segunda-feira, 29 de setembro de 2014

BETE CASSANDRA



Um Conto em 27 Atos e Uma Sexta-feira



Alfredo Collins




                                             1ª parte – A matéria

                                            2ª parte – Os elementos

                                            3ª parte – A metamorfose





1a parte

A matéria


“... toda criatura humana constitui profundo segredo e mistério para todas as outras”


Charles Dickens


1º Ato


Bete ergue os braços. Firma os seios. Seu corpo praticável ganha volume e presença.

Ela era Cassandra (*). Fecham as cortinas. Aplausos, aplausos.

- Bete não é volúvel.

Lembro de Bete. Loura. Traz o caderno. Um volume guardado no pequeno apartamento da rua do Ouro, em Belo Horizonte. Ali, no apartamento-porão e no caderno ela relaciona os nomes de alguns amantes, característica e desempenho.

Carlos é pretensioso.

Rui, o Eco, tudo repete.

Joaquim Piscador.

John Citador.

Cláudio, Pura Alegria.

Lembro de Bete chorando.

Seu amigo se entristece e nega-se a compor a figura de menina. Bete seios volumosos, uma fonte de complexos. Bete pernas finas. Duas fontes de complexos.

- Vou fazer plástica.

Bete lábios voluptuosos, Bete mãos carícias.

- Amar é apalpar.

- Ainda percebes as minhas mãos?

Bete sorriso, Bete criança.

- Cuidado, isto não é amor.

- Deslumbramento insaciável.

- Bete não se contenta.

- Ela é volúvel.

- Infiel.


(*) “Enamorado da jovem troiana, Cassandra, filha de Príamo, Apolo concedeu-lhe o dom da mantéia, da profecia, desde que a linda jovem se entregasse a ele. Recebido o poder de profetizar, Cassandra se negou a satisfazer-lhe os desejos. Não lhe podendo tirar o dom divinatório Apolo cuspiu-lhe na boca e tirou-lhe a credibilidade: tudo que Cassandra dizia era verídico, mas ninguém dava crédito às suas palavras”.

In Mitologia Grega, de Juanito de Souza Brandão, Editora Vozes, 1987






1º Ato

Segunda Cena

Bete e Cassandra
Ou
Quando se chega ao fim do que resta?
De A.  Alcaide
Direção de Arnould Ernandez


Quem é Bete?

            Talvez eu seja a pessoa menos indicada para responder a esta pergunta. Talvez, não. Considerando a paixão, os sentidos de uma paixão e os estragos que a paixão faz em um homem, eu deixaria de ser a pessoa indicada. Tento ser honesto. A dificuldade é grande, não que não acredite em honestidade como valor, nem como possibilidade. Nada disso. A honestidade começa agora.  Quem sabe se não seria útil mentir um pouco para que possamos jogar o jogo da verdade e o jogo da mentira e da simulação. As mentiras serão separadas, identificadas, catalogadas mesmo quando elas contenham toda a beleza das nossas vidas.

            Lembro-me agora de Bete. Ela está nítida na minha frente. Atriz precoce em Antígone, de Sófocles.

Uma menina de 14 anos e uma memória gigante. Ela ergue os braços, firma os seios. No praticável, no usual, seu corpo ganha volume e presença. Este é o momento em que ela é Cassandra.
                                                                                   
Quem é Cassandra?

             Um personagem da mitologia e do teatro grego que traga as pessoas. Nele se encontram o terror do destino, da sua verdade, da sua irreversibilidade e nele está também a coragem humana para não se submeter. Como um contraponto ao destino irreversível, a força da nossa vontade e a liberdade de todo dia, todo dia conquistada. Ali, em Cassandra, a beleza daqueles que são capazes de caminhar inexoravelmente para a morte. Em Cassandra, a consciência de si e o conhecimento de si e do outro. Cassandra, uma mulher marcada pelos deuses, seu destino seria o daqueles que são capazes de ver o futuro, mas em quem ninguém acredita. Ninguém iria acreditar em Cassandra. Ninguém nunca acreditou em Bete e ninguém jamais conseguiu enxergar sua beleza e sua magia.

“Nascemos e, apesar de não termos cometido nenhum crime, somos condenados à morte”.
Woody Allen, in Magia ao Luar



  
2º Ato


       - Por que você quer falar sobre Bete?

       - Por que? Porque Bete destruiu muitas coisas belas enquanto dizia Cassandra.

      Na paisagem, onde o sol dissipa nevoeiros, consome nuvens, na pele do homem moreno, em tudo acontecia um momento de tristeza. Seria só um momento. Tudo isto nos permitem grandes reordenamentos. Por exemplo, a bicha não mais emprestará seu apartamento para Bete amar. Temia um processo por pedofilia. Bete tem 14 anos.

       Cassandra? Não importa. Bete dizia Cassandra e a imagem construída tinha seios. Bete tinha seios. Ela era máscula, sem medo. Sorria sem poder sorrir, antes e depois das histórias de Bete (em seu pequenino laboratório, um apartamento construído pelo papai nos fundos da casa, com passagem independente, pela garagem, Bete ensaiava, pintava, mentia, amava, além de me contar histórias fantásticas).

      Com onze anos aconteceu a primeira fuga, deixou sua casa, deixou Belo Horizonte, deixou a escola de artes, fugiu para uma fuga inacabável e que durou treze dias esta primeira grande fuga inesquecível. Tudo terminou numa fazenda. E Bete não quis casar, por que?

     - O Ruivo era covarde e mesquinho.

     Estamos naquele bar, ali, em frente do cine Metrópole, o Ruivo entra, senta próximo de nós, não cumprimenta ninguém, pede uma cerveja.

    - Ele está condenado pela Justiça Militar, não sei o que aconteceu, apenas sei é que ele está tirando toda a cadeia em liberdade.

  Bete insiste em censurar o Ruivo. Bunda mole. Chorou quando disseram que ele teria que casar. Aí, vi que a fuga valeu a pena. De passagem ao pagar a conta, ele nos cumprimenta e diz que hoje o jornal trabalha causando vômitos.

  Bete diz que o absurdo faz parte da vida. O absurdo é a própria vida. O teatro é a vida. Ela diz e beija o Ruivo.





2º Ato

Segunda Cena
            
            O Teatro Francisco Nunes, construído no início do século XX, foi palco de apresentações internacionais e de grande óperas.

Bete não é volúvel.

Lembro-me de Bete. Era loura. Seu corpo tinha a maciez que minhas mãos capturavam. Ela guardava no seu pequeno apartamento da rua do Ouro aquele caderno de capa preta. O caderno está destruído no fundo do quintal. Lá, relacionados, por ordem de entrada, alguns dos amantes, homens e mulheres do destino de Bete. De novo, vamos lá, vamos conferir.

            - Carlos, pretensioso. Continua pretensioso. Ele se julga o senhor garanhão e não consegue enxergar quem está debaixo, do lado ou em cima dele. Ele se acha.

            - Rui, o eco, aquele que repete-se e é monótono. Tudo é previsível com o Rui, sempre irá tirar a calça do mesmo jeito, é organizado, tirará a camisa e a dependurará na cadeira do motel, dobrará a cueca e será só uma posição, dormir, tomar banho e um beijo de despedida. Mais nada.

             - Joaquim era pescador. Uma imensa rede armada na cidade, tudo o que caia ali ele traçava. Um dia, Joaquim apanhou uma mendiga, deu-lhe banho de mangueira e comeu. O vigia do estacionamento assistiu tudo, bateu uma senhora punheta – dez anos depois, dez anos depois, Roberto Batata, o vigia que virou motorista, contaria a história da mendiga como se tivesse acontecido com ele tão perfeita foi a punheta. Joaquim comeu o cu da mendiga e ficou cagado, fedendo por mais de 20 dias. O que não aconteceu com Roberto Batata, o vigia que virou motorista, fez uma bariátrica e suicidou enforcando-se num galho na avenida José Cândido da Silveira, na Cidade Nova.

            - John, um ditador, um cidadão de um grande país, por isso ele se sentia superior, lá existia isto e aquilo que não tínhamos aqui.

            - Cláudio, a alegria, pura e grande alegria. Era o grande companheiro de Bete, quando aparecia. A tristeza sempre chegava quando ele dizia que partiria no dia seguinte. Não era só Bete quem ficava triste, nós todos. A alegria que contagia vinha da sua simples presença. 


Lembro-me de Bete chorando. Suas lágrimas eram fartas e doces.
Seu amigo torna-se triste e não quer mais falar de Bete.
            Ele nega-se a compor a imagem de Bete, uma menina     
de seios volumosos, uma fonte de complexos      
de pernas finas, mais uma fonte de complexos      
(Vou fazer operação plástica)       
Bete lábios, sim, sim, estes sim, voluptuosos, Bete mãos carícias.     


Faço uma interferência no relato: Na minha opinião, amar é apalpar mesmo às apalpadelas.


            bete sorriso quando bete criança.

      - Cuidado isto não é amor.

             - Um deslumbramento - e o homem de muxoxos, que assim define Bete, cospe um pouco de cerveja fora do bar, na calçada.

      - Ora por que deslumbramento, meu? Por que Bete não se contenta nunca?

(Ele é que é volúvel???)

      - Não digo tanto, digo quase infiel... isto se considerarmos que o outro participe.

            Olhei para este último, que vestia uma camisa branca e era mais claro em sua linguagem curta.

 - Por que você quer falar sobre Bete?

           - Por que? Porque Bete destruiu muitas coisas belas enquanto dizia Cassandra ali no palco. Não posso suportar. Cassandra é mais que um personagem é algo que está em todos nós. É uma parte do nosso caráter e em mim eu vi que Bete destruía Cassandra. Cassandra é a mãe de todos os homens que inovam, que fazem os grandes trabalhos, de todos os heróis. O que é o herói? Herói é o homem consciente de sua tragédia e da inevitabilidade da sua tragédia. Pode dar-lhe este nome?



3º Ato

O dia em que Bete decidiu se entregar ao senhor de idade amigo do papai.

         - Estava cansada de tanta punhetada, de tanto menino e das mesmas histórias e de tantas vantagens contadas pelos homens.

O dia em que Bete participou com vizinhos do bacanal no apartamento de Suzana, sua coleguinha.

        - O corpo e toda a nossa dimensão. Tudo o que podemos e tudo o que nos limita.

        O homem de idade amigo do papai voltou para a Alemanha, depois que Bete ameaçou-o de contar tudo para todos, se ele não voltasse para a Alemanha. Ela o obrigou a fugir do escândalo. Cruel, terrivelmente cruel. Afinal, ela tinha só 14 anos. Era a sua arma.

-          Está lá.

-          Ficará lá.   

       Naquela brincadeira quem pegou a pior foi Suzana. Grávida, dizia para o pai que esperava um filho de deus.

       - Durante muito tempo, Suzana foi a Virgem Maria da rua do Ouro.

- Incrível, benzinho, ninguém acreditou!

       - Lembra do médico com a mãe da Suzana? Ele ouviu tudo. Sem falar, nada abriu a janela e ficou olhando para o céu. O que foi, doutor? Ele voltou-se para as duas e disse que, muitos séculos atrás, quando isto aconteceu, uma estrela cadente apareceu, três reis magos se aproximaram e nasceu um deus...

“e eu não vou perder um espetáculo destes por nada deste mundo”.

      Suzana pariu em um Sanatório devido à insistência em que conceberia o filho de um deus.

      - Como as coisas mudam!

     Os críticos de arte formaram uma caravana, convidam Bete como artista, para acompanhá-los a Uberaba. Numa noite, Bete disputou com dois homossexuais as preferências de um belo e inexperiente rapaz. Bete venceu, claro. Usou astúcia mas os seus companheiros vingaram deixando-a sozinha na cidade, sem dinheiro, sem roupa e sem a passagem de volta. E sem o já experiente rapaz, que eles sequestraram.



3º Ato

Segunda Cena
           

             De novo, estou na primeira fila, é a décima segunda apresentação da peça, e cada dia no teatro é uma dia especial. Hoje, ela me esmaga e me acrescenta.

Quem é Bete? Quem é Cassandra?

Na paisagem onde o sol dissipa nevoeiros, onde uma criança rouba porque roubar é viver, onde o namorado beija a amante e lembra da namorada, onde os cínicos sorriem para os hipócritas, onde uma dor de barriga esvazia todo o seu ser, onde as nuvens se consomem em óleos e meretrizes, onde na pele do homem moreno você encontra todos os produtos químicos norte-americanos. Ah! onde havia uma grande tristeza para felicidade geral dos hotentotes.

Seria um momento. Precisamos de grandes remodelamentos, mudar muitas coisas  (a bicha não mais emprestará seu apartamento para Bete me amar.)

Cassandra? Não importa. Grega ou baiana? Mineira? Polonesa?

Bete dizia Cassandra e a imagem construída tinha seios, e Bete tinha seios. Ela era máscula, sem medo. Sorria sem poder sorrir, antes e depois das histórias de Bete. Bete dizia que seu pequeno apartamento era um laboratório onde ela, pela passagem independente, podia pitar, pintar, mentir e amar, contando histórias fantásticas.

Com doze anos na primeira fuga de Bete (relataremos outras fugas, algumas sensacionais, pois cinematográficas), ela deixou sua casa, deixou a escola de arte, fugiu para uma fuga inacabável embora tenha durado treze dias em uma fazenda, aquela onde se vê no primeiro plano uma vaca, belo desenho, sempre achei assim.

Um susto para a tranqüila família quando Bete sentenciou que ela não queria casar. São as novas regras e a mudança de comportamento que já se desenhava no hemisfério sul naquele fim de década. Anos 60 do século XX.

            - Quem levou alguém nesta história fui eu, quem seduziu alguém nesta história fui eu. Se houve sedução, eu o seduzi. Se houve estupro, eu fui a autora do estupro. Garanto que ele está inteiro e leve. Eu o levei e eu o devolvi para sua casa.

             Bete dizia isto tudo com frescor.

       Lembro deste dia e da gargalhada do seu pai. O pai de Bete era um colosso. Velho alemão com todo o mistério de um guerreiro de Hitler em terras sulamericanas.

      Quem fugiu com Bete foi o Ruivo, um pinta covarde e mesquinho. Lembre que já falamos dele em outra apresentação da peça, em outro dia.

            Estávamos ali naquele bar, em frente do cine Metrópole quando o Ruivo entrou e sentou perto de nós. Não cumprimentou nem a mim nem a Bete e pediu uma cerveja.       Olhou para Bete como se olhasse uma pessoa que estivesse vendo pela primeira vez.

            - Ele está condenado pela Justiça Militar, não sei o que aconteceu, apenas sei que tira toda a cadeia em liberdade vigiada. Liberdade vigiada? Pode-se vigiar a liberdade? Então, não é...

Bete sempre procurou uma maneira de censurar o Ruivo, falar mal dele. Enquanto eu pagava a conta, ele aproximou-se e me disse que hoje o jornal trabalha causando vômitos.

Bete diz que o absurdo faz parte da vida, que o absurdo sendo a própria vida não é tão inquietante como se supõe.


O dia em que Bete decidiu se entregar ao senhor de idade amigo de seu pai.

           - Na verdade quem estava cansada de tanta expectativa era eu e não agüentava mais substituir ninguém. As pessoas necessitam de outras pessoas, base, base, base de qualquer princípio. A experiência conta e ele era muito experiente, calmo e fazia questão de ser todo meu, de ser um ser do outro ser.


O dia em que Bete participou com os vizinhos do bacanal no apartamento de Suzana

-  O senhor de idade amigo do pai voltou para a Alemanha.
Bete foi o seu diabo ameaçando-o. Por que esta mudança?
      - Você um homem velho! Você um senhor respeitável! Amigo do meu pai! Quem irá confiar mais em você! Vou contar tudo! Agora.

/ Naquela brincadeira quem ficou na pior foi Suzana/

      - A saída de Susana foi convencer à sua família, purulenta em beatas e beatos, que ela, Suzana, concebeu por obra e graça do Espírito Santo e que ela estava esperando um filho de Deus, já que ela não sabia quem era o pai.

/ Durante muito tempo Suzana foi a Virgem Maria da rua do Ouro/

      Os santos hoje, infelizmente, estão desacreditados, ninguém mais valoriza o milagre. Suzana pariu em um Sanatório, pois ela resolveu insistir em tudo o que dissera de princípio.

O dia em que Bete embarcou na caravana dos críticos de arte e foi para Uberaba.

       Em uma mesma noite, Bete disputou com dois críticos a experiência de um belo e divulgado rapaz. Capa de revista. Cabelos cheios de óleo. Cheio de músculos. Bete venceu. Astuta, indicava que abriria mão e enganou-os. Os seus companheiros aprontaram pra cima dela. Vingança, vingança: Bete ficou sozinha em Uberaba, sem dinheiro, sem roupa, pois eles a deixaram nua enquanto ela dormia e  levaram até o seu belo ragazo.

      Sem passagem, Bete chegou de volta e surpreendeu a todos, entrando nua no restaurante onde os críticos jantavam. Pediu de volta a sua roupa, imediatamente. Ou todos iriam para a cadeia pelo furto.  Por isso, os críticos promoveram uma jantar em sua homenagem e para que ela narrasse todas as loucas aventuras na viagem de volta como a nova Ulissisinha e a sua Odisséia.


  

4º Ato

         Na saída da escola de belas artes, ali estava o Olho de Peixe Morto esperando Bete. Ela caminhava um passo atrás. Ela dizia seus segredos. Não quero ser rica e quero ter tudo. Minha ambição pode ser a ambição de riqueza, de ouro, de joias, de castelos, praias e muitos outros lugares e um verão de 12 meses. Quero tudo isto como resultado do meu trabalho em arte.

         - Ah ah ahah aha ah ahah.



4º Ato

Segunda Cena


Ela possui também um olho como um olho morto, um olho de peixe morto ou de boi. Um olho como um talismã. Na saída da escola de belas artes ela se deixava distrair e caminhava um pouco atrás. Caminhávamos para o teatro e ela misturava falas dos personagens às suas falas.


           - Não quero ser rica e quero ter tudo. Minha ambição pode ser a ambição de riqueza, de ouro, de joias, de castelos, praias e muitos outros lugares. Gosto do verão permanente das nossas terras tropicais. A riqueza para mim é o belo. Quero, quero de tudo o mais belo.

Belo, belo terei tudo quanto quero.

Tudo isto eu quero como resultado do meu trabalho.

Houve uma grande gargalhada espalhada durante dias pelo quarteirão, quem não gostasse de riso era persuadido pelo guarda civil a desviar-se.



5º Ato



   - Vou te apresentar a minha família.

   Pela primeira vez eu os via. O pai um estrangeiro, um homem embriagado. O velho alemão (criminoso de guerra?) era amigo de um amigo meu, o vendedor de laboratórios estrangeiros. Segundo o vendedor, o velho bebia porque muito antes já se havia encharcado em decepções, lá e cá.

    - Um ex-oficial Nazista!

    - Não, meu amigo, um ex-militar alemão, um oficial do Exército alemão. Um homem. Apenas, um homem.

    Dias depois, na porta do Teatro Chico Nunes, passei pela mãe de Bete e “você nem a cumprimentou” (censura correta de Bete). 

    Não podia cumprimentá-la, eu não a havia reconhecido.

    - Não tenho costume, Bete, de cumprimentar quem eu não conheço.

    Outras vezes vi o velho pai de Bete, o bom velho alemão, cheio de pinga, comedor de queijo podre, dividindo pedaços de gorgonzolas e sua cerveja e pinga.

    - O senhor aceita?

    Olhei bem para a cara do velho. Será que o filha da mãe quer que eu coma aquela porcaria que vinha de sua mão suja. Não era o queijo. Era a mão suja.

  Bete fingia que não ouvia e nem via nada.

  - Não. Obrigado, senhor  Hans Magnus Etzemberg. Eu comi agora mesmo (sua filha e um bom almoço com truta e alcaparras).

  - Etzemberg é a porra! Gritava o velho bêbado e dizia versos do seu poeta preferido.

  - Experimente. Ande, rapaz.

  O velho insistia, insistia. Seu corpo exalava álcool e queijo. Experimente, experimente, experimente. Veja que é uma boa comida, de primeira qualidade, vem da Alsácia para mim e para você, meu rapaz.

  Experimento sim, experimento sim.

  - Gostoso? Não é mesmo? Gostoso, não? Anh! Anh! Apesar do cheiro...

  - A vida, a vida, isto resume a vida, concluía o velho e escondia dos três filhos o seu sorriso fescenino, licencioso.

  Além de cerveja e queijo, o bom alemão sabia escolher as menininhas da rua e comi-as todas com muito queijo. A partir dali tinha que esquecer a imagem da sua mão ou eu vomitava.





5º Ato

Segunda Cena

       Mais uma vez, 18ª apresentação da peça e os meus pensamentos mituravam-se e tudo voltava. Ao meu lado, hoje, está o padre Frederico, o ex-padre Frederico.

      No Chico, no Teatro Chico Nunes, passei pela mãe de Bete e não cumprimentei ninguém. Semanas de censuras. Quem você pensa que é? Ela esquecia que o seu pai, o velho estrangeiro, não gastava cumprimento com ninguém.

      - Que ninguém me reconheça.

      Ele comia queijo podre e gostava de insinuar mistério. Quem teria sido ele, oficial alemão, na guerra? Um chefe de campo de concentração? Oficial da inteligência alemã? Um caçado pelos judeus do holocausto ou orgasmocausto? Como dizia o debochado Eiras.

     -  Aceita? Um amigo de minha filha tem que ser meu amigo, experimente um pedaço.

     Olhei bem para a cara do velho. Será que isto não passa de uma tramóia? Ele me empurra o queijo podre. Ele está muito enganado comigo.

     Bete fazia de conta que não acontecia nada.

     - Experimente, ande, experimente, experiência, nunca provará outra vez sabor tão bom, o braço do estrangeiro espichava-se, sua mão exalando álcool. Mãos sujas. E ele coçava o saco.

     - Veja que é uma boa comida.

     - Experimentosia, experimentosia...

     - Gostoso? Não é mesmo? Gostoso, não? Que grande paladar! Amigo de minha filha, que belo paladar, paladar alemão!

     - A vida, a vida... concluía o velho e escondia dos três filhos, sentados à mesa, um sorriso fescenino.

     O velho alemão afasta-se e o padre Frederico começa a falar.

     - O senhor sabe eu conheço muita gente aqui em Belo Horizonte, nasci e sempre morei aqui, sai muitas vezes, Portugal, Equador, rodando por aí, um pouco fixo, um pouco solto. Eu conheci esta pessoa sim, tivemos um caso. Um romance? Não propriamente um romance, isto é coisa de novela, um encontro, dois, cinco, tudo esparso. Quem não se prende a nenhum lugar, a nada, nem a ninguém, sabe que uma das melhores coisas para se conhecer um lugar e as pessoas de um lugar, notadamente a terra da gente, é a viagem até outras pessoas e outros locais. Nunca me apeguei às pessoas, mais por conseqüência do meu caráter, pois sou ciumento, quase doentio. Tenho ciúmes destes livros, são livros variados, que significam tanto para mim tanto um Cervantes quanto um Balzac.

      E ele fala sobre a Bete, a filha, e puxando seus cigarros especiais com a dedicação e a calma esperada em um religioso devido aos seus anos de isolamento, apesar de para mim esta calma significar mais um temor religioso dos homens, mas ele era realmente calmo. O padre Frederico, ex-padre, acreditou que conquistaria Bete e chegou a programar o casamento. Um dia, ela o surpreendeu, taxativa, firme e o afastou, em definitivo.

     - Eu gosto da mesma coisa que você gosta, padre. Eu também gosto de mulher.

-               O padre, o ex-padre, repetiu duas, três vezes a frase. Ele não a aceitava. Bete também me dizia esta frase pontuando-a com extraordinária força de convicção. Sem rir e séria.
-           
-           


6º Ato

     Bete estava carinhosa esse dia. Passamos a tarde juntos. Quando voltei do banheiro, ela datilografara um poema de meia lauda. É para você. Li. 

     Nunca gostei daquele tipo de poesia, naquela hora, ela ainda com gosto de porra na boca. Era minha ignorância sentimental, estética e cultural. Simplesmente, nunca havia lido bons poemas, depois de Poe, depois de Pessoa, depois de Camões, depois de Drumond, depois de Murilo Mendes. Os novos me assustavam, assim como me assustou Cecília Meireles e a sua Elegia... no outono, as cigarras... que trabalhávamos nas aulas do Teatro Universitário.

    Passei a vista na metade do papel escrito. A mesma disposição de versos, uma ou outra rima acidental. Eu não sabia, mas nascia ali uma das nossas maiores artistas plásticas e eu só queria me concentrar no seu corpo e em seus cheiros.  Anh, esperando o amor voltar do banheiro. O perigo é darmos às nossas filhas um quarto independente e isolado. Na parede, a tela, um rosto.

     - Quem é esse sujeito?

     - Meu primo.

     - Priminho tarado, primo taradinho, primo de conversa?

     - Porra, já te falei. Ele é meu primo.

     - Pera aí, Bete. Vamos com calma. Ele afinal de contas...

     - Ele gosta de mim, simplesmente porque gosta.
     - E que mais?

     - Porque, simplesmente, porque eu fui a sua primeira amante, a sua primeira mulher, a sua primeira experiência sexual.

     Bete estava irritada. Do quadro para o nosso dia a dia, aquele rapaz moreno entrava e saía. Era o primo.

     O rapaz estava impaciente. Tinha que esperar.

     - Onde você pensa que vai?

     - Vou-me embora, Bete.

     - Deixa de ser estúpido e ciumento, fique aqui.

     - Certo, há tempo para todos. Veja como ele está! Sacanagem, pô!

     - Miserável... é verdade, há tempo para todos e para tudo. Escroto, bobo, fique!

     - Tenha pena do camarada.

     - Ele é um pobre apaixonado, humilde, sem coragem para tomar decisões, eu violentei-o, não entendo porque ele perde todas as garotas que consegue. É meu primo, calma, eu tenho responsabilidade sobre ele e o seu destino. Ele está perdido. Vou ajudá-lo.

     - Com a boceta? Dia sim, dia não? Todos os dias? Uma vez por dia? Boceta é remédio? Tem prescrição? E a minha receita?

     - Três vezes por dia, quatro. Nos finais de semana, o dia inteiro.





6º Ato

Segunda Cena

-                    No teatro, acabara de assistir à trigésima segunda encenação. Um sucesso, já reconheciam o seu talento. Não era a artista principal. Mas Cassandra contagiava a todos. Os seios, os seios sob a túnica transparente, com toda a luz em cima. Às vezes percebia um certo exagero do técnico e imaginava-o masturbando.
-           
-                  Bete sempre foi carinhosa. Era da sua essência. Um ser de carinho. O poema era um gesto de carinho, mais do que uma simples poesia. Nunca gostei de poesia, um caso de ignorância sentimental, não estética ou cultural. Não há quem não dê a menor importância ao Louvre? Assim também há quem não gosta de poesia, como eu, por nunca a ter frequentado no silêncio, na solidão ou em um grande espetáculo.. Simplesmente sempre, por hábito, somente lia os poemas. Eu acho que poema é também poeta, é vida poética, é o viver do poeta, é um caso patológico de identificação poética. Veja Fernando Pessoa, sua vida também é poesia, você não sabe onde começa o que, se a poesia de Fernando Pessoa era poesia antes dele ou se da poesia de Fernando Pessoa saiu Fernando Pessoa. Sua multiplicação e sua devoradora personalidade criaria mil poetas. Era só dar-lhe tempo e nasceria toda uma literatura completa.  Com aquela lauda de papel datilografado na mão, eu senti que ali havia disposição do verso no acidental das rimas dentro do ritmo da paixão.
-           
       Lembro de Bete e do perigo de nossas filhas possuírem um quarto independente e isolado. Esse desgarramento do filho, caso aconteça, como deveria acontecer?

“Para todos os pais, os filhos hoje são uns elementos sem reconhecimento pelo sacrifício dos pais, não tem amor à família, não recompensam o sofrimento dos pais, são ingratos”.

A psiquiatra é puro verbo, palavra, palavra. Havia um país conhecido por Gulliver onde a ingratidão era tida como o mais grave delito que pudesse ser praticado pelo cidadão. Pois a ingratidão não era um crime do indivíduo contra o indivíduo, mas de um indivíduo contra todos e, por isso, a ingratidão era condenada com a pena de morte. 

Bete vivia o apodo da ingratidão. E ela sabia não ser ingrata. O não ingrato poderia também ser penalizado? Por que existe a gratidão e a ingratidão? Bete questionava. Aquele velho alemão que ela fez fugir para a Alemanha, de volta, era primo carnal do pai dela. Ela deu para ele e depois fez o diabo com o velho. O homem não podia ver a menina. Era tomado por um verdadeiro medo, pavor. Ela perseguiu o homem.  Isto, perseguiu, literalmente. Pisou e amoldou o velho para a viagem que ela lhe impôs.

     Como eu me separei de Bete? Por causa de uma pessoa que ela dizia ser o primo. Perguntei-lhe um dia, diante de um quadro que ela pintara.

    - Quem é esse sujeito?

    Este primo passou um mau bocado, pois se apaixonou, Bete o seduziu e o dominou durante uns bons meses. Aquilo tudo, uma mulher, era um deslumbramento para o rapaz, que nunca havia conseguido uma garota. E ele era um chato. Era obrigado a dividir nosso tempo com ele.





7º Ato

   A mãe de Bete nos levará ao teatro, no seu Volks. Antes, passamos na universidade. A mulher desceu e Bete começou uma bolinação exagerada.

   - Por que estamos casados não devemos esquecer os carinhos.

   O carro voltou a descer as ruas.

   - Aceita descobrir uma nova maneira de amar?

   Porra o que Bete sabia mais do que eu? Assustei-me. Não era possível. Era eu quem sabia mais? Gozação daquele menina mulher de 14 anos e uma puta experiência.

   - Bete você está com ciúmes de quem?

   - De Dininha.

   - Esqueça, eu arranjo uma melhor, Naninha.
   - Vamos parar com isso.

   - Eu quero saber de tudo o que você anda fazendo, com quem, onde e como.

  A mãe de Bete escutara uma parte. Ela olha-me pelo retrovisor.

  - Posso dizer para a senhora que Bete é Bete, Bete não é Cassandra. São as falas da peça.

  - Uma peça clássica e diálogos modernos, muito modernos.

  Respondo aos olhos que me olham no espelho.

  - Aqui, há apenas uma adaptação do texto clássico. Um novo roteiro para uma nova peça.




7º Ato

Segunda Cena
     

      Por que no teatro, a relação do ator se dá a partir do talento e da certeza de que aquela história será verdadeira? Observo que as falas ganham tom diverso a cada dia e que o público integra a peça. É uma simbiose, algo único. Uma forma de vida, a mais profunda reflexão sobre a vida. A peça é a mesma, mas cada dia é um diadiferente. Nada se repete. Nada se repete.


Sou a mãe de Bete. Leciono e este carro quem comprou fui eu. A minha filha teve a oportunidade de ser uma moça livre. Talvez esta liberdade possibilitou-lhe se revelar como artista. Ela é uma verdadeira artista. Sou uma mãe orgulhosa, embora cansada. O cansaço é que é pior. Além de Bete, tenho mais dois filhos, um menino e uma menina. Concordo que Bete ainda não tenha sido uma eficiente Cassandra. É muito difícil a gente imaginar o que seja a liberdade ou mesmo o que seja um ser livre hoje em nosso mundo, pois para nós todo homem pobre é um ser escravo, potencialmente escravo quando não. Quando a gente agride para ser livre temos a impressão de que se rompe toda a relação possível para o nascimento do ser livre. Eu gosto de Bete, não porque eu seja mãe, antes a sua mãe, mas totalmente porque eu sou mulher.


      - Olha esta turma aí tentou me derrubar disseram que eu não passava de um gigolô, eles estão totalmente por fora, não que eu seja contra o status gigolô, sou muito a favor, uma mulher, quando pode, deve e é sua obrigação sustentar seu homem. Outra coisa, eu sou pela vida boa e folgada do amante. Sou muito eu. Não obrigo, não bato, não humilho, tudo aí ta por fora. O bom é uma mina que te agarra, que goste de você, você dedica a ela, é gamadão, dá lições de gamação para ela espalhar para as outras minas amigas dela, faz sua presença, mantém sua força, é todo amor e paixão. Bete rodou na minha. Ela não me sustentou de dinheiro, ela não tinha, ela me sustentou no ideal, eu me julgo um artista. Não sou pintor, não desenho, não canto, não sou ator. Não faço nada disto que se convencionou chamar arte e expor. Eu faço uma arte mais limitada a mim. Eu amo. Esta é a minha profissão, amar. (Texto a ser decorado, repetido e repetido)





7º Ato

Terceira Cena

“Um ator, acima de tudo,  tem de ser um bom entendedor, seja por intuição ou observação, seja por ambas, isto o coloca no mesmo nível de um médico, um padre ou um filósofo. Se puder tirar dele mais do que apenas fé, então sinto-me afortunado e feliz...são muitas as dimensões da arte de representar, mas nenhuma delas... é boa ou interessante... a menos que esteja investida com a aparência ou a completa ilusão de uma verdade. A diferença entre a verdade real e a ilusão da verdade é o que vocês estão prestes a aprender. A lição continua até o momento da morte”.

Carta de Laurence Oliver à Joan Plowright, in Ser ator, de Laurence Olivier, Editora Globo, 1987


Como JD eu abusei de carregar fora de mim os muros de Ávila, por esnobismo; às vezes somos tão culpados de um assassínio, que assistimos ao ligarmos a tv antes de dormir. Ao despertarmos, no outro dia, nada em nós nos convence do contrário, nada nos convence da nossa inocência. Quantas vezes deixei de ficar em um lugar por estar cansado, quantas vezes trabalhei para acalmar-me. Falo muito porque a verdade é que esta gente não me entende, acham que sou oportunista, que faço apenas o que me interessa, dizem isto como se em mim apontassem um defeito, acontece que faço questão de ser oportunista, de estar atento para as oportunidades, de não fazer senão aquilo que me interessa.

Essa gente, esses babacas estão colecionando imaginações pensam que Bete era uma grande sacana. Nada disso. Ela não sabia de nada. Era uma criança. Uma menina de 14 anos. Ainda uma criança. Era infantil, precisava de alguém. Pode ser que as mulheres que procuram um gigolô se fantasiam com esta personalidade. Bete não é Cassandra. Ela não me enganava. Para que uma mulher seja Cassandra é necessário ser muito mais do que uma simples mulher, ela deve perceber o quão frágil é a condição humana, quão embrutecedor é o destino humano. Olhe par mim, muitos me vêem como um bagaço de homem. Para dizer a verdade, eu também me vejo assim, mas tremendamente claro e lógico que não existe bagaço humano, ou é ou não é. Tão simples, tão claro.

Lembro de Bete? Sim, eu me lembro muito bem. Ela possuía uma maneira muito interessante de se relacionar, com a mãe. Eu conheço sua estrutura. Um dia estávamos no volks, eu e ela atrás, e a mãe dirigindo. Bete disse que ela nunca devia ter insistido em ser a sua mãe. Era como se ela dissesse para a mãe dela que tinha dúvidas sobre a sua maternidade. Quem seria a mãe de Bete? Quem seriam os pais de Bete?





8º Ato


       Era fevereiro. Eu não tinha só Bete. Ela sabia. Bete não ficava apenas comigo. Eu sabia. Bete era incapaz de se aproximar da minha vida. Eu estava noivo, para ela minha noiva não significava nada. Bete trazia os jornais para avisar-me de que eu devia fugir e não fugia. A qualquer hora, você será preso e a repressão joga duro, é tortura e morte. Bete não tinha medo. Bete, minha noiva e eu nos encontramos no saguão do Teatro Marília, para assistir a peça Numância, de Cervantes, uma das mais belas encenações do teatro universal no século XX e produzida nos anos 60 em meio a maior repressão de todos os tempos. Bete se humilhou na nossa frente. Seus olhos, entretanto, eram exigentes. As duas conversavam. Estivemos juntos. Quando Bete se afastou, vi que Bete era mais jovem, era mais bonita. Descontraiu-se e ficou rindo, brincando com o pequeno Joseph. Minha noiva fechou a cara desconfiada.

     - Não olhe para lá.

     - Certo, não olho, mas por que?

     Ela apertou-me o braço.

     - Por causa de Bete, Bete gosta de você muito mais do que eu.

­

8º Ato

Segunda Cena

Há magia no teatro, há técnica. Há magia na vida. Há técnica, conhecimento. A voz é mais do que um dom. E a palavra? A morada do ser, diz Heidegger. A magia e o milagre. É inexplicável. Bete ergue os seios (o técnico joga toda a luz) e o corpo também fala. Sem palavras.

Era fevereiro. Eu não tinha só Bete. Bete também não ficava apenas comigo. Ela era incapaz de se aproximar da minha vida. Eu estava noivo, para Bete eu devia fugir e eu não fugia. A polícia descobrira meu contrabando.

      Lembro de Cassandra, amante de Agamenon. Lembro de seus olhos destruídos entre a inteligência e a ignorância. Você é capaz de ver, de ver mais adiante, por uma série de injunções, e mostra àqueles que não querem ver o que há, ninguém acreditará em você porque você não é ignorante como eles que se julgam donos do que fazem e do destino e do viver. Todo ser humano é também uma Cassandra e o destino está em nossas mãos.



9º Ato


Era fevereiro. Outro rumo em minha vida. Nunca mais voltar atrás do ponto do qual não se volta atrás. A Faculdade fechou as portas até outro outono. Trabalhar muito, o estudo sério, persistente, colocado de lado. Foi nessa época que desenharam Bete numa tela de cinema. Minha memória é quem desenha. São nítidos aqueles dias, um sábado e um domingo na terceira semana de fevereiro.

Sentei e no banco e ao meu lado sentou-se uma menina loura. Depois, ela levantou-se e sentou num banco à minha frente. Então, percebi que ela estava chorando. Cassandra não chora. Não há necessidade de desespero. Depois eu veria aquela menina loura agredir, brutalmente, com palavras, um rapaz esquelético. Eu veria, então, que até uma palavra de agradecimento esta menina seria capaz de dizer com estupidez. Que chore! Deixe rolar o colírio.

- Como?

- Ora menina continue chorando, se você soubesse quanto és linda, continuaria.
- Cale a boca, boçal.

- Boçal?! Boçais foram as fezes que a geraram.

- ?

- As fezes, as fezes que a geraram. Você foi cagada.



10º Ato



    - Você pode me acompanhar?

    -  Posso.

    Bete contara uma história de um namoro recente. O seu novo namorado fora para Ouro Preto e ela ficara em Belo Horizonte. Por isso e mais alguma coisa, ela chorava.

    Ela explica a diferença entre amor e paixão. Era uma paixão e com tudo o que se tem direito em uma paixão. Eu a ouvia atentamente enquanto ela se enxugava saindo do chuveiro.

     -  Na tv tem telefone, de lá eu telefono para ele.

    Ela conversou com o namorado Eu ao lado. Fez papel de menininha direita que se nega às chantagens sentimentais, mesmo desesperada. 

    Saímos para a avenida imensa, vazia na madrugada. Ela pegaria o primeiro ônibus para Ouro Preto e enfrentaria aquele frio que nos forçava a abraçarmos e a nos esquentarmos com os nossos corpos.

   Segundo Bete, a paixão é um dom do corpo, é pura atração. É o amor louco, é o amor de Carmem, a cigana. É um amor bruxo, perigoso. Ela está muito quente e úmida. Ficara quase meia hora na ducha quente e agora ali na avenida, o calor acumulado começava a me atingir. Voltamos para o apartamento e, na outra noite, ela me ligou de Ouro Preto. Estava feliz, muito feliz, apaixonada. Ela não cansava de amar.


11º Ato


      As pessoas perdem a personalidade e adquirem outra com facilidade e rapidez incrível. Existem pessoas que chegam a esquecer quem eram antes. Esquecem como se comportavam. Seus gestos de ontem podem até ser os mesmos gestos de hoje, mas ele é outro.
Num ambiente perigoso, com as personalidades e caracteres em intensa volubilidade, em permanente mutação, não há nenhuma tabuleta de aviso do perigo iminente. Nada nenhuma tabuleta de aviso.                          

Atenção Perigo - Homem Com Novo Caráter 

Atenção Personalidade em Mutação

Cuidado Incêndio - Homens a Procura de Valores

Cuidado - Simplesmente Cuidado - Homens

- Você, já observou como esses caras são capazes de metamorfoses extremas?

     - Eles criam uma barreira ao teatro. O teatro possibilita ao homem a compreensão da formação da personalidade, permite a extração da máscara.

Bete acordou cedo, correu pela cidade, passou no alfaiate, trouxe este terno para mim. Minha noiva decerto vai perguntar o preço do terno. Quanto?

-  Alguns reais. Eu achei bonito, vista. Ele parecia tanto com você.

Chegara antes de eu me levantar, já decorara três falas da peça, esquentara o café. Depois Bete tirou a roupa, tomou um banho, enrolou-se em meus braços.

      - Procedes como se fosses Cassandra, uma Cassandra digerida para levantar ombros, olhar para o teto, desafiando as telhas, queres falar, por acaso, com as vigas? Ou colocaram um espelho lá em cima? Não existe esta solenidade que se supõe no teatro grego.

 - Quem disse isto?

- Pantoneone. Ora, bolas, Sófocles.

      - Cassandra é o desafio dos sábios, é o desafio da sabedoria. A tragédia de Cassandra não está apenas em saber o futuro e estar condenada a ser ignorada. Está em todos nós...

- ...está na essência do ser, que em sua integridade é e sabe.

Pergunto em que fala está. Ela olha-me. Fica calada.

       - Eu serei Bete e serei Cassandra.



12º Ato


  O namorado voltou de Ouro Preto e telefonou.

- Diga o que eu devo responder.

- Mande ele à merda.

- Não.

- Deixe-me em paz.

       Bete continuou falando no telefone mesmo depois do cara ter desligado, falava para o telefone o que ela queria que eu ouvisse.

- Terminou com o cara?

- Terminei.

- E agora?

     - Tudo acabou. Paixão é assim, acaba muito rápido, muito mais rápido do que possamos imaginar.

     - Não concordo. A paixão é uma evolução do amor, é o amor crescendo, é a consistência do dia a dia.

Ela deu de ombros.

- Acabou com o frio de Ouro Preto. Como o frio.



13º Ato



Nesse dia, Bete esqueceu que vivíamos há muito tempo e que antes dela eu já existia. Curtiu uma onda de virgem abatida. Diana nua no deserto.

- O que esse sujeito pensa de mim?

- Nada de esquentar a cabeça, minha filha.

Bete queria respeito ao seu direito de amar.

Ainda estava recuperando as imagens de uma verdadeira paixão.



14º Ato


- Escolha uma cena para filmarmos.

Uma moça entra no ônibus, finge que não reconhece o amante, pára na sua frente, flerta com um passageiro e segue em frente.

- Cena difícil. Por que o ônibus?

- Dêem-me a máquina, sai de cima de Joseph, Bete.

     Entre o teatro e a televisão, Bete revelava suas exigências. Queria interpretar seu personagem e chegar até onde fosse possível o entendimento de um ser.



15º Ato


            O mundo de Bete: Belo Horizonte, os barzinhos, os apartamentos, as escolas, a nossa cama.

         Seu dia preenchia apenas dois pontos, de manhã, a escola de belas artes e, de noite, o teatro. Restavam a madrugada e a tarde, de todos nós.




16º Ato


   Estas anotações precipitadas, arrastadas entre correrias, sem tempo, com pressa, por que?

- Ora uma desculpa para o erro
.
- Deixa passar.

Bete cronometrava o prazer, primeiro seis minutos, ainda dentro, segundo, vinte e cinco minutos.

Bete escrevi para você desde o nosso encontro, pena termos atrapalhado os amores daqueles dois, boas pessoas, terminaram nos cedendo o apartamento. Enganei-me ao pensar que você veio para ser o personagem do romance. As anotações de uma amante são poemas. Estes estão separados.

Para Bete, as anotações de um amante, não é excelente o título? Vivemos, Bete uma vida forte, corajosa e livre, creio que merecemos algo. Você adquiriu a liberdade de desamar? Disseram-me que você rasgou o caderno com os nomes dos amantes. Aquele caderno de capa preta. Em seus dezesseis anos, seus dedos correram com o mesmo carinho as teclas do piano, as telas dos seus quadros, os gestos de Cassandra, o corpo dos amantes.

         Vieram na cadeia me dizer da sua angústia de não ter ninguém. Quantas vezes eu te deixei na cama para ir encontrar-me com a noiva? Quantas vezes fui estúpido? Sei que foram as tardes de domingo que te sufocaram de angústia. Nunca estive por perto quando esperavas a madrugada para viver.

        


            - Quando você for escrever a história de Bete, nos últimos dias que antecederam à sua morte, não esqueça de citar os choques violentos de Bete com as personagens do teatro grego. A destruição constante e violenta, total de Bete após cada baque.

           - Ontem, ela passou na casa de Suzana, vestia uma calça comprida apertada e uma camisa verde. À noite saiu com o blusão verde do bichinha. Depois que tocou no piano uma música composta por ela, Bete leu o texto de Antígone, sempre a voz autoritária, o busto surge novamente para ser uma personagem grega, força, força. Os mamilos não mais reagem, viciaram-se aos carinhos. Nada daquela contração que os peitos da minha noiva denunciavam ao menor toque dos meus lábios. Bete é a maior amiga dos seus amigos. Hem? Pois é. Outra fuga. Mas ainda é menor. Sua localização na casa de pilotis. O sigilo na devolução, a proteção do nome da família, dois mil em pagamento extras aos senhores policiais. Bete fora mais uma vez encontrada em Uberlândia. Rotina de fuga.






17º Ato

As lágrimas dos seus quadros. Os quadros amontoados de lágrimas. A função das lágrimas, os rostos das mulheres, as lágrimas resumidas, não contidas, apanhadas ao deixarem a face e os pescoços finos e enormes. Ela domina a técnica de desenhar lágrimas. Eu e Bete discutimos durante muito tempo na porta do reservado das mulheres, ela tentou fugir entrando no reservado, fui atrás, eram duas horas da madrugada. Pedi a Bete que não me traísse aquela noite e acabei dando-lhe uma bofetada.

- Vá putinha, mas desapareça da minha frente, se novamente eu te ver, te darei uma surra inesquecível. Vá cercar a dondoca Joseph.

Ela foi. No fim da noite, Bete estava deitada na minha sala.

- Veio para tomar a inesquecível?

- Não, aquela sem vergonha foi dormir com o seu xodó, um sujo.

- Então que fizeste depois?

- Procurei seu melhor amigo para te trair.

- Anh! Anh! E aí?

- Traí, uai!

- Que mais?

- Ainda quer saber mais?

- Bete, eu estou com sono, me acorda amanhã as dez horas que tenho que trabalhar, se você quiser a inesquecível antes me acorda faltando 15 para as dez. Boa noite.

- Boa noite. A Distinta, a Perseguida, hoje, foi maravilhosa. Hoje, ela foi a Fabulosa.

     Seu calor preenchia um grande vazio e ela sabia ser doce ao deitar.





18º Ato

   - Eu soube da sujeira que Bete fez com você, meu velho. Eu te aconselho a deixá-la.

   - Eu não tenho nada com a Bete.

  Geraldão, o homem do rádio, me olhou assustado.

  - Todos vocês são assim, tem uma para a cama e outra direitinha na reserva. A direitinha sempre, um dia, dá o troco. Somos todos uns grandes babacas, seríamos inviáveis se não fosse o profeta Nelson Rodrigues, que nos legitima a seriedade do casamento e da putaria.

  Assim, como Geraldão, as pessoas, em volta, analisavam-nos como peças ensandecidas, uns loucos do sexo e do amor, seres que antecipavam seus destinos intricados e que jamais seriam revelados e compreendidos. Como era possível viver assim? Vocês são loucos.

  - Eu apenas amo um homem! É ruim?

  Bete ri e pede para parar o carro. Ela quer rir. Por que Cassandra não se calava e porque ela não mentia? E se ela mentisse, os homens acreditariam em suas profecias?





19º Ato

- Naquela noite você saiu, Bete, com um inimigo.

- Quer dizer que vocês não são amigos.

     - Somos amigos e inimigos. Ele é um bom companheiro, mas é um reacionário, ele veio para o Brasil fugindo da guerra, para aqui se tornar num defensor da CIA, é um safado, saiu da sua pátria por princípios para fora do seu país se sujar com deficiência de honras.

Atenção!
Cena. Já.

Bete e um outro ator descem a avenida para o centro. Na montagem, Kleber vai colocar a cena em que eu também sigo para o mesmo lugar, vindo de outra parte da cidade.

         Bete passou dois meses desaparecida, antes de falar-nos ela andou me espionando.

         - Tive medo de que você já tivesse casado. Vi você sozinho muitas vezes, sozinho e de cabeça baixa. Fiquei arrependida e não te trai mais.

         - Cabeça baixa? Era o peso do chifre.

         Bete folheou uma revista, leu, jogou a revista no chão, se eu continuar o que sou, eu me suicido.

    Bete já foi noiva duas vezes, seus noivos foram bastante íntimos e puros. Eles sofreram com a separação. Os seus dias tiveram grandes vazios. Não há nada, não há ninguém na vida de Bete. Ela olha-me e seus olhos verdes adquirem brilho e mais verde.

          - Eu fico sempre comigo, acabo sempre comigo mesmo, eu sou interessante. Eis eu, Bete, a Bete. O velho papai de Bete passa com o corpo dobrado pelo quintal, muito alcoolizado e carinhoso com as plantas.

          - Deixa-me não te abandonar, benzinho, eu te permito casar com sua noiva.
    - Aceita?

          A mãe de Bete é uma mulher que está lecionando a todo momento. Ouve a conversa, um pedaço da conversa e se introduz perguntando o que é a felicidade. Vocês são felizes. Ela afirma categórica. Depois pergunta, pergunta mais uma vez e diz que a felicidade é ser capaz da vida plena, de todos os desafios, de toda a intensidade e que nós éramos pessoas felizes e que nada nos perturbaria.

         O pai da Bete, o velho alemão (seria criminoso de guerra, mesmo?) colheu uma rosa vermelha em seu jardim. A luz do sol atravessa as pétalas e o vermelho espalha-se mais líquido, mais transparente.

         - As rosas são felizes sempre.

         Ele é um moleque, um velho debochado e lascivo.



20º Ato



- Sorri, a vida é sempre alegre, por que você não sorri?

Bete deposita os gestos infantis na biblioteca. Bete me convida. Vamos.

      Eis Bete nua, eis a cama.




Atenção!
Câmera número 3!
Atenção microfone.
Luzes.
Atenção!
Ação.


       Seu apartamento está cheio de telas, tintas e papéis espalhados por todos os lados. Onde está o texto. Procuro minhas falas e encontro fotos de Hans Magnus na guerra. Lá está o criminoso de guerra. Ela acorda.

    - É o meu pai. Foi condecorado como herói de guerra!

    - Quem condecorou?

    - O Exército alemão!

    - Não vale. Em exército derrotado não existem heróis de guerra.

    - Deixe de ser babaca, otário.

    - São as regras, as leis dos homens e dos novos napoleões. É a lei do cinema, do teatro e do romance. Mesmo que os heróis modernos nos cause asco eles são os vitoriosos.

    - Meu pai era um militar bonito, uma bela farda e um belo homem.

    - Um belo homem!




21º Ato

      - (Bete) Não importo, vá para a cama com ela. Será só meia hora, não precisa ficar mais. Se ultrapassar este máximo é porque você não me quer e quer me deixar. Eu sei que depois e sempre (Bete ergue os elementos gregos) você estará aqui.
                             
      Ela aponta para a cama-praticável. Bete não se referia a minha noiva.

     - Ela não existe.

     - Nem deves falar o nome dela, para que? Ela é minha noiva e é melhor que qualquer um de nós.

     - (Bete) Pode ser que não, mas tenho certeza que depois de nossos dias de hoje, vamos nos amar através de nossas vidas.

     - Conversa, Betoca. Isto é noite mal dormida, pesadelos.

     Bete não era uma pessoa vulgar. A vulgaridade seria bem capaz de ser uma insistência dela, um gesto, uma atitude, um papel, algo que intencionalmente ela estivesse interpretando para provocar uma reação. Afinal, éramos atores. Quando sentimos que uma pessoa que amamos se torna vulgar é que o amor acaba ou então é porque estamos começando a desmistificar o amor. Acontecia que eu não mais acreditava em Bete como personagem. Ela era maior e ali em seu apartamento ateliê dias e dias, ela diante do quadro e eu diante deles dois, imaginava o que era a criação e o artista. Ao pintar, em que mundo ela entrava, em que lugar tão distante ela ia e como conseguia trazer para a tela e o plano uma floresta, uma casa, um rosto, uma perna, o movimento? A criação me aturdia e para mim era quase inexplicável. Um ato divino. Se assim o fosse, este era o momento em que o homem se aproximava de tudo e do nada. Seria o momento em que de outra forma Wittingenstein buscava no heroísmo, o guerreiro?

     - Nada velho, não é nada disso, Bete é diferente de todas essas mocinhas e pilantras por aí.

     - As pilantras levam dez, vinte por semana para a cama e Bete derruba 10 em três dias, as mocinhas cultivam dez por noite.

     - Véio, Bete é uma excelente mulher à toa.

     Bete penetrava na noite de seus amigos, os artistas, os projetos de artistas, os artistas projetados que explodiram fora de suas áreas programadas, os grandes livros para se falar, os versos únicos e decorados e adulterados, os donos da filosofia de hoje, conhecimentos profundos interpretados por dedos em riste, artistas em busca do seu autor, do seu editor, artistas nas mais masculina noite-feminina sem sexo e de homossexuais, lésbicas, dos tarados, de jovens em aventura, de porras loucas aragoneses na heteromasturbação de copos e garrafas.


   

       Bete deitou sua cabeça loura em meus ombros e, antes que a noite acabasse, ela foi, mais uma vez, como sempre, carinhosa. Todas as verdadeiras mulheres sabem a força do carinho.





22º Ato

Bete ensaia a peça de Dudu, “O Universo dos Anjos”. Ela interpreta a mulher domadora. Mesmo no ensaio, há mais de vinte pessoas na plateia. O ensaio e a construção de uma personagem devora nossas almas e nosso aprendizado daquilo que jamais seríamos, bons atores.

- (Fala de Bete) Nunca, nunca, nunca, por dinheiro nunca.

      - (Antenor, o ator) E assim as profissionais sofreram tão séria concorrência que, pela primeira vez, na história das profissões, as amadoras suplantaram as profissionais.
   
       Observo nossos colegas, éramos muito jovens. Não haveria futuro, mas o que nos importava isto. Nada nos importava. Nem mesmo o que acontecia na sala ao lado, onde homens, mulheres e crianças, velhos e velhas eram torturados e mortos.


23º Ato


    Nas muitas histórias de Bete cada tom corre de acordo com o porre e a porra.

    - Ele me convidou para conhecer uma obra rara de Anchieta, fariam a leitura de Os feitos de Men de Sá. Ele falava de santos e de coisas sacras e sacaneávamos. Ele queria apenas me ver nua, não fique com essa cara senão paro de contar, ele queria pegar em mim, dizia-me que eu era mulher deusa, mulher divina. O velho chorou e disse que me queria conspurcar, sim, conspurcar.

- Cons  pur  car?

- Sim conspurcar, sujar, emporcalhar, enlamear e mais coisas afins. Ele disse que suas mãos não podiam conspurcar meu corpo tão lindo, tão novo, tão puro. Tudo isso com aquele maluco do Santo Anchieta, o santo carrasco, no meio e um texto perfeito. No fim de tudo, um corpo de mulher.

- Tão, tão, tão, bão, bão, bão ah ah ah ah ah ah ah ah ah ah.

- Basta, meu velho idiota.

- E o epílogo?

- O velho pediu-me para ler um trecho de dois quilômetros da pastoral de Hermes.

- Vestida ou de estátua grega.

- Nua, lógico, de estátua grega. No terceiro parágrafo eu estava com medo do décimo parágrafo, o homem danou a chorar e chorando me chupou.

- Como ele é escultor e poeta não usará a sua linguagem de falas, em alexandrinos, ele dirá que penetrou insaciável no caminho da pureza e da vida fecundante e maravilhosa, no fim dedicará seu poema à uma virgem imaginária de Babilônia ou de Corinto.


24º Ato



  Sua angústia - se existe - é física também.

  Bete diz que a angústia corrói o seu corpo, seu estômago. Um porre atrás do outro, Bete! Bete!

   - Você está com fome e sede.

   - Leite de magnésia, por favor.

   - Não tem.

   - Pelo menos, consiga um efervescente.

   - Não estou de porre, porra nenhuma! Nada disso. É angústia mesmo, sou uma mulher sem ninguém, imoral, amoral, imoral, exmoral, extramoral, semmoral, bimoral. Sou puta e não sou, menina de boa família, pequena burguesa, cem por cento boa gente, esses sujeitos todos que estão aí, gulosos como animais de zôo, sem amor, só querem é balangar em cima de mim. Que excelentes! Que companheiros! Depois sentem dificuldades em falar pelo telefone, as amigas não são mais amigas, são famintas, e eu? E eu! Bah! Não sei o que sou, agora sou uma dor no estômago. Esta dor. Tenho vergonha de mim. Quando deixo o palco, parece que é de bom agouro ser feliz debruçado no balcão de um bar, incrível, inacreditável, Fantástico Dr No, parece que absorvemos o que nos destrói. Não, não são as pílulas, um dia ainda mato alguém, destruirei fisicamente uma pessoa, humilharei alguém, verei alguém inferiorizado em relação a mim e submissa, lá em baixo, eu cá em cima. Agrego em minha alma a alma dos torturadores. Serei uma torturadora e não uma vítima.

    - Do alto de seus seios veja este sujeito, veja como corre de uma mesa para outra, em todas deixa qualquer coisa bebível, como corre o infeliz, um robô faria melhor, este corredor tem uma carga que não sabe usar, mas eu também não sei utilizar o peso que trago na cuca.

   - Destrua o peso, carregue a cuca de frustrações, cachaça, uísque, bolinha, juanitas, venham a nós, duas, uma disritmia cerebral por semana, depois o branco, depois o fim e no fim as carpideiras, tão nova, tão boa, tanto talento, música, pintura, teatro, lembra de Cassandra? Quero a fuga e não tenho pernas para andar. Vocês não entenderam Uberaba. Vou consertar minha vida.




25º Ato

   Ela começou a trabalhar, agente publicitária de uma revista norte-americana e colaborava com contatos para uma firma importadora.

  - Quem?

  - Steves, o gringo.

  - Como é?

  - É negócio, foda é foda, negócios são negócios.
  - Deixe essa merda, Bete.

  - Ciúmes ou responsabilidade?

  - Responsabilidade.

  - É o americano?

  - Steves! Que se e te foda.

  - Calma, não fique nervoso, vamos acabar com o chope e vamos para casa.

  Na rua, ela rasgou a papelada do emprego, revistas, propaganda da importadora.

  - Não volto lá mais.


26º Ato



Era uma época de raiva e paixão. Eu gostava daquela louca e mentirosa. Sentia a sua autenticidade em tudo o que ela fazia ou mentia. Se ela mentia, havia necessidade. Justificava. Todos temos necessidade de mentir e queremos mentir. Entre nós, ninguém se envergonha ou considera a mentira uma fraqueza ou vício de caráter, nada disso.

Eu e Bete nunca podíamos dar certo. As nossas brigas eram as maiores mentiras que pregávamos um ao outro. Nossas batalhas maiores transcorriam em silêncio. Em certas horas sabíamos que era impossível encarar as nossas caretas caricatas. Quantas vezes cruzávamos as ruas sem nos reconhecermos?

     - Bete sinto que você vai perder. Eu queria que você ganhasse.

     - Perder? Ganhar?

     - Os quarenta anos...



27º Ato




A luta existia. Não sabíamos onde, temos certeza que existe. Dela, a gente participa de uma forma ou de outra. Talvez não sejamos mais do que cadáveres em decomposição – decomposição abrandada pelos desodorantes metafísicos. Era 1968.



2a parte


Os elementos


Por perder ser muito fácil, há pessoas que se perdem em qualquer situação. Algumas necessitam de uma cidade grande. Outras ao fazerem as contas dos lucros, outras ao adquirirem um papel. E perda da personalidade e a aquisição de outra se processa com tal rapidez que a estrutura do ser supõe que uma nova personalidade se adquire por difusão. Observe os anormais como eles são incrivelmente capazes das mais brutais metamorfoses... Os gênios também, atores e outros. Por isso, o teatro não pode ter muitos gênios, um dois e chega. O resto deve ser mediocridades excelentes. Bete acordou cedo, apanhou meu terno no alfaiate, 350 duros. Fogo. É a inflação, por isso é que eu sou a favor dos comunistas, o básico compete ao Estado. Bete agora está decorando três falas. Eu a considero na última faixa. Procede como se fosse Cassandra, Cassandra digerida para levantar ombros, gritar para a última poltrona, olhar para o teto, desafiar as telhas, onde se localizaria deus e o destino.

A mulher que for como Bete para sobreviver tem que ter várias faces e não múltipla personalidade. Aquele filme quem fez fui eu. Tomadas solitárias e aglomeradas de Belo Horizonte. Tomadas, tomadas da Belo Horizonte falsificada dos barzinhos, dos apartamentos favelas, das escola, das artes e das madrugadas. Bete cronometrava o prazer. Ela não queria que eu fizesse o filme. Fiz por disposição, eu queria desenhar a sua imagem na tela. Eu sabia que aquilo acabaria logo. Existem mulheres que são como poemas barrocos, você lê, gosta, mas não decora, porque cansa. Por isso, não me assustava. Cassandra ou Antígone, ou as lágrimas dos seus quadros, um amontoado de lágrimas.

Lágrimas contidas apanhadas ao deixarem a face e os pescoços finos e enormes. Havia uma cena em que eu hesitei durante a montagem. Ao passá-la tinha vontade de dizer: vida e o filme começavam. Foi tudo uma grande merda.

Há um mundo imenso aí fora, eu me limito. É a família, é o meu nome, velho hábito mineiro, adquirido. Em nenhuma carta genealógica você encontrará os nome dos meus ancestrais, não há laço visível, isto começou de pouco, é como se eu tivesse decidido assim como se de repente eu me sentisse responsável por estar vivo e por morar aqui. Responsável perante homens que são meus antepassados aos pés destas montanhas, atrás de eras tão remotas como a pré-história.





Quem  é Bete?

Eu a conheci, posso lhe dizer. Senta bem junto de mim. Sou louca, portanto não se incomode se eu o agarrar. A angustia é algo físico. Poucas as pessoas sabem disso. Eu sou uma mulher sem ninguém, imoral, amoral, im-memoral, inmoral, exmoral, extramoral, semmoral, bimoral. Sou puta e não sou, boa família, tudo muito bom, bem freqüentado. Não gosto desta corja que vive com a bunda colada em cadeira, gulosos como os animais do Zoo, doidos por uma pipoca e felizes com a garotada que aparece quando vem do interior pela primeira vez. Ninguém tem amor. Isto em relação a mim. O que eles querem é balangar em cima de mim! Poxa e como são excelentes! Ah ah! Que batutas! Que companheiros! Tomara que os chineses cheguem para acabar com a podridão deles. As minhas amigas não são amigas, são famintas, todas elas querem me papar, não posso é virar as costas nem ficar de frente. De qualquer jeito eu acabo sendo fudida. Então, deixo, que caiam matando, que o que resta ainda é gente. Quando deixo de representar parece ser bom agouro debruçar no balcão, a gente absorve como na fagocitose aquilo que nos destrói. Me realizarei quando matar alguém grande, que verei ser inferior a mim, eu decidindo sua vida, e a pessoa submissa, morrendo, lá em baixo em seu final e eu cá em cima. Eu não sei utilizar o que trago na cuca, meu próprio peso, minha massa molecular com cachaça, bolinha, juanitas e disritmia, duas três disritmia por semana, depois branco, o final das carpideiras é a gargalhada depois de enterrado o acabado. Cassandra? Não me interesso. Meu mal é que quando atinjo a possibilidade da fuga não tenho pernas para andar e novamente me encontro detida no cárcere.


A luta existia, não sabíamos onde, tínhamos certeza de que existia e dela a gente participava de uma forma ou de outra, eu lia as mensagens escritas nos muros, não podemos ser cadáveres, não podemos abrandar a podridão com desodorantes metafísicos.



3ª parte

A metamorfose


E Uma Sexta-feira


   - Ô poeta!

   - Poeta é a mãe, meu nome é Dílson, dil-som.

   - Dilça disso, dilça daquilo, os gregos e os nossos tupis-guaranis, como todos os povos indígenas, davam o nome ao indivíduo a partir de suas qualidades, Polinicis...

   - Os gregos para as gregas.

   - Agora, vamos e não voltemos. Você não é poeta? Não escreve versos? Versos líricos, cheios de hipocrisia e ironia? Donde posso te chamar de poeta.

   - Não isto não. Poeta é como artista plástico, aqui, entre nós, é frescura pura, é sair da realidade.

   - Mas os seus berros são muitos, tudo alinhado em forma e métrica. Polírico, o farto poeta lírico de Alcachombra que escreve na cama, depois de uma conhinha, viaja de graça e metrifica com fita métrica da costureirinha dos romances de Manoelzinho.

   - Caro inimigo, não te topo por causa disso. Você é um crítico estúpido, não entende de poesia, de música, de harmonia, a única coisa que encaixa em sua garganta é a melodia. Você não conhece a inspiração.

    - Polírico se continuas me chamando de melodia, eu te parto a cara.

    - Não és capaz de perceber a beleza dos versos, das imagens ofertadas pela nossa geração ao cancioneiro popular, nossa geração trouxe milhões de símbolos, há em todos os cantos um poeta. Hoje, todo homem é um poeta e é um poeta graças a nós todos e, principalmente, graças a Poe, Pessoa e Drumond e tantos, tantos, que nos revelaram capazes de perceber e de dizer, somos todos poetas. O homem é um ser poético, um ser de poesia, um ser poiético e ético.

   - Repetindo outro poeta, nossa linguagem é fértil. Você não percebe que os meus vinte anos são superiores aos seus cinqüenta. Como crítico aprendeste gerações, escolas, nem Guimarães Rosa salvou-se, ao invés de nos deixar livres, nós os criadores, vocês bloqueiam-nos com espaço, assaltam-nos com elogios, quando estamos alquebrados de palavras, um rio sem pontes, parcos de caminho, sempre em explosões, corpos explodindo, amontoando pequenas veredas, agora vocês querem nos fazer tragar o contrário e se enganam, vão todos tomar no cu, seus filhos da puta. Vocês são personagens que nos querem impor, vocês não sabem que sabemos que é através de vocês que se consegue a passagem para dentro de um rio inútil – Dia-dor-in-rio-baldo.

      - Poli, ao abandonarem a linguagem lógica em prol da linguagem dos sentido repetiram um por um todos os erros das pessoas ignorantes dos objetivos, quer-se prioritariamente romper com os fundamentos não-dialéticos da linguagem; sujeito-predicado, e chafurdam-se em um raciocínio desequilibrado, acabam com as razões para explorar a linguagem dos sentidos quando ela é fundada em imagens e associações livres. Também um caminho, um rio baldo.

     - (George Orwell) “Um homem pode passar a beber porque se sente um fracasso, e, então, fracassar ainda mais completamente porque bebe. É mais ou menos o que está acontecendo com a língua inglesa. Torna-se feia e imprecisa porque os nossos pensamentos são tolos, mas o desleixo de nossa linguagem torna mais fácil para nós termos pensamentos tolos... se o pensamento corrompe a linguagem, a linguagem também corrompe o pensamento...”

    - Para que esses vocês? Isto é catalogação, vamos eliminando um juízo rápido, viciado, precipitado. O raciocínio não lógico, não é linguagem de inconsciente, engano. São as palavras que estão sofrendo uma séria pesquisa, a pretensa linguagem inconsciente é defendida pelos criadores patologicamente clinicáveis. Essa pesquisa é séria, as palavras estão sendo revisadas, a linguagem examinada, o mito de cultura escrita sendo deslocado, por isso você grita. Quantos anos perdidos?! Quantas noites mal dormidas?! Querem negar os benefícios que deixaram aos outros, os instrumentos estão sendo substituídos, a orientação parte de vocês, ele percebeu a carência vocabular e nos deixou a solução alemã na criação de palavras.

    - Poli o que farão em Dante?

    - Os moralistas do seu naipe não percebem o belo dos versos de Dante, preferem procurar os círculos do inferno, vocês sentam sobre os versos e ficam mastigando tônicas e pretônicas, versos e tercetos para depois escrever num suplemento literário. Em Dante, o inferno não é inferno, paraíso não é paraíso, purgatório não é purgatório. Dante é um homem honesto, ele mostra quem ele é, não busca perfeição, porque ele não ficará como um luxurioso no inferno ou no purgatório, Gema Donati, sempre Beatriz e depois Gertrudes ou coisa igual, o livro é simples, Dante queria voltar para Florença, usou do recurso de um jornalista. Imagine, na mentalidade da época o que aconteceria se Dante decidisse dar outro passeio ao inferno. Dante não é religioso, não é místico. Dante é o primeiro escritor realista e pai de Emile Zola.        Dante utilizou as imagens e os recursos dispostos pelos homens da época, se ele falasse em inferno os homens entenderiam, se ele falasse em traição os homens entenderiam. A moral de Dante não está na Divina Comédia, Shakespeare na mesma época retirou Brutos do Círculo onde Dante o deixou.

    - Poli vamos ver, eu quero entender, Dante não era um Tartufo

    - Ele viajou.

    - Como?

    - Preste atenção em como é bonita a Rosa no empíreo, a rosa formada, as mulheres, os sons, as luzes, o efeito, isso tudo, Beatriz se revelando e, a cada passo do poema, ela se torna mais bela, como um diamante sendo revelado, em sua beleza de pedra por um artista-joalheiro, até mesmo a beleza emudece o amante. Os sonhos e a realidade tornam-se confusos e nem tudo é sonho.

   - Poli poeta lírico, ficaste maluco. Estás avacalhando com Dante.

   - Veja sua situação, crítico que traz debaixo dos braços o Catálogo das Posições Estéticas.

   - Sai fora, bicho!

   - Aqui está o meu poema. Este poema é um conto que se metamorfoseia em uma peça de teatro e uma peça de teatro, um filme, que é um conto.

   - É a história daquela menina.

   - Sim, é a história de Bete.   ...É a história de Cassandra... Elas sabem o futuro e nós não podemos acreditar nelas. É a condenação, é a praga rogada pelos deuses de nosso Olimpo.
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   - Foi uma morte feia.

   - A morte é feia.




3a parte

Última tentativa

“... nossos pensamentos são tolos, mas o desleixo de nossa linguagem torna mais fácil para nós termos pensamentos tolos... se o pensamento corrompe a linguagem, a linguagem também corrompe o pensamento...” (George Orwell).

       - A nossa linguagem é fértil. Temos muitas condições para contar a história da nossa gente e as histórias do povo que vive nesta região são imensas mesmo quando são destruídas com o desaparecimento de segmentos familiares importantes. Temos que devolver ao nosso povo a criatividade, retirá-lo do controle e do boicote a que é submetido em seu ato de pensar e criar. O caso de Bete é característico como contista, temos duas obras dela que ficaram conhecidas de um público que ouviu a leitura. Se a quebra da linguagem lógica nos surpreendesse, não conseguiríamos viver.

Lembro de Bete, de Cassandra não ouvi falar. Cassandra? Vou lhe dar um conselho, quando Bete morreu, eu li a notícia no jornal, lembro de que do desastre salvou uma única pessoa, não me lembro com certeza do nome dessa pessoa. Procure o jornal do dia 15 de outubro. Cassandra! Foi uma mulher. Procure o jornal. Possivelmente este é o nome da mulher que se salvou do desastre. Cassandra.




Fim de Bete. Fim de Cassandra