terça-feira, 15 de março de 2016

CELAS SÃO SEPULTURAS







Celas são jaulas



Juraci DePersi




Gorila, o Gorilão, senta no corredor


Está frente a mais de 300 celas


(ele diz que são jaulas)


Quer conversar com amigos


(não tem garganta, não tem voz)


Bernes tomam conta da goela


- Quem é o Gorila, Gorilão?


- Ah! Eu não sou nada (pensa)


- Não sou ninguém (certeza)


- Não tenho nenhum valor (?)


- Sou o último sempre (avalia)


- Sou o último a comer (verdade)


Gorila ri, ri


Isto ele pode, isto ele consegue


Ele ri


Sua boca vermelha enche


sua cara indecente


Cara de Gorila (macrocefalia)


Gorila ri


Um dente aparece


Aparece outro


Em sua boca vermelha, 


cheia de sangue


Sua fome de duas, três, 


quatro marmitas.






- Eu ajudei a construir a cadeia.


- Depois, eles me trancaram lá dentro


- E lá dentro, fiquei isolado, 


- Me esqueceram lá 9 anos.






Esta é toda a história de Gorila


Contada quando podia falar






O pé esquerdo de Gorila


Carrega 300 e muito mais larvas


(Relatório do enfermeiro Irmão)



Gorila sabe que tem que aprender


A caminhar de novo






- Pra que caminhar, seu Gorila?


Ele sabe que o Irmão é irmão mesmo





- Eu não sou nada


- Sou o último a comer


- Quero comer comida


- Não joguem fora o arroz


Gorila não fala.


Gorila arrasta o pé esquerdo 


corredor afora


Trezentas e tantas celas acesas


Trezentas e tantas celas na sua frente


Ele diz que são jaulas 


(para prender gorilas)


Irmão diz que são sepulturas


Onde esquecem seres vivos






Deitado na maca, boca aberta,

o Irmão tira um por um os bernes.




Gorila não chora.








A Justiça condena e, depois, na cadeia, 

há uma nova condenação,

sem julgamento e sem direito de defesa.


Múltiplas condenações
        




        Exemplos de resistência física, principalmente.

          Patrocínio - três anos em uma cela fria e úmida, sob chão de marmorite, cela escura de castigo do Depósito de Presos, em Belo Horizonte.

         Gorila - nove anos no castigo em Caratinga, também isolado. Este talvez tenha sido o mais brutalizado de todos.

         Célio Bundadetanajura - sete anos na cela de isolamento, fétida e pequena, em Além Paraíba. “Além Paraíba” significava na linguagem da cadeia qualquer lugar ruim e qualquer punição.

         Eles também são exemplos da violência, da covardia, da humilhação e da pressão exercida contra o indivíduo pelas instituições do Estado.




A Língua Desgraçada
      
        José do Patrocínio era chamado também de Língua Desgraçada por causa da sua irreverência com quem quer que fosse principalmente com aqueles que o prendiam e que carregavam o peso da autoridade. Patrocínio saia do castigo passava dois ou três dias no pátio e depois voltava novamente para o castigo.

Ele não gostava de puxar saco das autoridades e era amigo dos presos seus companheiros. Sua língua desgraçada o levou, no Depósito de Presos da Lagoinha, a ficar três anos preso, sem processo, na cela de castigo.


       Patrocínio era ladrão, ladrão de cavalos, como ele mesmo se intitulava com orgulho. Sua última prisão foi em penitenciária político-militar por ter, juntamente com Café, seu amigo Cafezinho, roubado e vendido uma arma privativa das Forças Armadas, uma pistola 45.  


       Patrô não vivia, vegetava. Era repelente em sua sujeira. Vivia na engorda. A única coisa que o distraia era a comida. Seu corpo era monstruoso e deformado. Vida ociosa. Vida parada. Não fazia nada. Não mexia.  Era um bicho todo inchado. Ele saiu de Linhares em 71, para mais uma vez roubar cavalos.



Gorilão, um louco, um sábio


Gorila foi traído pela sua própria capacidade física: era um homem forte. Como homem forte, Gorilão tinha fama que era contada em pequenas historietas pelos outros presos.

Antes de conhecer o Gorilão, as histórias que contavam dele, falavam de uma pessoa simpática e muito tranquila, além da inteligência e de sua intransigência na defesa de interesses coletivos.

Uma destas historietas conta da chegada de Gorilão à Penitenciária Agrícola de Neves, condenado por homicídio. Sua arma teria sido um tremendo soco no adversário. No dia em que ele chegou, toda  penitenciária já o esperava, alguns querendo conhecer de perto aquele homem famoso.

A inspetoria de segurança não estava em um bom dia, pois teria feito tudo para não aceitar a internação na penitenciária daquele homem perigoso para a tranquilidade das autoridades.

Tão logo Gorilão chegou, a inspetoria teve certeza de que não conseguiria dominar o homem. Gorilão foi seco nas respostas e não aceitou nada que o pudesse diminuir perante os companheiros. Os caras foram duros com Gorilão.


Cinco vezes esgotou o prazo para que o liberassem da cela de observação. A guarda queria esquecê-lo em uma daquelas celas e dentro da cadeia já havia um movimento de ascensão do preso em torno da figura de Gorila, que foi prontamente descoberto e abafado pela inspetoria.


Como haviam sido esgotados todos os recursos para se fazer ver a irregularidade da permanência de Gorilão na cela de observação, a única solução seria a violência. Uma madrugada todos os presos acordaram. Para que todos soubessem o que se passava, gritou para os companheiros, denunciou os policiais-carcereiros. Todos os presos ouviram, uma galeria despertou a outra.


E nesta madrugada, todos ouviram a quebradeira que o Gorilão aprontou. Ele destruiu antes do amanhecer toda a cela de observação em que estava detido.


Depoimento de um enfermeiro assegura que Gorilão só não saiu da cela porque não quis e porque sabia que se abrisse a porta seria assassinado.


Enviado para o castigo em Caratinga, ficou nove anos no total isolamento. Quando voltou à enfermaria da Penitenciária de Neves, ele teve momentos de lucidez constrangedora, identificando os seus inimigos, e momentos de comportamento sonhador, quando atraia a atenção dos companheiros que o distraiam e cuidavam dele.


Em 1974, Gorila, o Gorilão foi enviado para Barbacena. O diagnóstico que mais uma vez o isolava, assinado pelo médico, falava de uma deterioração cerebral progressiva.





A bunda que leciona

     


      Célio Francisco Rosa, Célio Bundadetanajura, e Zé Pequeno são dois presos emblemáticos, suas atividades e suas fugas atraiam até mesmo a simpatia das autoridades.


      Célio fazia questão de não tratar com a autoridade e quando fosse o caso de ter que dialogar com a autoridade, não respeitá-la.


        O delegado de Além Paraíba colocou Célio sete anos trancado na menor cela da cadeia e não o transferia. Não permitia que ele fosse enviado para nenhuma penitenciária.


        Da cela, Célio o desafiava, o ridicularizava até que depois de sete anos, este delegado, que Célio admite ser uma pessoa digna, compreendeu que ele nunca quebraria aquele preso e liberou a sua transferência para a penitenciária.


       Célio diz que, para não ficar louco, inventava de tudo e que muitas vezes para se dominar passava semanas odiando e dias xingando o delegado.


      Na Penitenciária de Ribeirão das Neves, Célio foi goleiro durante muito tempo da seleção A, foi técnico de time misto, estudou, fez o primário, trabalhou no Laboratório de Análises Clínicas, onde passou a assumir o cargo de laboratorista auxiliar.

    Hoje é professor primário, professor do Mobral e o principal auxiliar do posto de saúde da prefeitura de Ribeirão das Neves. Para Célio, não foi tarde demais a mudança na política penitenciária, adotada em Neves a partir de 72.
           
    Muitos sucumbiram, muitos não aguentaram a luta. A luta foi desproporcional para aqueles que não perceberam que eram eles, sozinhos, contra toda a máquina do Estado ocultada nas vestes humildes do guarda.