais jovem, era mais bonita. Descontraiu-se e ficou rindo,
brincando com o pequeno Joseph. Minha noiva fechou a cara desconfiada.
- Não olhe para lá.
- Certo, não olho, mas
por que?
Ela apertou-me o braço.
- Por causa de Bete,
Bete gosta de você muito mais do que eu.
8º Ato
Segunda Cena
Há magia no teatro, há técnica. Há
magia na vida. Há técnica, conhecimento. A voz é mais do que um dom. E a palavra?
A morada do ser, diz Heidegger. A magia e o milagre. É inexplicável. Bete ergue
os seios (o técnico joga toda a luz) e o corpo também fala. Sem palavras.
Era fevereiro. Eu não tinha só Bete. Bete também não ficava apenas
comigo. Ela era incapaz de se aproximar da minha vida. Eu estava noivo, para
Bete eu devia fugir e eu não fugia. A polícia descobrira meu contrabando.
Lembro de Cassandra,
amante de Agamenon. Lembro de seus olhos destruídos entre a inteligência e a
ignorância. Você é capaz de ver, de ver mais adiante, por uma série de
injunções, e mostra àqueles que não querem ver o que há, ninguém acreditará em
você porque você não é ignorante como eles que se julgam donos do que fazem e
do destino e do viver. Todo ser humano é também uma Cassandra e o destino está
em nossas mãos.
9º
Ato
Era fevereiro. Outro rumo em minha vida. Nunca mais voltar atrás
do ponto do qual não se volta atrás. A Faculdade fechou as portas até outro
outono. Trabalhar muito, o estudo sério, persistente, colocado de lado. Foi
nessa época que desenharam Bete numa tela de cinema. Minha memória é quem
desenha. São nítidos aqueles dias, um sábado e um domingo na terceira semana de
fevereiro.
Sentei e no banco e ao meu lado sentou-se uma menina loura.
Depois, ela levantou-se e sentou num banco à minha frente. Então, percebi que
ela estava chorando. Cassandra não chora. Não há necessidade de desespero.
Depois eu veria aquela menina loura agredir, brutalmente, com palavras, um
rapaz esquelético. Eu veria, então, que até uma palavra de agradecimento esta
menina seria capaz de dizer com estupidez. Que chore! Deixe rolar o colírio.
- Como?
- Ora menina continue chorando, se você soubesse quanto és linda,
continuaria.
- Cale a boca, boçal.
- Boçal?! Boçais foram as fezes que a geraram.
- ?
- As fezes, as fezes que a geraram. Você foi cagada.
10º Ato
- Você pode me acompanhar?
-
Posso.
Bete contara uma história de um namoro
recente. O seu novo namorado fora para Ouro Preto e ela ficara em Belo
Horizonte. Por isso e mais alguma coisa, ela chorava.
Ela explica a diferença entre amor e
paixão. Era uma paixão e com tudo o que se tem direito em uma paixão. Eu a
ouvia atentamente enquanto ela se enxugava saindo do chuveiro.
- Na tv tem telefone, de lá eu telefono para
ele.
Ela conversou com o namorado Eu ao lado.
Fez papel de menininha direita que se nega às chantagens sentimentais, mesmo
desesperada.
Saímos para a avenida imensa, vazia na
madrugada. Ela pegaria o primeiro ônibus para Ouro Preto e enfrentaria aquele
frio que nos forçava a abraçarmos e a nos esquentarmos com os nossos corpos.
Segundo Bete, a paixão é um dom do corpo, é
pura atração. É o amor louco, é o amor de Carmem, a cigana. É um amor bruxo,
perigoso. Ela está muito quente e úmida. Ficara quase meia hora na ducha quente
e agora ali na avenida, o calor acumulado começava a me atingir. Voltamos para
o apartamento e, na outra noite, ela me ligou de Ouro Preto. Estava feliz,
muito feliz, apaixonada. Ela não cansava de amar.
11º Ato
As pessoas perdem a personalidade e
adquirem outra com facilidade e rapidez incrível. Existem pessoas que chegam a
esquecer quem eram antes. Esquecem como se comportavam. Seus gestos de ontem
podem até ser os mesmos gestos de hoje, mas ele é outro.
Num ambiente perigoso, com as personalidades e caracteres em
intensa volubilidade, em permanente mutação, não há nenhuma tabuleta de aviso
do perigo iminente. Nada nenhuma tabuleta de aviso.
Atenção
Perigo - Homem Com Novo Caráter
Atenção
Personalidade em Mutação
Cuidado
Incêndio - Homens a Procura de Valores
Cuidado -
Simplesmente Cuidado - Homens
- Você, já observou como esses caras são capazes de metamorfoses
extremas?
- Eles criam uma barreira ao teatro. O
teatro possibilita ao homem a compreensão da formação da personalidade, permite
a extração da máscara.
Bete acordou cedo, correu pela cidade, passou no alfaiate, trouxe
este terno para mim. Minha noiva decerto vai perguntar o preço do terno.
Quanto?
- Alguns reais. Eu achei
bonito, vista. Ele parecia tanto com você.
Chegara antes de eu me levantar, já decorara três falas da peça,
esquentara o café. Depois Bete tirou a roupa, tomou um banho, enrolou-se em
meus braços.
-
Procedes como se fosses Cassandra, uma Cassandra digerida para levantar ombros,
olhar para o teto, desafiando as telhas, queres falar, por acaso, com as vigas?
Ou colocaram um espelho lá em cima? Não existe esta solenidade que se supõe no
teatro grego.
- Quem disse isto?
- Pantoneone. Ora, bolas, Sófocles.
- Cassandra é o desafio dos sábios, é o
desafio da sabedoria. A tragédia de Cassandra não está apenas em saber o futuro
e estar condenada a ser ignorada. Está em todos nós...
- ...está na essência do ser, que em sua integridade é e sabe.
Pergunto em que fala está. Ela olha-me. Fica calada.
- Eu serei Bete e serei Cassandra.
12º Ato
O namorado voltou de Ouro Preto e telefonou.
- Diga o que eu devo responder.
- Mande ele à merda.
- Não.
- Deixe-me em paz.
Bete continuou falando no telefone mesmo
depois do cara ter desligado, falava para o telefone o que ela queria que eu
ouvisse.
- Terminou com o cara?
- Terminei.
- E agora?
- Tudo acabou. Paixão é assim, acaba muito
rápido, muito mais rápido do que possamos imaginar.
- Não concordo. A paixão é uma evolução do
amor, é o amor crescendo, é a consistência do dia a dia.
Ela
deu de ombros.
-
Acabou com o frio de Ouro Preto. Como o frio.
13º
Ato
Nesse dia, Bete esqueceu que vivíamos há muito tempo e que antes
dela eu já existia. Curtiu uma onda de virgem abatida. Diana nua no deserto.
- O que esse sujeito pensa de mim?
- Nada de esquentar a cabeça, minha filha.
Bete queria respeito ao seu direito de amar.
Ainda estava recuperando as imagens de uma verdadeira paixão.
14º
Ato
- Escolha uma cena para filmarmos.
Uma moça entra no ônibus, finge que não reconhece o amante, pára
na sua frente, flerta com um passageiro e segue em frente.
- Cena difícil. Por que o ônibus?
- Dêem-me a máquina, sai de cima de Joseph, Bete.
Entre o teatro e a televisão, Bete
revelava suas exigências. Queria interpretar seu personagem e chegar até onde
fosse possível o entendimento de um ser.
15º Ato
O
mundo de Bete: Belo Horizonte, os barzinhos, os apartamentos, as escolas, a
nossa cama.
Seu dia preenchia apenas dois pontos,
de manhã, a escola de belas artes e, de noite, o teatro. Restavam a madrugada e
a tarde, de todos nós.
16º Ato
Estas anotações
precipitadas, arrastadas entre correrias, sem tempo, com pressa, por que?
- Ora uma desculpa para o erro
.
- Deixa passar.
Bete cronometrava o prazer, primeiro seis minutos, ainda dentro,
segundo, vinte e cinco minutos.
Bete escrevi para você desde o nosso encontro, pena termos
atrapalhado os amores daqueles dois, boas pessoas, terminaram nos cedendo o
apartamento. Enganei-me ao pensar que você veio para ser o personagem do
romance. As anotações de uma amante são poemas. Estes estão separados.
Para Bete, as anotações de
um amante, não é excelente o título? Vivemos, Bete uma vida forte, corajosa
e livre, creio que merecemos algo. Você adquiriu a liberdade de desamar?
Disseram-me que você rasgou o caderno com os nomes dos amantes. Aquele caderno
de capa preta. Em seus dezesseis anos, seus dedos correram com o mesmo carinho
as teclas do piano, as telas dos seus quadros, os gestos de Cassandra, o corpo dos
amantes.
Vieram na cadeia me
dizer da sua angústia de não ter ninguém. Quantas vezes eu te deixei na cama
para ir encontrar-me com a noiva? Quantas vezes fui estúpido? Sei que foram as
tardes de domingo que te sufocaram de angústia. Nunca estive por perto quando
esperavas a madrugada para viver.
- Quando você for escrever a história de Bete,
nos últimos dias que antecederam à sua morte, não esqueça de citar os choques
violentos de Bete com as personagens do teatro grego. A destruição constante e
violenta, total de Bete após cada baque.
- Ontem, ela passou na casa de
Suzana, vestia uma calça comprida apertada e uma camisa verde. À noite saiu com
o blusão verde do bichinha. Depois que tocou no piano uma música composta por
ela, Bete leu o texto de Antígone, sempre a voz autoritária, o busto surge
novamente para ser uma personagem grega, força, força. Os mamilos não mais
reagem, viciaram-se aos carinhos. Nada daquela contração que os peitos da minha
noiva denunciavam ao menor toque dos meus lábios. Bete é a maior amiga dos seus
amigos. Hem? Pois é. Outra fuga. Mas ainda é menor. Sua localização na casa de
pilotis. O sigilo na devolução, a proteção do nome da família, dois mil em
pagamento extras aos senhores policiais. Bete fora mais uma vez encontrada em
Uberlândia. Rotina de fuga.
17º Ato
As lágrimas dos seus quadros. Os quadros amontoados de lágrimas. A
função das lágrimas, os rostos das mulheres, as lágrimas resumidas, não
contidas, apanhadas ao deixarem a face e os pescoços finos e enormes. Ela
domina a técnica de desenhar lágrimas. Eu e Bete discutimos durante muito tempo
na porta do reservado das mulheres, ela tentou fugir entrando no reservado, fui
atrás, eram duas horas da madrugada. Pedi a Bete que não me traísse aquela
noite e acabei dando-lhe uma bofetada.
- Vá putinha, mas desapareça da minha frente, se novamente eu te
ver, te darei uma surra inesquecível. Vá cercar a dondoca Joseph.
Ela foi. No fim da noite, Bete estava deitada na minha sala.
- Veio para tomar a inesquecível?
- Não, aquela sem vergonha foi dormir com o seu xodó, um sujo.
- Então que fizeste depois?
- Procurei seu melhor amigo para te trair.
- Anh! Anh! E aí?
- Traí, uai!
- Que mais?
- Ainda quer saber mais?
- Bete, eu estou com sono, me acorda amanhã as dez horas que tenho
que trabalhar, se você quiser a inesquecível antes me acorda faltando 15 para
as dez. Boa noite.
- Boa noite. A Distinta, a Perseguida, hoje, foi maravilhosa. Hoje,
ela foi a Fabulosa.
Seu calor preenchia um grande vazio e ela
sabia ser doce ao deitar.
18º Ato
- Eu soube da sujeira que Bete fez com você,
meu velho. Eu te aconselho a deixá-la.
- Eu não tenho nada com a Bete.
Geraldão, o homem do rádio, me olhou
assustado.
- Todos vocês são assim, tem uma para a cama
e outra direitinha na reserva. A direitinha sempre, um dia, dá o troco. Somos
todos uns grandes babacas, seríamos inviáveis se não fosse o profeta Nelson
Rodrigues, que nos legitima a seriedade do casamento e da putaria.
Assim, como Geraldão, as pessoas, em volta, analisavam-nos
como peças ensandecidas, uns loucos do sexo e do amor, seres que antecipavam
seus destinos intricados e que jamais seriam revelados e compreendidos. Como
era possível viver assim? Vocês são loucos.
- Eu apenas amo um homem! É ruim?
Bete ri e pede para parar o carro. Ela quer
rir. Por que Cassandra não se calava e porque ela não mentia? E se ela
mentisse, os homens acreditariam em suas profecias?
19º Ato
- Naquela noite você saiu, Bete, com um inimigo.
- Quer dizer que vocês não são amigos.
- Somos amigos e inimigos. Ele é um bom
companheiro, mas é um reacionário, ele veio para o Brasil fugindo da guerra,
para aqui se tornar num defensor da CIA, é um safado, saiu da sua pátria por
princípios para fora do seu país se sujar com deficiência de honras.
Atenção!
Cena. Já.
Bete e um outro ator descem a avenida para o centro. Na montagem,
Kleber vai colocar a cena em que eu também sigo para o mesmo lugar, vindo de
outra parte da cidade.
Bete passou dois meses desaparecida,
antes de falar-nos ela andou me espionando.
- Tive medo de que você já tivesse
casado. Vi você sozinho muitas vezes, sozinho e de cabeça baixa. Fiquei
arrependida e não te trai mais.
- Cabeça baixa? Era o peso do chifre.
Bete folheou uma revista, leu, jogou a
revista no chão, se eu continuar o que sou, eu me suicido.
Bete já foi noiva duas
vezes, seus noivos foram bastante íntimos e puros. Eles sofreram com a
separação. Os seus dias tiveram grandes vazios. Não há nada, não há ninguém na
vida de Bete. Ela olha-me e seus olhos verdes adquirem brilho e mais verde.
- Eu fico sempre comigo, acabo sempre
comigo mesmo, eu sou interessante. Eis eu, Bete, a Bete. O velho papai de Bete
passa com o corpo dobrado pelo quintal, muito alcoolizado e carinhoso com as
plantas.
- Deixa-me não te abandonar,
benzinho, eu te permito casar com sua noiva.
- Aceita?
A mãe de Bete é uma mulher que está
lecionando a todo momento. Ouve a conversa, um pedaço da conversa e se introduz
perguntando o que é a felicidade. Vocês são felizes. Ela afirma categórica.
Depois pergunta, pergunta mais uma vez e diz que a felicidade é ser capaz da
vida plena, de todos os desafios, de toda a intensidade e que nós éramos
pessoas felizes e que nada nos perturbaria.
O pai da Bete, o velho alemão (seria
criminoso de guerra, mesmo?) colheu uma rosa vermelha em seu jardim. A luz do
sol atravessa as pétalas e o vermelho espalha-se mais líquido, mais
transparente.
- As rosas são felizes sempre.
Ele é um moleque, um velho debochado e
lascivo.
20º Ato
- Sorri, a vida é sempre alegre, por que você não sorri?
Bete deposita os gestos infantis na biblioteca. Bete me convida.
Vamos.
Eis Bete nua, eis a
cama.
Atenção!
Câmera número 3!
Atenção microfone.
Luzes.
Atenção!
Ação.
Seu apartamento está cheio de telas,
tintas e papéis espalhados por todos os lados. Onde está o texto. Procuro
minhas falas e encontro fotos de Hans Magnus na guerra. Lá está o criminoso de
guerra. Ela acorda.
- É o meu pai. Foi condecorado como herói
de guerra!
- Quem condecorou?
- O Exército alemão!
- Não vale. Em exército derrotado não
existem heróis de guerra.
- Deixe de ser babaca, otário.
- São as regras, as leis dos homens e dos
novos napoleões. É a lei do cinema, do teatro e do romance. Mesmo que os heróis
modernos nos cause asco eles são os vitoriosos.
- Meu pai era um militar bonito, uma bela
farda e um belo homem.
- Um belo homem!
21º Ato
- (Bete) Não importo, vá para a cama com
ela. Será só meia hora, não precisa ficar mais. Se ultrapassar este máximo é
porque você não me quer e quer me deixar. Eu sei que depois e sempre (Bete
ergue os elementos gregos) você estará aqui.
Ela aponta para a cama-praticável. Bete
não se referia a minha noiva.
- Ela não existe.
- Nem deves falar o nome dela, para que?
Ela é minha noiva e é melhor que qualquer um de nós.
- (Bete) Pode ser que não, mas tenho
certeza que depois de nossos dias de hoje, vamos nos amar através de nossas
vidas.
- Conversa, Betoca. Isto é noite mal
dormida, pesadelos.
Bete não era uma pessoa vulgar. A
vulgaridade seria bem capaz de ser uma insistência dela, um gesto, uma atitude,
um papel, algo que intencionalmente ela estivesse interpretando para provocar
uma reação. Afinal, éramos atores. Quando sentimos que uma pessoa que amamos se
torna vulgar é que o amor acaba ou então é porque estamos começando a
desmistificar o amor. Acontecia que eu não mais acreditava em Bete como
personagem. Ela era maior e ali em seu apartamento ateliê dias e dias, ela
diante do quadro e eu diante deles dois, imaginava o que era a criação e o
artista. Ao pintar, em que mundo ela entrava, em que lugar tão distante ela ia
e como conseguia trazer para a tela e o plano uma floresta, uma casa, um rosto,
uma perna, o movimento? A criação me aturdia e para mim era quase inexplicável.
Um ato divino. Se assim o fosse, este era o momento em que o homem se
aproximava de tudo e do nada. Seria o momento em que de outra forma
Wittingenstein buscava no heroísmo, o guerreiro?
- Nada velho, não é nada disso, Bete é
diferente de todas essas mocinhas e pilantras por aí.
- As
pilantras levam dez, vinte por semana para a cama e Bete derruba 10 em três
dias, as mocinhas cultivam dez por noite.
- Véio, Bete é uma excelente mulher à toa.
Bete penetrava na noite de seus amigos, os
artistas, os projetos de artistas, os artistas projetados que explodiram fora
de suas áreas programadas, os grandes livros para se falar, os versos únicos e
decorados e adulterados, os donos da filosofia de hoje, conhecimentos profundos
interpretados por dedos em riste, artistas em busca do seu autor, do seu
editor, artistas nas mais masculina noite-feminina sem sexo e de homossexuais,
lésbicas, dos tarados, de jovens em aventura, de porras loucas aragoneses na
heteromasturbação de copos e garrafas.
Bete deitou sua cabeça loura em meus ombros e,
antes que a noite acabasse, ela foi, mais uma vez, como sempre, carinhosa.
Todas as verdadeiras mulheres sabem a força do carinho.
22º
Ato
Bete ensaia a peça de Dudu, “O Universo dos Anjos”. Ela interpreta
a mulher domadora. Mesmo no ensaio, há mais de vinte pessoas na plateia. O
ensaio e a construção de uma personagem devora nossas almas e nosso aprendizado
daquilo que jamais seríamos, bons atores.
- (Fala de Bete) Nunca, nunca, nunca, por dinheiro nunca.
- (Antenor, o ator) E assim as profissionais
sofreram tão séria concorrência que, pela primeira vez, na história das
profissões, as amadoras suplantaram as profissionais.
Observo nossos colegas, éramos muito
jovens. Não haveria futuro, mas o que nos importava isto. Nada nos importava.
Nem mesmo o que acontecia na sala ao lado, onde homens, mulheres e crianças,
velhos e velhas eram torturados e mortos.
23º Ato
Nas muitas histórias de Bete cada tom corre
de acordo com o porre e a porra.
- Ele me convidou para conhecer uma obra
rara de Anchieta, fariam a leitura de Os
feitos de Men de Sá. Ele falava de santos e de coisas sacras e
sacaneávamos. Ele queria apenas me ver nua, não fique com essa cara senão paro
de contar, ele queria pegar em mim, dizia-me que eu era mulher deusa, mulher
divina. O velho chorou e disse que me queria conspurcar, sim, conspurcar.
- Cons
pur car?
-
Sim conspurcar, sujar, emporcalhar, enlamear e mais coisas afins. Ele disse que
suas mãos não podiam conspurcar meu corpo tão lindo, tão novo, tão puro. Tudo
isso com aquele maluco do Santo Anchieta, o santo carrasco, no meio e um texto
perfeito. No fim de tudo, um corpo de mulher.
-
Tão, tão, tão, bão, bão, bão ah ah ah ah ah ah ah ah ah ah.
-
Basta, meu velho idiota.
-
E o epílogo?
-
O velho pediu-me para ler um trecho de dois quilômetros da pastoral de Hermes.
-
Vestida ou de estátua grega.
-
Nua, lógico, de estátua grega. No terceiro parágrafo eu estava com medo do
décimo parágrafo, o homem danou a chorar e chorando me chupou.
-
Como ele é escultor e poeta não usará a sua linguagem de falas, em
alexandrinos, ele dirá que penetrou insaciável no caminho da pureza e da vida
fecundante e maravilhosa, no fim dedicará seu poema à uma virgem imaginária de
Babilônia ou de Corinto.
24º Ato
Sua angústia - se existe - é física também.
Bete diz que a angústia corrói o seu corpo,
seu estômago. Um porre atrás do outro, Bete! Bete!
- Você está com fome e sede.
- Leite de magnésia, por favor.
- Não tem.
- Pelo menos, consiga um efervescente.
- Não estou de porre, porra nenhuma! Nada
disso. É angústia mesmo, sou uma mulher sem ninguém, imoral, amoral, imoral,
exmoral, extramoral, semmoral, bimoral. Sou puta e não sou, menina de boa
família, pequena burguesa, cem por cento boa gente, esses sujeitos todos que
estão aí, gulosos como animais de zôo, sem amor, só querem é balangar em cima
de mim. Que excelentes! Que companheiros! Depois sentem dificuldades em falar
pelo telefone, as amigas não são mais amigas, são famintas, e eu? E eu! Bah!
Não sei o que sou, agora sou uma dor no estômago. Esta dor. Tenho vergonha de
mim. Quando deixo o palco, parece que é de bom agouro ser feliz debruçado no
balcão de um bar, incrível, inacreditável, Fantástico Dr No, parece que
absorvemos o que nos destrói. Não, não são as pílulas, um dia ainda mato
alguém, destruirei fisicamente uma pessoa, humilharei alguém, verei alguém
inferiorizado em relação a mim e submissa, lá em baixo, eu cá em cima. Agrego
em minha alma a alma dos torturadores. Serei uma torturadora e não uma vítima.
- Do alto de seus seios veja este sujeito,
veja como corre de uma mesa para outra, em todas deixa qualquer coisa bebível,
como corre o infeliz, um robô faria melhor, este corredor tem uma carga que não
sabe usar, mas eu também não sei utilizar o peso que trago na cuca.
- Destrua o peso, carregue a cuca de
frustrações, cachaça, uísque, bolinha, juanitas, venham a nós, duas, uma
disritmia cerebral por semana, depois o branco, depois o fim e no fim as
carpideiras, tão nova, tão boa, tanto talento, música, pintura, teatro, lembra
de Cassandra? Quero a fuga e não tenho pernas para andar. Vocês não entenderam
Uberaba. Vou consertar minha vida.
25º Ato
Ela
começou a trabalhar, agente publicitária de uma revista norte-americana e
colaborava com contatos para uma firma importadora.
- Quem?
- Steves, o gringo.
- Como é?
- É negócio, foda é foda, negócios são
negócios.
- Deixe essa merda, Bete.
- Ciúmes ou responsabilidade?
- Responsabilidade.
- É o americano?
- Steves! Que se e te foda.
- Calma, não fique nervoso, vamos acabar com
o chope e vamos para casa.
Na rua, ela rasgou a papelada do emprego,
revistas, propaganda da importadora.
- Não volto lá mais.
26º Ato
Era uma época de raiva e paixão. Eu gostava daquela louca e
mentirosa. Sentia a sua autenticidade em tudo o que ela fazia ou mentia. Se ela
mentia, havia necessidade. Justificava. Todos temos necessidade de mentir e
queremos mentir. Entre nós, ninguém se envergonha ou considera a mentira uma
fraqueza ou vício de caráter, nada disso.
Eu e Bete nunca podíamos dar certo. As nossas brigas eram as
maiores mentiras que pregávamos um ao outro. Nossas batalhas maiores transcorriam
em silêncio. Em certas horas sabíamos que era impossível encarar as nossas
caretas caricatas. Quantas vezes cruzávamos as ruas sem nos reconhecermos?
- Bete sinto que você vai perder. Eu
queria que você ganhasse.
- Perder? Ganhar?
- Os
quarenta anos...
27º Ato
A luta existia. Não sabíamos onde, temos certeza que existe. Dela,
a gente participa de uma forma ou de outra. Talvez não sejamos mais do que
cadáveres em decomposição – decomposição abrandada pelos desodorantes
metafísicos. Era 1968.
2a
parte
Os elementos
Por perder ser muito fácil, há pessoas que se perdem em qualquer
situação. Algumas necessitam de uma cidade grande. Outras ao fazerem as contas
dos lucros, outras ao adquirirem um papel. E perda da personalidade e a
aquisição de outra se processa com tal rapidez que a estrutura do ser supõe que
uma nova personalidade se adquire por difusão. Observe os anormais como eles
são incrivelmente capazes das mais brutais metamorfoses... Os gênios também,
atores e outros. Por isso, o teatro não pode ter muitos gênios, um dois e
chega. O resto deve ser mediocridades excelentes. Bete acordou cedo, apanhou
meu terno no alfaiate, 350 duros. Fogo. É a inflação, por isso é que eu sou a
favor dos comunistas, o básico compete ao Estado. Bete agora está decorando
três falas. Eu
a considero na última faixa. Procede como se fosse Cassandra, Cassandra
digerida para levantar ombros, gritar para a última poltrona, olhar para o
teto, desafiar as telhas, onde se localizaria deus e o destino.
A mulher que for como Bete para sobreviver tem que ter várias
faces e não múltipla personalidade. Aquele filme quem fez fui eu. Tomadas
solitárias e aglomeradas de Belo Horizonte. Tomadas, tomadas da Belo Horizonte
falsificada dos barzinhos, dos apartamentos favelas, das escola, das artes e
das madrugadas. Bete cronometrava o prazer. Ela não queria que eu fizesse o
filme. Fiz por disposição, eu queria desenhar a sua imagem na tela. Eu sabia
que aquilo acabaria logo. Existem mulheres que são como poemas barrocos, você
lê, gosta, mas não decora, porque cansa. Por isso, não me assustava. Cassandra
ou Antígone, ou as lágrimas dos seus quadros, um amontoado de lágrimas.
Lágrimas contidas apanhadas ao deixarem a face e os pescoços finos
e enormes. Havia uma cena em que eu hesitei durante a montagem. Ao passá-la
tinha vontade de dizer: vida e o filme começavam. Foi tudo uma grande merda.
Há um mundo imenso aí fora, eu me limito. É a família, é o meu
nome, velho hábito mineiro, adquirido. Em nenhuma carta genealógica você
encontrará os nome dos meus ancestrais, não há laço visível, isto começou de
pouco, é como se eu tivesse decidido assim como se de repente eu me sentisse
responsável por estar vivo e por morar aqui. Responsável perante homens que são
meus antepassados aos pés destas montanhas, atrás de eras tão remotas como a
pré-história.
Quem é Bete?
Eu a conheci, posso lhe dizer. Senta bem junto de mim. Sou louca,
portanto não se incomode se eu o agarrar. A angustia é algo físico. Poucas as
pessoas sabem disso. Eu sou uma mulher sem ninguém, imoral, amoral, im-memoral,
inmoral, exmoral, extramoral, semmoral, bimoral. Sou puta e não sou, boa família,
tudo muito bom, bem freqüentado. Não gosto desta corja que vive com a bunda
colada em cadeira, gulosos como os animais do Zoo, doidos por uma pipoca e
felizes com a garotada que aparece quando vem do interior pela primeira vez.
Ninguém tem amor. Isto em relação a mim. O que eles querem é balangar em cima
de mim! Poxa e como são excelentes! Ah ah! Que batutas! Que companheiros!
Tomara que os chineses cheguem para acabar com a podridão deles. As minhas
amigas não são amigas, são famintas, todas elas querem me papar, não posso é
virar as costas nem ficar de frente. De qualquer jeito eu acabo sendo fudida.
Então, deixo, que caiam matando, que o que resta ainda é gente. Quando deixo de
representar parece ser bom agouro debruçar no balcão, a gente absorve como na
fagocitose aquilo que nos destrói. Me realizarei quando matar alguém grande,
que verei ser inferior a mim, eu decidindo sua vida, e a pessoa submissa,
morrendo, lá em baixo em seu final e eu cá em cima. Eu não sei utilizar o que
trago na cuca, meu próprio peso, minha massa molecular com cachaça, bolinha,
juanitas e disritmia, duas três disritmia por semana, depois branco, o final
das carpideiras é a gargalhada depois de enterrado o acabado. Cassandra? Não me
interesso. Meu mal é que quando atinjo a possibilidade da fuga não tenho pernas
para andar e novamente me encontro detida no cárcere.
A luta existia, não sabíamos onde,
tínhamos certeza de que existia e dela a gente participava de uma forma ou de
outra, eu lia as mensagens escritas nos muros, não podemos ser cadáveres, não
podemos abrandar a podridão com desodorantes metafísicos.
3ª parte
A metamorfose
E Uma Sexta-feira
- Ô poeta!
- Poeta é a mãe, meu nome é Dílson, dil-som.
- Dilça disso, dilça daquilo, os gregos e os
nossos tupis-guaranis, como todos os povos indígenas, davam o nome ao indivíduo
a partir de suas qualidades, Polinicis...
- Os gregos para as gregas.
- Agora, vamos e não voltemos. Você não é
poeta? Não escreve versos? Versos líricos, cheios de hipocrisia e ironia? Donde
posso te chamar de poeta.
- Não isto não. Poeta é como artista
plástico, aqui, entre nós, é frescura pura, é sair da realidade.
- Mas os seus berros são muitos, tudo
alinhado em forma e métrica. Polírico, o farto poeta lírico de Alcachombra que
escreve na cama, depois de uma conhinha, viaja de graça e metrifica com fita
métrica da costureirinha dos romances de Manoelzinho.
- Caro inimigo, não te topo por causa disso.
Você é um crítico estúpido, não entende de poesia, de música, de harmonia, a
única coisa que encaixa em sua garganta é a melodia. Você não conhece a
inspiração.
- Polírico se continuas me chamando de
melodia, eu te parto a cara.
- Não és capaz de perceber a beleza dos
versos, das imagens ofertadas pela nossa geração ao cancioneiro popular, nossa
geração trouxe milhões de símbolos, há em todos os cantos um poeta. Hoje, todo
homem é um poeta e é um poeta graças a nós todos e, principalmente, graças a
Poe, Pessoa e Drumond e tantos, tantos, que nos revelaram capazes de perceber e
de dizer, somos todos poetas. O homem é um ser poético, um ser de poesia, um
ser poiético e ético.
- Repetindo outro poeta, nossa linguagem é
fértil. Você não percebe que os meus vinte anos são superiores aos seus
cinqüenta. Como crítico aprendeste gerações, escolas, nem Guimarães Rosa
salvou-se, ao invés de nos deixar livres, nós os criadores, vocês bloqueiam-nos
com espaço, assaltam-nos com elogios, quando estamos alquebrados de palavras,
um rio sem pontes, parcos de caminho, sempre em explosões, corpos explodindo,
amontoando pequenas veredas, agora vocês querem nos fazer tragar o contrário e
se enganam, vão todos tomar no cu, seus filhos da puta. Vocês são personagens
que nos querem impor, vocês não sabem que sabemos que é através de vocês que se
consegue a passagem para dentro de um rio inútil – Dia-dor-in-rio-baldo.
- Poli, ao abandonarem a linguagem lógica
em prol da linguagem dos sentido repetiram um por um todos os erros das pessoas
ignorantes dos objetivos, quer-se prioritariamente romper com os fundamentos
não-dialéticos da linguagem; sujeito-predicado, e chafurdam-se em um raciocínio
desequilibrado, acabam com as razões para explorar a linguagem dos sentidos
quando ela é fundada em imagens e associações livres. Também um caminho, um rio
baldo.
- (George Orwell) “Um homem pode passar a
beber porque se sente um fracasso, e, então, fracassar ainda mais completamente
porque bebe. É mais ou menos o que está acontecendo com a língua inglesa. Torna-se
feia e imprecisa porque os nossos pensamentos são tolos, mas o desleixo de
nossa linguagem torna mais fácil para nós termos pensamentos tolos... se o
pensamento corrompe a linguagem, a linguagem também corrompe o pensamento...”
- Para que esses vocês? Isto é catalogação,
vamos eliminando um juízo rápido, viciado, precipitado. O raciocínio não
lógico, não é linguagem de inconsciente, engano. São as palavras que estão
sofrendo uma séria pesquisa, a pretensa linguagem inconsciente é defendida pelos
criadores patologicamente clinicáveis. Essa pesquisa é séria, as palavras estão
sendo revisadas, a linguagem examinada, o mito de cultura escrita sendo
deslocado, por isso você grita. Quantos anos perdidos?! Quantas noites mal
dormidas?! Querem negar os benefícios que deixaram aos outros, os instrumentos
estão sendo substituídos, a orientação parte de vocês, ele percebeu a carência
vocabular e nos deixou a solução alemã na criação de palavras.
- Poli o que farão em Dante?
- Os moralistas do seu naipe não percebem o
belo dos versos de Dante, preferem procurar os círculos do inferno, vocês
sentam sobre os versos e ficam mastigando tônicas e pretônicas, versos e
tercetos para depois escrever num suplemento literário. Em Dante, o inferno não
é inferno, paraíso não é paraíso, purgatório não é purgatório. Dante é um homem
honesto, ele mostra quem ele é, não busca perfeição, porque ele não ficará como
um luxurioso no inferno ou no purgatório, Gema Donati, sempre Beatriz e depois
Gertrudes ou coisa igual, o livro é simples, Dante queria voltar para Florença,
usou do recurso de um jornalista. Imagine, na mentalidade da época o que
aconteceria se Dante decidisse dar outro passeio ao inferno. Dante não é
religioso, não é místico. Dante é o primeiro escritor realista e pai de Emile
Zola. Dante utilizou as imagens e
os recursos dispostos pelos homens da época, se ele falasse em inferno os
homens entenderiam, se ele falasse em traição os homens entenderiam. A moral de
Dante não está na Divina Comédia, Shakespeare na mesma época retirou Brutos do
Círculo onde Dante o deixou.
- Poli vamos ver, eu quero entender, Dante
não era um Tartufo
- Ele viajou.
- Como?
- Preste atenção em como é bonita a Rosa no
empíreo, a rosa formada, as mulheres, os sons, as luzes, o efeito, isso tudo,
Beatriz se revelando e, a cada passo do poema, ela se torna mais bela, como um
diamante sendo revelado, em sua beleza de pedra por um artista-joalheiro, até
mesmo a beleza emudece o amante. Os sonhos e a realidade tornam-se confusos e
nem tudo é sonho.
- Poli poeta lírico, ficaste maluco. Estás
avacalhando com Dante.
- Veja sua situação, crítico que traz
debaixo dos braços o Catálogo das Posições Estéticas.
- Sai fora, bicho!
- Aqui está o meu poema. Este poema é um conto
que se metamorfoseia em uma peça de teatro e uma peça de teatro, um filme, que
é um conto.
- É a história daquela menina.
- Sim, é a história de Bete. ...É a história de Cassandra... Elas sabem o
futuro e nós não podemos acreditar nelas. É a condenação, é a praga rogada
pelos deuses de nosso Olimpo.
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..........................
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- Foi uma morte feia.
- A morte é feia.
3a
parte
Última
tentativa
“... nossos pensamentos são tolos, mas o desleixo de nossa
linguagem torna mais fácil para nós termos pensamentos tolos... se o pensamento
corrompe a linguagem, a linguagem também corrompe o pensamento...” (George
Orwell).
- A nossa linguagem é
fértil. Temos muitas condições para contar a história da nossa gente e as
histórias do povo que vive nesta região são imensas mesmo quando são destruídas
com o desaparecimento de segmentos familiares importantes. Temos que devolver
ao nosso povo a criatividade, retirá-lo do controle e do boicote a que é
submetido em seu ato de pensar e criar. O caso de Bete é característico como
contista, temos duas obras dela que ficaram conhecidas de um público que ouviu
a leitura. Se a quebra da linguagem lógica nos surpreendesse, não
conseguiríamos viver.
Lembro de Bete, de Cassandra não ouvi falar. Cassandra? Vou lhe
dar um conselho, quando Bete morreu, eu li a notícia no jornal, lembro de que
do desastre salvou uma única pessoa, não me lembro com certeza do nome dessa pessoa.
Procure o jornal do dia 15 de outubro. Cassandra! Foi uma mulher. Procure o
jornal. Possivelmente este é o nome da mulher que se salvou do desastre.
Cassandra.
Fim de Bete. Fim de Cassandra