sábado, 13 de junho de 2015

PAISAGENS



Boulevard General Artigas


Bagatelas

José Luís Barreto (*)



O corpo de tal modo nos imunda de amores, paixões, temores,imaginações de toda sorte, enfim, uma infinidade de bagatelas que por seu intermédio  ( sim, verdadeiramente é o que se diz)  não recebemos na verdade nenhum pensamento sensato; não, nem uma vez sequer!  

Platão



I

Dez horas, Valente rola na cama. Segura o relógio. Olha-o. Esforça-se para abrir os olhos. Vê a mão que segura o relógio. A mão é mãozão na perspectiva do quarto. Com o relógio diante dos olhos, observa a penumbra, a luz, a sombra, os móveis, a cadeira escondida no espaço escuro como se não tivesse encosto nem pernas.

A casa onde vive Valente, localizada em Pocitos, foi escolhida em virtude de ser um bairro elegante da capital uruguaia. Um bairro fora de suspeitas.

No momento, Valente é o único habitante desta enorme casa vazia e no quarto o número de objetos somente era superior ao número de móveis e pecas existentes nos outros doze quartos devido à presença de camisas, roupas na cadeira, sapatos e a mala de couro, velha companhia de estradas e mares de Valentes, que em lembrança da filha do ditador, que o presenteou,passou a chamar-se Clementina.

Valente sentou-se na cama. Considera-se acordado. “Levanto às seis e acordo às 10”. Cruzou os braços e pensou que o mais certo era que o relógio estivesse adiantado. Não seriam dez horas.

Alguns anos atrás, o secretário da agência lhe dissera em tom sentencioso

- Você encontrou o texto perfeito, o que eu queria.

Hoje, ele se interroga

- O que seria o texto perfeito para aquele cara?

Mas desde este dia, sua vida mudou. Mudou bruscamente, não como a gente entende de mudança... tudo mudo etc, etc. Nada disso, foi uma mudança percebida, vivida, curtida.

- Você encontrou o texto, Valente.

A opinião do secretário não o interessou naquela época, ele não estava atrás de nada. “Choveu no molhado”.

Ele sobreviveu e agora encontrou o que queria. Não um texto. O elogio frouxo ficara retido na estupidez mecânica da redação do senhor secretário.

Valente não é valente. Nunca foi. O medo era seu estado de alerta. Ele é um bom sujeito. 49 anos. Homem importante. Há 19 anos vive isolado.

Os amigos afirmam que isto se deve a perda daquela mulher chamada Isa. Outros mais ligados a sua vida pública relembram episódios de uma derrota política.

- Análise errada, conclusões erradas.

- Somente naquele momento em que foi afastado das decisões, inteirou-se de todos os seus erros. Tarde, bastante tarde para qualquer outra grande mudança.

- Confusão, simplesmente confusão. As coisas são mais simples. Ele confundiu uma ideia da realidade. Houve o choque.


Apesar dos pesares, tinha amigos, tinha uma boa casa para viver e o dinheiro suficiente para comer. Isso até dois anos atrás, desde então quem lhe deu a mão foram velhos amigos e inimigos que lhe reconheciam a honestidade que em muitos deles mesmos não existia.

Um dia antes desta manhã chegara Arthur. Valente inquieto dava cordas ao pensamento enquanto esperava que Arthur despertasse. Olhou mais uma vez o relógio. Dez horas. Entraria no quarto? Não, isso é uma descortesia. Filha da puta, levanta-te! Ah! Bah! Nada disso. O que adianta? Nada, nada. A porta abriu, passou um homem magro, moreno, de lábios carnudos.

- Velho amigo.

Era Arthur falando, tinha sua voz grave o tom sonolento. Valente não escutava, seus olhos cobriam a imagem de Arthur.

- Há um tempão perdido para ser recuperado. Vamos ver agora o mundo além desta cidade. Não, não precisamos sair daqui. É hora de pelo menos abrir as portas desta casa para um punhado de cabelos louros, vermelhos, carmim, azuis, pretos e de roupas coloridas. Há muito bom vinho em lugares errados. Abra as janelas, velho amigo. Há muita coisa aí fora para nós. A gente não tem aquele dinheiro, em compensação, temos um bocado de vida para viver. Agora é hora de você fechar um pouco tudo aquilo que lhe fechou janelas e portas.

“Um personagem de autor cético, crítico, mordaz, cruel, irônico, estúpido é isto o que eu quero criar para ser autor da minha obra. É necessário criar o autor antes dos personagens”.

Valente dobrou o papel. Deixou tudo de lado, vestiu-se para sair. Mais tarde quem sabe, voltaria a confeccionar uma roupa especial e adequada para escrever aquilo que dentro dele ou ia para o papel ou o matava. Não é isso o que querem? Não é isso que se denuncia como a brecha que precisa ser preenchida? Pois então, tomem aí.

O que Valente fez? Saiu para a rua. O autor foi deixado de lado, os personagens apagaram-se.

A partir daí começou um outro romance, um romance menor, concordo, mas um romance de paqueras de um quarentão, romance da abordagem de mulheres que não ficaria nada a dever a Ovídio, o Ovídio de todos os tempos e de sempre.

Friso que não havia apenas a abordagem masculina, de um homem a uma mulher. Muitas foram as mulheres que fizeram o cerco e a tocaia capturando o nosso Valente, um medroso que se tornava o Super Nervoso diante de uma tarada.

Bem amigos, acreditamos que nos deixaram no século vinte.

- Com licença. Quero conhecê-la melhor...

- Na cama?

- ... ser seu amigo. Anh!

- Arre, nada!

Os tímidos ganham todas daí porque elas preferem os otários como traduziu Machado. Noventa e três por cento de vitórias, dizia Valente. Faria um manual no exemplo de Ovídio. Ensinar aos outros como conseguir dez mulheres em sete dias. A eficiência estava primeiro na mulher escolhida, no objeto de seu esforço, segundo na abordagem e terceiro na escolha acertada do melhor desenvolvimento da abordagem. Para cada uma, um vocabulário. Havia as intelectuais, as mulheres noturnas, as tímidas, as falsas tímidas, as molhadas – bastam a aproximação de um homem e elas se molham toda. O cheiro de mulher as denuncia no cio. A espécie é variada e o único catálogo disponível até hoje organizado no Brasil encontras-se arquivado nas estantes do sub-solo da Biblioteca Nacional. Há homens que se distraem com o vasto conhecimento adquiridos em andanças por cores e calorias. A mulher é um universo. O universo é a mulher. A mulher é um continente e uma cama. Todas são Saskia e Saskia é todas constatou o Mestre Rembrandt. A audácia nunca pode ultrapassar as possibilidades de êxito. Argumentos falham, a derrota deve ser reconhecida e a cama de batalha abandonada. Retira-se imediatamente. Outros mundos existem. Alguns no paralelo. É básico ter consciência do que é uma fuga, pois nem toda fuga é retirada. Quando se foge do massacre, não se foge. Realiza-se o ato necessário, a sobrevivência.



*

A Beata

Eu confio-lhes os que vi. Como se pode identificar uma pessoa pelas roupas que veste? Impossível. Nem sempre. Pois bem, Valente abalroou uma beata à saída da novena. E conseguiu. As feições de Valente eram angelicais, isto devo dizer em defesa da grave senhora de roupas escuras. Não vejo porque não acrescentar que Valente atingia algo que se pode diagnosticar de puro, terno, sensível, por outras, era um autêntico Cristo renascido, desses encontráveis em estabelecimentos de fé. Também Valente conseguiu com perfeição devorar um olhar de monge – desses piores que existem no alto das Himalaias de azoto. 

Valente transformou o amor em um campo de batalha, onde ele era o general, o soldado, o vencedor, o vencido, o saqueador e o saqueado. Muitas vezes vítima e sempre o algoz.




*


Um copo. No Boulevard Artigas, um copo. Um copo na penumbra do quarto. Ao lado do copo, uma garrafa. Ao lado da garrafa, o frio. Dentro do frio. Valente deitado sobre roupas amontoadas. Ele hesita em sair e pegar um táxi.

- Táxi!

Saco, haja, ir, chegar no aeroporto de Carrasco, carrasco, uma máscara, o capuz, Barão de Mesquita, chegar no aeroporto, caminhar dentro de todas aquelas luzes, abraçar um grande amigo. Amigos são poucos. Um bom amigo é difícil. Devemos preservar tudo aquilo que é uma extensão da gente. Um bom amigo, por exemplo. Eu sei ser um amigo. Mas, por isso mesmo, é preciso levantar. Cadê a disposição. Esse corpo cansado, rebelde. Se já não bastasse a fome. Até para acabar com a fome estou cansado. Vou ter que levantar para mijar, já não aguento mais. Aquele uísque não era uísque, Merda! A propaganda é uma ciência. Eia. Realmente é com isto que eu devo me preocupar: a propaganda é uma ciência. Ciência exata. Devo me preocupar com isto, estudar o desenvolvimento na propaganda, fazer uma pesquisa de fontes, pesquisar depois a própria inteligência e a razão humana. O comportamento do homem. O Sr. Valente autor da tese, para-pará-pará, a capacidade, o teórico, a revolução, por aí a fora. Um bom emprego. Importantíssimo. Mais uísque (esse uísque não é uísque, a cachaça é sempre cachaça, boa ou ruim é cachaça. Não gosto de cachaça. Jamais ser um pinguço como o tio Moá).

Quem sabe se ele voltar ao Brasil. Lá, o consideravam um pesquisador sério e um homem de ideias. Autêntico. Original. Bah! A verdade é que se fosse realmente um homem de ideias não retornaria ao Brasil. O que significa o Brasil afinal de contas? Para mim significa a Guanabara. Se a Guanabara existisse no Mediterrâneo, Tunis por exemplo, eu viveria muito bem por aquelas bandas. Bonjour, Monsieur ou qualquer coisa em árabe, espanhol, italiano, jônico, o diabo. Mas o mundo africano é francês. O telegrama em cima do livro As Tripas do Humilde Imperador Japonês. Arthur chega hoje em voo com escalas no Rio. Trará notícias. Que espécie de notícias o interessaria? Bateriam um papo retado, Che! Primeiro, procuraremos um restaurante bom, nada do que é razoável me agrada, bom e se não for bom não tem almoço. Perguntaria pelo Brasil. Está tudo bem, ouviria.

- Tudo ok, meu bom amigo.

Tudo bem, então? É isso mesmo,tudo bem, nada ruim, também ninguém tem peito de achar as coisas ruins, ninguém tem peito de dizer aberto e rasgado o que se passa por dentro e por fora das roupas berrantes, berrantes, berro, grito, roupas gritantes, de raiva, dizendo bandeiras, cada dia uma coisa, sempre um terno lá no fundo do guarda-roupa. Bonjour, monsieur, eu no Mediterrâneo, de volta ao porto escuro de Marselha, de volta a Casablanca perseguindo uma mulher árabe de pano na cara, de porta-seio, como eu caí nessa, mulher árabe não usa porta-seios. A puta era francesa. Acabei sem uma aventura para contar para os amigos.

- Comeu uma árabe de pano na cara?

- Não, não. Uma francesa me passou a perna. Depois não dava mais tempo. O navio saía as cinco e quinze e já eram cinco horas, deu tempo apenas de pegar um táxi. “Chuta motorista.” Chutou e chegamos a tempo de esperar três horas para o navio sair. Coisa de prático. Esqueceu o que disse antes, a África é francesa, quando ela tirou o pano da cara e falou Oui, já era e era uma negra maravilhosa.

Arthur silenciará sobre Isa. Silenciará tudo o que me interessa porque na verdade ele não percebe o que me preocupa e nem eu lhe perguntarei mais nada. É sempre tudo bem, tudo bom. Contente, bebo mais um copo gelado. Ele falará de cachaça, de bares conhecidos, dos amigos do copo, de um velho copo. Relembraremos cenas engraçadas de todas as nossas sessões nostaalgia. De que o senhores estão rindo? Conto o porquê. E vejo que não tem graça aquilo porque eu rio.

A porta abre e é fechada. A mulher passa. É a arrumadeira que invade para limpar, desarrumar e arrumar, sujar e limpar.

Por que ela não pisa mais devagar? As arrumadeiras deviam estudar ballet, pisar de leve. Não destrua o chão! Filha da puta! Não demora e essa puta vem me encher o saco... é porque meu marido... é porque meu maridinho... é porque meu marido... porra! Vá te foder na casa do caralho! Não me chateie. Pago um curso de ballet para você.
- quando eu era pequena...

Psiu! Quando você era pequena o mundo também era tiquitinho, uma merdinha de nada, as formigas esnobavam as cigarras, sei disso.

- Dr. Valente.

Sempre tem doutor na frente do nome do poderoso.

- Fala, figura estreita de mulher.

- Anh! Posso?

Ela pergunta se pode entrar no quarto já dentro. Ora claro que pode, se eu estivesse com o cacete duro, ela talvez dissesse oh! Apesar de não tirar meu caralho da boca.

- Bom dia, seu Valente.

Agora é Seu, dentro em pouco é sô.

- Hoje, o dia está lindo, Sô Valente. Trouxe umas flores lindas, o meu marido... não vou deixar ela falar mais. Pintou os lábios de vermelho, os lábios superiores aumentaram bastante com a tinta.

- ... ele não entende que eu preciso também de tudo o que ele precisa. Ele vem e pimba, pronto. Faz o que quer e depois vira as costas, dorme como um anjo (demônio) não me dá mais um pingo, eu falei o que o sr falou, ele me bateu, quis saber quem me falou nisso, pois é, ele disse que na religião dele as mulheres... quem que eu disse que me ensinou o negócio? Lógico que não falei que foi o senhor. Está doido? Falei que foram as minhas amigas. (o jeito é você comprar um consolo de viúva.)

- meu marido me faz sofrer muito.

- converse com seu marido, dona Lourdes. Se ele não é carinhoso, a senhora o faça carinhoso, peça a ele para que use a língua, que te amacie primeiro. Diga a ele  que você compreende o que é o bagulho precipitado, fale de qualquer jeito.

- Ele me mata se eu sequer pensar numa coisa dessas.

Lourdes tremia, seus seios pulavam fora do sutiã, as maminhas doíam-lhe e seu sangue esquentava-se. Seus olhos arrastavam tudo em que pousavam.

-  SeuValente, eu estou tremendo. Pegue em mim.

-  Calma, não se excite tanto.

- Não aguento, apenas isto.

Tirou a roupa como se sobre ela apenas tivesse um lenço. Ele acompanha todos os
Gestos dela imaginando-os em câmera lenta. Não eram.

Acompanhou os dedos de Lourdes ao desabotoar o vestido, ao arrancar a anágua, tirando o sutiã, descendo a calcinha, desabotoando-lhe a camisa, acariciando seu peito, desabotoando-lhe a calça.

- Unh!

- Unh o que, Lourdes?

- Já?

- Já.

- Estou com medo de não aguentar.

- Deite.

- Passe a língua devagar, eu não aguento, eu não aguento, pare meu deus!... pare, pare. Venha, venha logo. Não me machuque, por favor.

- Vire, clt.

- Quem lhe ensinou tanta coisa, Valente?

- Uma piedosa senhora, virgem, casada, pura, honesta, puta.

- Existe um tipo assim?

- O que mais.

- Dói.

- Pára?

- Não, não.

- Unhh!

- Unh!

- Sim, sim.

- Dê uma mordida em meus lábios. Meu deus, meu deus. Acho que vou morrer.

-Segure, eu vou morrer também.

Lourdes continuou deitada. Um corpo que não era de menina, nem de moça. Um corpo que sustenta uma carne flácida, uma barriga de três partes, milhares de abortos e total desprezo pela aparência física. Aquele corpo nu de mulher é sensual e a sua sensualidade está na resistência, no cheiro de coisa suja como gosta Woddy Allen e na sua pele que guarda as mesmas reações que conduziram o primeiro homem, de Cerrito, numa noite sem estrelas, sem lua, para um lugar escuro e macio no barranco do lado do campo de futebol. E era isso que ela pensava agora. Seus pensamentos saiam de um tempo gentil. Iam e vinham como voa o pensamento. Aqui o quarto não devia ter quase oxigênio, a temperatura era quente para abrir as janelas. Na mesa o mesmo jarro branco sem flores, por que Valente não tira aquele jarro dali? Ou pelo menos me deixe colocar flores. Quem será Isa? Ele me chamará mais uma vez, vejo, sinto e eu mesma quero. Ele advinhou.

- Isa!

O táxi correu muito ou Valente não viu o tempo passar, enfim, ali estavam encostando na calçada do aeroporto internacional de Carrasco. Aeroporto vazio, como em todas nas madrugadas, em todos os aeroportos do mundo. Poucas pessoas, as raras mulheres que desfilam seus vestidos e agasalhos captavam todos os olhares, desejos a ser ultra-requintadas e piadas transmitidas por sinais.

A informação era de que o avião chegara uma hora antes e já partira. De duas, uma: ou ele leu a informação errada na carta de Arthur ou seu relógio atrasara. O relógio atrasara. Na banca de revistas estrangeiras, ele comprou livros e jornais franceses. Ainda conhecerei a França, a Itália e o fim do mundo. BB é uma mulher linda. Será sempre a mulher linda para mim. Mulheres assim deviam dar para todos os que quisessem um pouquinho do que elas tem demais. Eu um dia ainda foderei BB, velha, sem dentes, feia, horrível cercada de cachorros por todos os lados, assim mesmo, ainda assim ela me seduz. A buceta dela deve estar igualzinho uma cratera larga e fervendo.

Setembro, em Montevidéu, surgem as cores alegres. O sol brilha em tudo. Aparece a primavera, até o carrinho que vende doces vende doces, até no político que vende seus livros e panfletos, vende ideias. Mas setembro é, sobretudo, a hora das mulheres tornarem-se mais femininas, braços esculturais, pernas envolventes, tudo isto surge aqui e ali, as esquinas são mais movimentadas e nossos olhos brilham mais. O que fazem braços tão lindos e pernas tão solitárias à tarde, à noite, de manhãzinha bem cedo? Amam, na certa amam, que outra coisa poderia imaginar? Expõem tudo, mulheres são vitrines ambulantes de blusas, saias, meias, sapatos, brincos, pós faciais, batons, sobrancelhas e cabelos postiços. Uma mulher estica a língua feito uma cobra e meu cacete corresponde, sintoniza-se, eu sei o que ela quer e ela sabe o que eu quero.

Valente entra na casa da Boulevard Artigas. Arthur, Arthur com h, o espera em silencio.

Valente sobe a escada e no meio, onde sua cabeça ultrapassa o soalho do primeiro andar, vê as pernas de Arthur.

- Valente, a senhora dona Lourdes deixou um bilhete e disse que se fosse necessária a presença dela, que telefonasse.

- Anh-anh! Ela é a mulher da precheca doce.

Arthur Ferreira, correspondente de vários jornais da América Latina, veio fazer a cobertura das eleições uruguaias. Arthur pensou na frase de Valente sobre a mulher. Precheca doce! Lembrou de um trabalho sobre Valente, onde o descrevia como um homem guloso, devorador de novidades e de velharias. O insaciável. Valente e as suas muitas valentias. Valente emagrecera; aqueles olhos inesperados, parece um homem sem olhos quando de repente os olhos açambarcavam todos os contornos físicos e Valente parecia transformar-se em um homem de substancia visual. Arthur observou a maneira lenta de erguer os braços, acender o cigarro, beber, falar. E as palavras saíam de Valente como se fossem redes lançadas sobre as pessoas para confundi-las ou para retê-las. Precheca doce! Porra, Valente anda com a cuca fundida.

- Quer dizer que a gorda se trata de uma farta guloseima?

- Não. Claro que não. Estou em abstinência. Abstenho-me de tudo. Estou em fase de criação do meu universo.

Valente excitou-se com a expressão “meu universo”, mas não quis continuar sua ideia levando-o através de citações de poetas e de análise sobre a esquizofrenia. A esquizofrenia é uma doença social ou econômica? Dependência.

- Valente, meu amigo, estranho essa historia. Trago para checar uma imagem que me deram antes de embarcar. Mas você não esta vestido a rigor. Seria realmente o monge distante esse homem de expressão dura? Vim pensando encontra-lo transformado em monge. E você me decepciona. Como? Agora não poderei fazer de você um ex-monge. Só me resta retira-lo daqui. Isto parece um monastério. Do lado de fora destas paredes a vida modifica-se. Os costumes passam por uma revolução tão radical que parecem concentrar-se todos os costumes de todas as partes e de todos os séculos numa minúscula noite. A noite modificou muito. As mulheres descobriram-se. Noite após noite acontece uma grande modificação na praça. Você um monge sem nada de monge.

- ...  (quem se preocupa com imagens sobre um homem?)

- Disseram-me de sua decisão de não abandonar este mosteiro. Quando aparece alguém para visitá-lo, você está dormindo.

- ... ( Bom seria se conseguisse dormir.)

- Disseram-me da sua briga com o Andrew e o Michel. Arrebentou os dois de uma só vez. Andrew mandou fazer uma fotografia. Cara arrebentada. Porra, de qualquer maneira foi divertido. Velho, diga-me de passagem, por que esta reclusão, por que essa violência?

- ... (Arthur desempenha excelentemente o papel de minha consciência. Fui eu quem formulou estas perguntas?)

- Agora, não. Pssemos dos assuntos comerciais. Vim buscar os trabalhos. Ando em apuros com a editora. Antônio enche o saco. Não vim para brigar, vim para buscar os trabalhos.

- ... (Uma porrada e te desmonto, filho da puta.)

- A editora rodou os seis capítulos e encalhou o papel impresso. E agora?

- Contratem outro tradutor. Esqueçam-me. (vão todos à puta que os pariu de madrugada).

Arthur colocou na mesa um livro que tinha na mão, pela janela fechada viu a luz que chegava atravessando os vãos da madeira. Arthur riu. Abraçou Valente.

- Já era tempo de parar com essa representação. Vim aqui para trabalhar e não para encher o seu saco. O que tem feito?

- Dormindo, dormido.

- Mais nada?

- Mais nada. Podemos almoçar no restaurante da avenida?

- Treze e cinco, vamos lá.

Arthur calou, no silencio percebeu dentro do casarão escuro os dois. Apenas os dois. A casa apagara as suas próprias sombras, transformava-se em sombras, pessoas tragadas pela escuridão. E era pouco mais de meio dia. Na verdade, bem diziam, aquela casa era um mosteiro.

Mosteiro das sombras? Não. Mosteiro do Pavor. O pavor que corta a palavra. Resolveu comunicar ao amigo como encaminhou a dissolução da firma. Dinâmica. Entraram em minúcias. Agora, teria dinheiro para deixar a casa maldita. Valente disse-lhe que o dinheiro estava no banco. Ao que lhe parecia, Valente nada fizera para mudar-se desta miserável casa. A casa é como o nome das pessoas, é como o estilo, as roupas, as palavras, os gestos, as vírgulas e os pontos.

Arthur antes de atravessar uma rua perguntou a Valente se Valente continuaria morando na casa da Bulevard Artigas.

Se eu fosse dar uma resposta exata, teria que usar a mesma linguagem dos discursos encomendados, alinhar lógica com lógica, nada sendo verossímil. Não me preocupa esta questão. Seria minha obrigação de amigo ir até onde pudesse deixar satisfeita a sua –curiosidade e então parar. A Verdade é que não sei como será o dia de amanhã. Ainda não consegui atingir a fase de programas balanceados.

- Não entendo. Arthur diminuiu o passo.

- Dois. Eu também não estou entendendo.

- Anh, anh, então deixemos isto para lá.

- Valente apontou para uma mulher de roupa extravagante.

- Eu gostaria de que ela me entendesse e me explicasse.

- Ninguém é capaz de um entendimento concreto sobre outra pessoa.

- Ninguém entende ninguém. Anota essa, Belzebu.


- Valente, o que você vai fazer com esse dinheiro?

- compro a casa, o casarão. Vivo por aí uns cinco anos. Depois vendo o apartamento do
centro...

Valente chegou a operário de uma editora e passou por nova ascensão social e esgotou-se como magnata, homem envolvido com SAs e em trustes internacionais.


*

O restaurante da Artigas espalhou suas mesas por um terraço ajardinado. O térreo do edifício de dez andares era ocupado pelo restaurante. O garçom indicou a mesa reservada. Imediatamente apareceu o copo de uísque e gelo. De longe algumas pessoas cumprimentavam Valente que inclinava a cabeça. Na mesa fronteira sentaram dois casais. Elas eram louras, ambas muito iguais, muito elegantes, discretamente pintadas. Elas estiveram aqui ontem com os mesmos rapazes, Valente as havia visto e no seu diário anotara que a beleza delas eram belezas frias. Arthur perguntou se Valente conhecia aquelas mulheres. Não. Provavelmente estrangeiras. Segundo o garçom, era da embaixada americana. Elas olharam com um olhar rápido os dois amigos. Olhos das mulheres captaram Arthur. Meninas curiosas. Não demorou muito para que elas esquecessem dos vizinhos e começassem uma série de assuntos alegres com os seus acompanhantes. Piadas? Não sei. Arthur observava a movimentação da mesa vizinha. A menina que parecia ser de um dos rapazes fazia sinais, sinais carinhosos, o mais que se possa imaginar, por baixo da mesa, com o pé, ela tocava a perna do outro rapaz e ria. Ria dos dois. Valente  disse que deviam ser dois casais complexos. Bem capaz de que ela ama o outro... e o outro ama a outra, e a outra ama outro, como no poema de Drumond... e os laços continuam a ter barbante suficiente. Quando os rapazes saíram da mesa os pés das meninas tocavam-se. Valente olhou para Arthur. Pois é! O outro gostava... a outra gostava da outra, haja barbante! Valente acompanhava os olhos de uma delas. Talvez, elas falem pelos pés. Ou fazem amor pelos pés. Marcianas? Quem sabe? Há de tudo no mundo. Os olhos da menina bebiam mais conhaque do que a boca. Estavam injetados de conhaque, corrigiu Valente. A mulher sorriu para Valente. Divertida. Essas meninas estão barbarizando nossas casas na gozeira. Neste momento, um homem magro, risonho, vestido como um manequim, com a face queimada de sol e olhos proeminentes, chamado Paco Hernandez, um homem do mar aproximou-se.

- Essas são as libertinas. Querem conhecê-las? É fácil. Eu as conheci na água. Abram dois sorrisos, vou arrasáa-las.

Paco cumprimentou os casais, apontou para a mesa de Valente e depois de gestos e contrações faciais. Voltou para buscar os dois.

- Sheila e Mary, americanas da Virgínia.

Sheila apertou a mão de Valente e manteve-a enquanto mostrava-se curiosa com as suas atividades.

- Quer dizer que você é escritor?

- Não, plagiador. Tradutor. Desde Debord, o plágio foi liberado.

- Nunca li nada seu e tenho todos os seus livros.

- Você conhece bons métodos de conservação de livros?

- Não.

- Posso ensiná-la. Os livros gostam de sol, de vida. Leve-os de vez em quando para passear em vez de levar os cachorros. Solte os animais. Deixe tanto um quanto os outros expostos ao sol. Cada dia saia com um, procure não dar mancada e apanhar um já caído no esquecimento da crítica dos jornais.

- Mas eu tenho muitos livros.

- Tem firmas que fazem esse trabalho de conservação de livros. E tem pessoal especializado em passear com livros.


*



Os seios de Sheila são duros. O inferno mais delicioso do mundo. Quais são os outros predicados de Sheila? A voz. O sussurro. Suas palavras. As mulheres são dotadas de um dom: transformam as palavras em açúcar ou sal. Vejo a testa alta da buceta, cai bem naquela buceta tal testa, como cai bem em seu pescoço o colar de diamantes. O amor é uma coisa tão simples. Droga! Por que diabo a gente se implica e só quer uma coisa, uma determinada mulher? Uma determinada mulher: Isa. O cheiro. O cheiro é importante na atração,ao  atracar. O ato de atrair. Tudo na mulher é essencial, até a maneira determinada da mulher sorrir ou sentar. As mulheres sentadas me deixam insatisfeitos. Erquei-vos mulheres de Salamanca. Deitai-vos! Abri-vos! Saciai-vos! Enlouquecei-vos entreguei-vos! Sempre quando perdemos uma mulher, pensamos imediatamente: ela não é a única. Mas isto é para enganar a dor. Quem assim se consola, engana-se a si mesmo, pois está negando, escondendo a verdade através de um lugar comum. Lógico que mulher nenhuma é a única. O último censo ainda afirma que existem mais mulheres do que homens, embora ainda faltem muitas. A gente afasta a dor da cuca. Mas a dor materializa-se, e todos os momentos que antes foram momentos ao lado dela, dela Isa. Uma mulher para mim, uma única mulher bastaria. Ela teria que ser Isa sem necessidade de ser nervosa, ela teria que ser Isa sem exagerar nos ciúmes – boçais que esqueceram: o ciúme existe – ela teria que ser Isa e não me obedecer como se eu fosse um dono, ela teria que ser Isa e não me ter como posse da qual ela fosse dona. Posso deixar Isa de lado, ela foi muito tempo, há muito tempo. Coloco ao lado de Sheila, a minha Isa. Sheila é mais nova. Sheila é bela. É mais bela. A testa. Sheila é a mulher dos seios grandes. Sheila é coisa nova. Último lançamento. A mulher das mamas rosadas. A mulher de boca prateada. A mulher de olhos decorados. A mulher de mamas excitáveis. Sheila é a montaria treinada. Não, para corridas de velocidade. Não, para o galope ritmado. Ela é treinada para saltos de obstáculos e corridas de resistência. Eu fico com Isa. O prazer com Isa é puro. Não suja. Se suja é bom também. Uma mulher, uma única mulher, mas muitas se oferecem... Uma única mulher que traz todas em si. A Saskya do Rembrandt. Como nos negar a uma mulher? Novas moedas estão sendo cunhadas. Não haverá limites a ninguém quando o amor surgir. A testa. Sheila é Isa. Elas parecem-se... Não. Mas eu vou dizer que elas são muito parecidas.








 
Boulevard General Artigas em direção a Pocitos












(*) José Luís Barreto, 1940/2000, tradutor de Ovídio e autor de Bagatelas