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| "Corte o cabelo na lua nova. É a lua negra" |
Ela nos boxes
Justo Rivaldáver
Pai saiu do hospital. Isto foi há 10 dias.
Voltou para casa e
“tudo mudou”. Ele ganhou cor. Mudança da água para o vinho.
Outro ambiente, outra
pessoa. Recuperação no ar. Caminha devagar, mais curvo ainda, muito mais curvo,
procurando apoios no ar e em todo lugar.
Uma caminhada de três
metros, uma aventura, entre paredes, portas e cadeiras, lugares de se aparar.
Sua mão percorre o ar
e o espaço, abaixando-se muito, quando o obstáculo é longo, meio metro, 70
centímetros e o alvo a dar sustentação é a borda da cama.
Lá vai pai, calado,
silencioso, a garganta machucada (levará trinta dias para ele recuperar as
cordas vocais machucadas pela sonda).
Fala com esforço,
pouco, quase inaudível. Voz rouca. Quando ele fala, vejo os seus dentes mal
arrumados e amarelecidos, como dentes de fumantes - casa de ferreiro, espeto de
pau, é o dentista que pouco cuidou dos dentes ou é a idade apenas?
Ele vai almoçar. Ao
seu lado, eu. Em frente, Rita. Rita de Cássia organiza o almoço. Pela dieta
pós-operatória, só poderia se alimentar com uma comida pastosa. Noto que a papa
tem pedaços de frango desfiados. Tudo normal. Com apetite, ele come uns cinco
pedaços de frango e, silencioso, serve-se duas colheres de macarrão vermelho,
puro molho de tomate. Tentamos impedir. Eu e Rita nos olhamos. Vá lá. Ele quer,
ele pode.
Depois isto ficará me
atormentará. Conto para o doutor Zerbini, agora pai deitado numa maca,
recebendo soro e oxigênio. Ele diz que aquela alimentação não teria provocado o
quadro de “abdômen agudo”.
Bolas, por que a
dieta? Carlos Olavo perdeu 50% do estômago e 10 anos depois seguia
rigorosamente sua dieta. Um gigante. No
setor de urgência do hospital, onde chegamos às 9 horas, das cinco pessoas
internadas, quatro tinham mais de 80 anos, um mais de 90 anos e apenas uma moça
teria em torno de 40 anos. Dos quatro velhos, pai aparentemente apresentava um
quadro melhor, na minha visão de leigo.
Em frente ao boxe 3
onde estávamos, no boxe 4, um senhor que veio de Contagem golfava de tempos em
tempos, numa grave crise de asma, seu corpo doía e ele dizia não ter posição,
queria água e a filha não dava.
Seus dois filhos
conversavam, sem cerimônias, sobre outros assuntos e discutiam negócios. Os
filhos, uma mulher imensa caminha com dificuldade e um homem gordo, também
grande, de barba, cabelos amarrados no estilo rabo de cavalo, vestido com uma
camisa de propaganda de bebida, que na frente dizia “Quem bebe vive com
menos...; atrás, nas costas, continua: ...com menos problemas, ... com menos
chateação etc”...
Rita ficara
impressionada com a força do rapaz, que carregara o pai no colo. “O pai dele
pesa mais de 90 quilos e é paralítico. Ele sempre carregou o pai por todos os
lados”.
A irmã fala, orgulhosa,
da força e da boa disposição do irmão.
No boxe 5, o velho de
mais de 90 anos, sem dentadura, boca aberta, parece boca de menino novo,
respira com dificuldade.
Ao seu lado, bem
vestida, em pé, durinha, uma velha, sua mulher?
“Não consegue ficar
sentada” ali onde todos os acompanhantes lutam sempre por uma cadeira, deve ser
da política da empresa, pouca cadeira na emergência para ninguém ficar sentado,
nem descansar ou, melhor hipótese, para que as pessoas possam ser atendidas -
se um cansa em pé, sai a procura de soluções, além de cadeiras, e a solução é
tirar o paciente da emergência. O acompanhante acaba por colaborar, põe o setor
de urgência para funcionar.
A senhora velhinha continua
dura e firme, diante do velhinho - um homem pequeno, boca aberta, banguelão,
criança, buscando respirar, cabeça inclinada para trás, criança de 30, 40 dias,
inclinando-se, procurando ar, ar, ar. Espichando-se, a cabeça, um para crescer,
viver, e o outro, o velhinho, procurando a vida, o ar.
Quando passei, dez
minutos depois, pelo seu boxe já estava fechado pelo pano que corre no suporte
ao alto.
Ouvi uma pessoa,
certamente uma médica ou enfermeira, pedir, desesperada, “me ajudem, aqui, por
favor”. Era um grito de socorro. Como já havia ouvido aqueles apelos, em outros
momentos, deduzi, era a morte do velho.
Depois, 30 minutos, lá
estava ele, cortina aberta, a velhinha, durinha, em pé, a cadeira atrás, o
movimento tenso sempre, calmo sempre, de repente, uma multidão de pessoas
apressadas, depois, ninguém, espaços vazios.
Do boxe de pai,
imagino uma peça de teatro em que você não veria os atores, veria apenas suas
pernas, seus sapatos, suas calças. Pelos diálogos e pelos movimentos dos pés se
construiria a peça, não poderia ser toda a peça e nem todo o ato, teria que
haver muita criatividade e muito “time” além de uma marcação de cena
extremamente treinada e eficiente, captando aquele clima. Acho que funciona.
Era o que eu observava
no boxe 5, onde estivera o velhinho e que agora recebeu uma senhora de mais de
50 anos, observo que as quatro moças que estão ao lado do leito formam uma
roda, todas usam calças compridas, uma jeans, uma de veludo e sapato de bico
fino, outras duas usam botas, tudo bonito e bem feito. Qual delas seria a mais
bonita? Vacilo entre a que estava com a calça de veludo e a de jeans. Opto pela
de veludo.
Estou só com pai, ele
ainda em observação. Vou conferir? A de
veludo era a mais velha e a mais feia. Zaratustra! Burro que fui. A mais bonita
era a de calça jeans, muito gostosa. Volto para o meu posto.
No boxe dois, do lado,
está a Neide Aparecida, uma mulata de boca grande, lábios grande e salientes.
Ela está com o marido. Estão só os dois.
No boxe 1, um senhor
enorme de pele escura e queimada de sol, bastos bigodes e acompanhado por duas
mulheres mais novas. Seriam suas filhas. Elas estão tensas e tristes. Os filhos
e os pais. Os jovens e os velhos. A vida e a morte. Tudo muito próxima.
Estranhamente próximos. Exatamente próximos. O percentual de velhos é alto. São
os velhos invadindo o hospital e muitos vencendo a morte e ganhando mais vida.
Um pouco mais de vida. Que vida! Vida, vida, não importa. É a vida. Mais um
pouco, vale a pena. Há quem diz que importa, sim. É pau de discussão. Ali
ninguém quer outra coisa, quer só a vida, viver, aliviar a dor. Na espera da
sala de radiografias, um velho me observa. Ele pergunta de chofre:
“Em que lua você corta
o cabelo?”
-
Em que rua? Pergunta o auxiliar de
enfermeiro, seu acompanhante.
O velho fica bravo e
movimenta-se na cadeira de roda. Surdo? Ele não diz. Ouço a pergunta no seu
olhar.
“Lua, lua, em que lua
você corta o cabelo? Vi que você está com duas entradas muito grandes? Corte o
cabelo na lua nova, se estiver caindo, seu cabelo para de cair, às vezes até
mesmo nasce de novo. Meu cabelo estava caindo e, na minha cidade do interior,
uma mulher me ensinou: Corte na lua nova. Eu cortei e a partir daí meu cabelo
parou de cair”.
Ele passa a mão nos
cabelos brancos, penteados para trás, seu orgulho. O enfermeiro chega e assume
a cadeira de rodas, ele grita, que o deixassem terminar a conversa. O
enfermeiro, contrafeito, para, reclamando silencioso, olhando um relógio
inexistente ou misterioso ou espalhado por todo aquele ambiente e que apenas
ele via, um enorme relógio que o devoraria, caso ele não cumprisse os seus
horários.
Também sem dentes, ele
insiste:
- Corte sempre o
cabelo na lua nova. A lua nova é a lua negra.
.....................
Os olhos de pai, segundo Danusa:
- Não gostei dos olhos de pai, parecia que uma
membrana, cobria-os.
...................................
O gigante fala baixinho:
- Eu não posso enlouquecer, não posso ter este
privilégio, não posso ter esta saída. Nem posso sofrer. Estou proibido de
sofrer.
O gigante chora e eu me afasto. Nada posso
fazer. A vida e a morte estão lado a lado.
04.05
