Celas são jaulas
Juraci DePersi
Gorila, o Gorilão, senta no
corredor
Está frente a mais de 300
celas
(ele diz que são jaulas)
Quer conversar com amigos
(não tem garganta, não tem
voz)
Bernes tomam conta da goela
- Quem é o Gorila, Gorilão?
- Ah! Eu não sou nada (pensa)
- Não sou ninguém (certeza)
- Não tenho nenhum valor (?)
- Sou o último sempre
(avalia)
- Sou o último a comer
(verdade)
Gorila ri, ri
Isto ele pode, isto ele
consegue
Ele ri
Sua boca vermelha enche
sua cara indecente
Cara de Gorila (macrocefalia)
Gorila ri
Um dente aparece
Aparece outro
Em sua boca vermelha,
cheia de sangue
cheia de sangue
Sua fome de duas, três,
quatro marmitas.
quatro marmitas.
- Eu ajudei a construir a
cadeia.
- Depois, eles me trancaram
lá dentro
- E lá dentro, fiquei isolado,
- Me esqueceram lá 9 anos.
- Me esqueceram lá 9 anos.
Esta é toda a história de Gorila
Contada quando podia falar
O pé esquerdo de Gorila
Carrega 300 e muito mais
larvas
(Relatório do enfermeiro
Irmão)
Gorila sabe que tem que
aprender
A caminhar de novo
- Pra que caminhar, seu
Gorila?
Ele sabe que o Irmão é irmão
mesmo
- Eu não sou nada
- Sou o último a comer
- Quero comer comida
- Não joguem fora o arroz
Gorila não fala.
Gorila arrasta o pé esquerdo
corredor afora
corredor afora
Trezentas e tantas celas
acesas
Trezentas e tantas celas na
sua frente
Ele diz que são jaulas
(para prender gorilas)
(para prender gorilas)
Irmão diz que são sepulturas
Onde esquecem seres vivos
Deitado na maca, boca aberta,
o Irmão tira um por um os
bernes.
Gorila não chora.
A
Justiça condena e, depois, na cadeia,
há uma nova condenação,
há uma nova condenação,
sem
julgamento e sem direito de defesa.
Múltiplas
condenações
Exemplos de
resistência física, principalmente.
Patrocínio
- três anos em uma cela fria e úmida, sob chão de marmorite, cela escura de
castigo do Depósito de Presos, em Belo Horizonte.
Gorila
- nove anos no castigo em Caratinga, também isolado. Este talvez tenha sido o
mais brutalizado de todos.
Célio Bundadetanajura - sete anos na
cela de isolamento, fétida e pequena, em Além Paraíba. “Além Paraíba”
significava na linguagem da cadeia qualquer lugar ruim e qualquer punição.
Eles também são exemplos da violência,
da covardia, da humilhação e da pressão exercida contra o indivíduo pelas
instituições do Estado.
A Língua Desgraçada
José do Patrocínio era chamado também
de Língua Desgraçada por causa da sua irreverência com quem quer que fosse
principalmente com aqueles que o prendiam e que carregavam o peso da
autoridade. Patrocínio saia do castigo passava dois ou três dias no pátio e
depois voltava novamente para o castigo.
Ele não gostava
de puxar saco das autoridades e era amigo dos presos seus companheiros. Sua
língua desgraçada o levou, no Depósito de Presos da Lagoinha, a ficar três anos
preso, sem processo, na cela de castigo.
Patrocínio era ladrão, ladrão de
cavalos, como ele mesmo se intitulava com orgulho. Sua última prisão foi em
penitenciária político-militar por ter, juntamente com Café, seu amigo
Cafezinho, roubado e vendido uma arma privativa das Forças Armadas, uma pistola
45.
Patrô não vivia, vegetava. Era repelente
em sua sujeira. Vivia na engorda. A única coisa que o distraia era a comida.
Seu corpo era monstruoso e deformado. Vida ociosa. Vida parada. Não fazia nada.
Não mexia. Era um bicho todo inchado.
Ele saiu de Linhares em 71, para mais uma vez roubar cavalos.
Gorilão, um louco, um sábio
Gorila foi
traído pela sua própria capacidade física: era um homem forte. Como homem
forte, Gorilão tinha fama que era contada em pequenas historietas pelos outros
presos.
Antes de
conhecer o Gorilão, as histórias que contavam dele, falavam de uma pessoa
simpática e muito tranquila, além da inteligência e de sua intransigência na
defesa de interesses coletivos.
Uma destas
historietas conta da chegada de Gorilão à Penitenciária Agrícola de Neves,
condenado por homicídio. Sua arma teria sido um tremendo soco no adversário. No
dia em que ele chegou, toda
penitenciária já o esperava, alguns querendo conhecer de perto aquele
homem famoso.
A inspetoria de
segurança não estava em um bom dia, pois teria feito tudo para não aceitar a
internação na penitenciária daquele homem perigoso para a tranquilidade das
autoridades.
Tão logo
Gorilão chegou, a inspetoria teve certeza de que não conseguiria dominar o
homem. Gorilão foi seco nas respostas e não aceitou nada que o pudesse diminuir
perante os companheiros. Os caras foram duros com Gorilão.
Cinco vezes
esgotou o prazo para que o liberassem da cela de observação. A guarda queria
esquecê-lo em uma daquelas celas e dentro da cadeia já havia um movimento de
ascensão do preso em torno da figura de Gorila, que foi prontamente descoberto
e abafado pela inspetoria.
Como haviam
sido esgotados todos os recursos para se fazer ver a irregularidade da
permanência de Gorilão na cela de observação, a única solução seria a
violência. Uma madrugada todos os presos acordaram. Para que todos soubessem o
que se passava, gritou para os companheiros, denunciou os
policiais-carcereiros. Todos os presos ouviram, uma galeria despertou a outra.
E nesta
madrugada, todos ouviram a quebradeira que o Gorilão aprontou. Ele destruiu
antes do amanhecer toda a cela de observação em que estava detido.
Depoimento de
um enfermeiro assegura que Gorilão só não saiu da cela porque não quis e porque
sabia que se abrisse a porta seria assassinado.
Enviado para o
castigo em Caratinga, ficou nove anos no total isolamento. Quando voltou à
enfermaria da Penitenciária de Neves, ele teve momentos de lucidez
constrangedora, identificando os seus inimigos, e momentos de comportamento
sonhador, quando atraia a atenção dos companheiros que o distraiam e cuidavam
dele.
Em 1974, Gorila,
o Gorilão foi enviado para Barbacena. O diagnóstico que mais uma vez o isolava,
assinado pelo médico, falava de uma deterioração cerebral progressiva.
A bunda que leciona
Célio Francisco Rosa, Célio
Bundadetanajura, e Zé Pequeno são dois presos emblemáticos, suas atividades e
suas fugas atraiam até mesmo a simpatia das autoridades.
Célio fazia questão de não tratar com a
autoridade e quando fosse o caso de ter que dialogar com a autoridade, não
respeitá-la.
O delegado de Além Paraíba colocou
Célio sete anos trancado na menor cela da cadeia e não o transferia. Não
permitia que ele fosse enviado para nenhuma penitenciária.
Da cela, Célio o desafiava, o
ridicularizava até que depois de sete anos, este delegado, que Célio admite ser
uma pessoa digna, compreendeu que ele nunca quebraria aquele preso e liberou a
sua transferência para a penitenciária.
Célio diz que, para não ficar louco,
inventava de tudo e que muitas vezes para se dominar passava semanas odiando e
dias xingando o delegado.
Na Penitenciária de Ribeirão das Neves, Célio
foi goleiro durante muito tempo da seleção A, foi técnico de time misto,
estudou, fez o primário, trabalhou no Laboratório de Análises Clínicas, onde
passou a assumir o cargo de laboratorista auxiliar.
Hoje é professor primário, professor do
Mobral e o principal auxiliar do posto de saúde da prefeitura de Ribeirão das
Neves. Para Célio, não foi tarde demais a mudança na política penitenciária,
adotada em Neves a partir de 72.
Muitos sucumbiram, muitos não aguentaram a
luta. A luta foi desproporcional para aqueles que não perceberam que eram eles,
sozinhos, contra toda a máquina do Estado ocultada nas vestes humildes do
guarda.